Sangue de Esparta


O clangor de aço com aço reverberava pelas decadentes colunas de mármore, propagando-se para além da batalha, mesclando-se ao som das queimadas na cidade. Uma miríade de guerreiros em armaduras de couro, ornamentada com peitorais de bronze, digladiava num frenesi que parecia eterno, enquanto o carmesim escorria em filetes venosos, delineando e criando poças. O sangue era sinal de que homens estiveram por ali, e de que a morte reinou em forma de guerra.
Cortando, retalhando e matando.

Ulisses era um deles. Seus braços fortes e rígidos trabalhavam em uníssono com todos os músculos, tracejando movimentos em arco, descendo a espada com exímia precisão. A abertura do capacete que se mostrava tão incomoda já não era mais um problema, pois o havia jogado fora na primeira oportunidade. Um corte no rosto, perigosamente próximo do olho, evidenciava que não fora uma ideia excelente. Mas o número de corpos deixados pelo caminho eram dados contrários à estatística. No entardecer vertiginoso e coberto por uma espessa névoa de fuligem, o homem era arma, e a arma fazia parte do homem.

Escudo aparando; espada avançando; talho; sangue; dor e morte.

Um ciclo que se repetia a cada novo inimigo, que se via defrontado o próprio deus da guerra, banhado em sangue de batalha. Era apenas um homem. Mas era também um deus. E além de todas essas coisas, ele era Esparta.

Os hoplitas tebanos caiam com a facilidade de frutas podres, deitando em cada investida, perecendo nos contra-ataques, ou simplesmente morrendo em batalha justa. Com a gigantesca diferença Espartana, a pugna era um deleite aos olhos dos sempre vitoriosos.

Ulisses carregava consigo a marca dos descendentes da guerra, trabalhando em ritmo acelerado e nunca se fatigando. Uma máquina mortífera de puro ferro. Cortando caminho pelos últimos soldados, atassalhou até não restar nenhum. Atravessou um monólito que se equilibrava com dificuldade em sua base, e a surpresa o fez parar.

O calor da batalha e o sangue fervendo nas veias tiravam sua percepção de tempo, e talvez tenha sido esse seu maior motivo de espanto. Olhou para trás, buscando se certificar dos inimigos derrotados, e franziu o cenho, impressionado com o baixo número de tebanos desbaratados. Pois na sua frente, batalhões com falanges numerosas, distribuíam-se em blocos maciços, indo contra as formas tradicionais de combate. Era apenas um pequeno imprevisto, e nada daquilo seria o suficiente para abalar sua confiança divina. Afinal, ele sabia que Esparta era guerra, e guerra era Ares.

– Meus irmãos! – gritou com voz retumbante, sendo ouvido até nas últimas fileiras. – Hoje é o dia derradeiro de nossa vitória. Aos homens é dado a obediência de reconhecer seus deuses. E os deuses lutam de nosso lado esta noite! – A massa organizada berrou em concordância. Os olhos cortinados pelas abas de ferro assentiam em fúria, lançando espadas ao ar e descendo-as sobre os escudos, causando um tilintar ensurdecedor.
 
Do outro lado, o som produzido pelos esquadrões tebanos era igualmente alto, e já mesmo em voz enfrentavam o exército inimigo. A noite chegava com o peso do mundo, aumentando a gravidade e ampliando os sentidos. Com as primeiras estrelas despontando no céu, a sensação que os tomava era a de estarem em um coliseu, observados por olhos brilhantes e divinos. De sua morada olimpiana, os deuses faziam apostas, e o som do trovão inesperado em um céu límpido foi o estopim do inicio.

As hordas marcharam em passos compassados, um pé seguido do outro, acompanhando o homem da frente. Na parte mais baixa, o comando tebano se postava em forma atípica. Suas falanges divididas em blocos era motivo de risos da parte do inimigo, que em sua supremacia numérica, postava suas linhas com densidade de doze homens, coisa comum em batalhas. O contraste maior com os adversários mostrava carregados e numerosos blocos, que alcançavam a quantidade de incríveis cinquenta soldados, e de forma mais estranha ainda, a maior parte se encontrava do lado esquerdo. Levando em consideração que a disposição dos maiores blocos era feita do lado direto, a cena era algo estranho de se ver.

O tempo parou, e cada metro alcançado era uma eternidade. Frame a frame, os movimentos se desenrolavam, antecipando o desfecho do prelúdio presente. Os infinitos minutos foram tanto, que o céu que se mostrava límpido, estava agora carregado, com nuvens grotescas se aproximando a velocidade estrondosa. Algo que não se via em dia comum. Havia festa no salão dos deuses, e eles comemoravam a vitória. De quem, não poderiam saber.

As primeiras gotas de chuva despencaram antes que as lâminas se tocassem, abrasando a poeira levantada pelas sandálias de couro. A água descongelou o mundo, e espadas raiaram escudos, e lanças perfuraram a carne, e homens morreram, caindo para que outros se erguessem.

O som ensurdecedor de berros, gládios se ralhando e a melódica canção de morte, invadiu o espaço, amplificando o terror da carnificina iniciada. Nada de heroico havia na guerra, e aqueles que sonhavam há tanto tempo com aquilo, tiveram a infeliz percepção da realidade apenas no momento em que suas vidas se esvaiam, sendo eles pisoteados pelos próprios companheiros, esmagados na massa que se comprimia em força desumana ou simplesmente sentindo o fio da lâmina perfurando o corpo e alma, soprando a vida para os céus, ou o hades. Os Espartanos, envoltos em áurea de ódio, retalhavam com o poder dos deuses, e Ulisses era o centro da convergência. Era como se um tornado girasse a sua volta, atraindo os inimigos para o seu alcance, ceifando vidas como o próprio Tânatos. Apesar da dificuldade, a vitória estava sendo esmagadora.

As linhas da direita do exército espartano entraram em confronto direto com a gigantesca falange tebana. Ignorando todas as leis marciais, os tebanos que haviam ousado reforçando sua esquerda, deixaram os blocos opostos completamente desprotegidos. E os corpos caídos na lama que se formava, eram sinal do despreparo e da loucura que havia acometido o exército de Tebas, que caia em torrentes, assim como a chuