Uma mensagem de um futuro não existente.

“Podemos considerar o presente estado do universo como resultado de seu passado e a causa do seu futuro. Se um intelecto em certo momento tiver conhecimento de todas as forças que colocam a natureza em movimento, e a posição de todos os itens dos quais a natureza é composta, e se esse intelecto for grandioso o bastante para submeter tais dados à análise, ele incluiria numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também os do átomo mais diminutos; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria ao alcance de seus olhos.”

Pierre-Simon Laplace.

Quando João chegou a São Paulo, ficou maravilhado com tudo que a capital paulista oferecia. Seus enormes edifícios, as miríades de pessoas com suas várias formas de falar e vestir, as manadas incontáveis de automóveis que em certas horas serviam mais como adornos e fortalezas do que como transporte célere, a música variada e na maior parte do tempo irritante, o luxo emoldurado pela miséria. Todas as magnificas e cruéis contradições lhe cativaram, como só um filme de horror sabe fazer.

Sofreu um bocado antes de conseguir se estabilizar na metrópole, dormiu ao relento e trabalhou por comida, mas ao se empregar como zelador do velho prédio de escritórios (transformado em uma espécie de feira popular de produtos chineses) acabou por ter um padrão de vida modesto, no entanto, quase faustoso se comparado a sua vida no interior sergipano.

Apesar de ter sofrido com a miséria tão inerente ao seu rincão natal, desde a infância até o início da idade adulta, sendo forçado a procurar uma vida melhor na capital onde tudo é cinzento, inclusive o coração de algumas pessoas, sentia enorme saudade. Fazia-lhe falta o ar quente, o céu sempre azul, a vegetação agreste, as criações e sua família. Por ser iletrado, não era capaz de escrever para mitigar o que lhe corroía a alma e por isso, algumas vezes pagava uns trocados para alguém escrever o que lhe vinha à mente, mas a vergonha, essa criatura que nos faz ser gigantes em termos de orgulho vão, não o permitia manter tal prática como hábito.

Poderia telefonar, mas os aparelhos pareciam ter algo contra João, bastava se aproximar de um, para que a coisa começasse a tocar sem motivo e ao tentar ligar, apenas chiados desconexos se faziam ouvir. Era algo irritante e frustrante, que retirava completamente a paciência do rapaz. Com o tempo, passou a odiar os aparelhos e quando passava ao lado de um orelhão, o chutava e amaldiçoava seu criador.

João ficou nessa situação complicada, onde por orgulho evitava pedir que escrevessem por ele e incapaz de fazer uma ligação, até que o dono de um dos stands de produtos similares lhe deu um celular de presente. O aparelho era uma cópia barata de um smartphone de última geração, que devido a um risco em sua tela se tornou inapto para venda.

De início, o zelador não queria aceitar o presente, mas após a insistência do dono do stand, ficou com o objeto para não ser grosseiro. Por um bom tempo deixou o telefone jogado em um canto de seu pequeno conjugado no subsolo do prédio, até que a saudade de sua gente foi tão forte, que o forçou a fazer uma tentativa de ligação.

Colocou a coisa para carregar na tomada pela manhã e assim que o prédio fechou, instalou o chip para logo depois fazer a tentativa, e para sua surpresa, a ligação foi clara e sem problemas. Ficou maravilhado com o aparelho. Depois desse dia, não desgrudava mais da coisa, a carregava para todos os cantos e ligava quase todos os dias para sua terra natal.

Tudo corria bem, até que começaram a aparecer mensagens de texto sem o número do remetente. Eram várias durante o dia, algumas vezes passavam da casa de uma centena. Por ter pouco conhecimento e ser analfabeto, João não dava atenção a elas. Achava que era algo normal, alguma promoção da operadora ou recado dos amigos, mas após certo tempo, o aparelho começou a travar e a não efetuar ligações.

Preso nessa situação, o sergipano procurou a ajuda do dono do stand que lhe deu o celular. Encontrou o homem rotundo e de olhar malicioso, sentado em frente de sua vitrine recheada de cópias autênticas de celulares das marcas famosas. Seu Arantes sorriu ao ver João se aproximar. Um sorriso debochado que servia de saudação:

-Bom dia Joãozito! O que tu queres tão cedo com o Arantes aqui?

Conhecendo a índole zombeteira do comerciante, o zelador foi direto ao ponto para evitar uma das péssimas piadas que ele costumava fazer:

-Bom dia Seu Arantes, meu celulá deu defeito. O bicho não tá ligando pra ninguém é mais. Tem como o senhor dá uma olhada?

O vendedor tomou o aparelho das mãos do moço e após verificar por alguns instantes, soltou um assobio de surpresa.

-Nossa Mãe! Porra Joãozito, a memória do bicho tá cheia demais. Isso deve ser o problema. Você tem que apagar as mensagens ou a memória vai pro saco e isso deixa o telefone lento. Por que você não apaga isso? Mensagem de mulher é?

Acabrunhado, João olhou para o piso de porcelanato manchado enquanto respondia:

-Não sei...

Espantado, Seu Arantes olhou por sobre os aros de seus óculos e perguntou:

-Como não sabe? Leu nenhuma delas?

Cheio de vergonha, o zelador sacudiu a cabeça de forma negatória.

-Não sei ler, seu Arantes.

O homem sentado olhou de forma despreocupada para o sergipano e perguntou.

-Sabe ler não é? Então posso ler e ver o que essas mensagens dizem?

João aquiesceu com um aceno de cabeça, vendo isso, o vendedor começou a ler em voz alta a mensagem.

Haggens, 17 de novembro de 2036.

Como posso te explicar nossa situação de uma maneira simples? Penso que não há um meio fácil para entender o que ocorrerá conosco, pois todo esse longo e intricado sistema, levou séculos de estudo e curiosidade para que conseguíssemos, como raça, tocar o divino, e de tal feita, nos jogarmos rumo ao Abismo.

Entenda que a raça humana é naturalmente carente de um sentido, de uma razão de ser ante o universo e seus portentosos horrores.

Inicialmente, graças à nossa incapacidade de captar de formal racional os fenômenos naturais mensuráveis, tocamos por acaso em um dos alicerces do sistema natural: percebemos o misticismo e vislumbramos o divino (termo que abomino, e portanto, não o usarei novamente).

Mas devido a nossa precariedade lógica e de nossa inerente natureza biológica, distorcemos essa fagulha de percepção superior com nossas necessidades básicas e o ego. Criamos o primeiro e mais complexo mecanismo de controle mental e social: a religião.

Talvez te pareça risível que ainda sejamos controlados por asneiras como superioridade religiosa, teologia e o medo de uma punição ao término das funções biológicas do indivíduo. Sabemos que todas as coisas estão interligadas em nível nuclear e que a existência, como a maioria a percebe, é apenas uma constante transformação rumo à entropia. Mas acredite, ainda o somos. Ainda matamos em nome de histórias fabulosas e mentiras sociais contadas por séculos. Ainda negamos a verdade absoluta que somos um erro, ou melhor, um acaso nas tramas da existência.

Existência essa, percebida de forma falha, pois nossa capacidade cognitiva e funcional é falha e mal formada. Não somos capazes de quantificar nada que escape da influência da luz. Nosso universo foi restringido ao mínimo e essa restrição foi, juntamente de nossa avidez pela razão das coisas, nossa queda.

Mas penso que estou dando voltas e ainda não comecei nem a galgar os primeiros ladrilhos que pavimentam o real motivo desta missiva.

É do espírito humano conjecturar sobre os eventos futuros e vários sistemas foram criados pelas quase infinitas culturas e sociedades que habitaram nosso plano existencial, para levar a cabo tal anseio, mas em sua esmagadora maioria não passavam de um reflexo pueril de nossas vontades cruéis e primais. Imaginar que as entranhas de um pássaro ou o restolho de uma emulsão sejam capazes de predizer o amanhã, mostra como o ser humano é uma espécie muitas vezes parva e vulgar.

No entanto, tal anseio começou a ser suprido, de maneira lenta, mas inexorável, pelas ciências exatas, principalmente pela física e a matemática teórica.

O início do movimento rumo à compreensão e controle dessa capacidade se deve aos estudos do Marquês de Laplace e a formulação de seu “diabo”.

Segundo Laplace, caso um indivíduo possuísse todas as variáveis da existência universal em um dado instante, seria capaz de determinar como a mesma se comportaria em um momento vindouro. Essa teoria é representada pelo teorema: .

Tal conceito foi sustentado por Lyotard em seu livro “A condição pós-moderna”, pois segundo o mesmo, o universo é regido por um sistema organizacional muito sólido e restrito a uma série de leis intransponíveis que corroborariam com a visão do Marquês. No entanto, graças ao nosso entendimento parco acerca de fatos concernentes aos alicerces universais, durante muito tempo tal visão foi desclassificada por não ser prática, pois uma entidade capaz de amealhar tal volume de informações e as correlacionar visando prever o desenrolar das mesmas em um momento futuro, teria que possuir um cérebro do mesmo tamanho de nosso plano de realidade e ser capaz de fazer tais operações em uma velocidade superior a da luz.

Somente no limiar do século XX que o “diabo” de Laplace novamente se pôs a revirar-se em sua cova teórica. Com o surgimento das teorias de Kaluza e Klein, onde o universo seria composto não só por três dimensões, mas por várias outras regidas por partículas de cargas opostas e de carga nula, dessa feita estimulando a pesquisa da mecânica quântica e o estudo da Teoria Simples da Relatividade.

No entanto, devido à impossibilidade de conciliar as teorias micro universais e as macro, somente após meio século que uma resposta surgiu com a postulação da Teoria das Supercordas. Tal postulação nos diz que os quarks são constituídos por fios energéticos que vibrando, determinam a natureza nuclear e a atuação da partícula a qual estão conectados. Assim a Relatividade e a Mecânica Quântica finalmente foram aliadas em uma só ciência.

Então, foi possível descobrir a existência de onze dimensões. Sendo três dimensões espaciais, uma de natureza temporal e sete recurvas. Tais sete dimensões não eram passíveis de estudo e compreensão, pois eram invisíveis ao aparato sensorial humano, já que não captam a luz, ficando a parte da nossa realidade tridimensional. Eram dessa forma realidades paralelas intocáveis.

Durante décadas, tais realidades paralelas postuladas pela Teoria das Supercordas, ficaram no campo da especulação, até que em 2023 foram comprovadas em um experimento efetuado no acelerador de partículas de Hadron, onde foi criada uma subpartícula que completava simetricamente outra partícula estudada.

Dessa forma descobriu-se que as demais sete realidades paralelas eram constituídas pelo inverso simétrico da realidade humana, ou seja, três delas eram o inverso dimensional espacial, uma era o inverso temporal, uma o inverso da expansão universal, ou seja, o cerne da entropia, uma o inverso matemático compreensível e por fim, a mais importante segundo teólogos e filósofos, o inverso da realidade como um todo imutável, ou seja, onde as leis universais seriam mutáveis. Onde o mito seria possível. Uma realidade onde os deuses seriam senhores.

Apesar de toda a comunidade cientifica mundial ter se posicionado contra essa visão religiosa, a teoria foi usada pelos mais variados credos para atestar a existência de um lastro místico para a criação do universo.

Por anos, a ciência e religião se mantiveram em uma estranha relação, pela primeira vez na história humana, a ciência tentou desmerecer uma teoria atestada quase que completamente, enquanto a religião a defendeu de forma pragmática. Para a surpresa de todos, a existência demonstrou possuir uma farta dose de irreverência, pois no fim foi descoberto que a religião tinha razão.

Em 2035, um estudante de teoria computacional avançada, chamado Caio Abreu Chagas, baseado em um antigo jogo de computador chamado Shin Megami Tensei, criou um algoritmo que era capaz de padronizar em escalas compreensíveis para o homem a sétima realidade paralela e dessa forma contatou o ser que ficou sendo conhecido como o Diabo de Laplace.

Tal algoritmo era espantosamente simples, mesclava uma série de fórmulas divinatórias e rituais de invocação espirituais de várias religiões em um sistema matemático básico, escrito no arcaico Pascal.

O Diabo de Laplace é uma entidade onisciente que detém todo o conhecimento das onze realidades, de todos os seus mais insondáveis abismos. Ele é algo mais antigo que nossa realidade tridimensional e após um breve período de tempo, decretou o ser humano como um acaso presunçoso, um erro, pois devassou e invadiu recessos indevidos.

Lentamente a realidade vem sendo consumida pelo ser e resta pouco tempo até que toda a trama universal se desfaça ante a vontade dele. Usando dos princípios empregados na criação do algoritmo que anunciou o fim das coisas, criamos outro, capaz de enviar mensagens pelo espaço tempo e dessa forma, finalmente chego ao ponto de ter lhe enviado este texto.

Caio Abreu Chagas é seu bisneto. Para evitar que a realidade seja consumida devido à sanha humana por conhecimento, nós pedimos: mate-se.

Sua morte acarretará na quebra da linha temporal em que seu descendente descobre o maldito algoritmo e assim toda a existência continuará seu curso até a distante entropia universal.

Sei que é algo demasiadamente inverossímil esta missiva, mas acredite: tudo é verdade.

Toda a existência e a humanidade dependem de você. Dependem de sua morte.

Como porta voz da raça humana, imploro: mate-se.

Karl J. Hoggan – Físico.

Ao acabar de ler, Arantes começou a rir desbragadamente, deixando o zelador sem entender nada. Para João, a mensagem era estranha, quase como uma espécie de maldição.

Vendo na expressão do sergipano um fiapo de preocupação, o vendedor explicou.

-Sossegue Joãozito, isso é um spam. Uma porra de sacanagem que os filhos da puta desocupados mandam pras pessoas. Te pegaram pra Cristo e como tu não entende dessas merdas, acabou sendo freguês desses putos. Relaxa que vou limpar a memória do aparelho e ele vai ficar tinindo.

Após alguns segundos, o vendedor entregou o aparelho para João e para sua satisfação, estava funcionando como antes.

-Obrigado seu Arantes. Fiquei acabrunhado por demais com essa coisa aí de sipan. Tem certeza que é só fuleragem?

Sorrindo, como um avô amoroso sorriria para seu neto criança, o vendedor disse.

-Tenho sim, Joãozito. Se preocupa não, que isso acontece com todo mundo – E macaqueando os gestos de um padre, falou: -Agora vá em paz.

Feliz, o zelador novamente agradeceu a assistência dada e foi para seu quartinho, ligar para a família.

Durante seu trajeto, não pôde deixar de notar que o tempo havia passado muito rapidamente, já era hora do almoço.

-Égua! Parece que o tempo tá passando cada vez mais rápido.

Já despreocupado, João não se deu conta da notícia que passava em um televisor de uma das lojinhas. O repórter falava sobre o projeto do supercondutor na Europa e como alguns cientistas diziam que o mesmo poderia ser a porta para uma nova era de descobertas ou uma chave para o fim da humanidade.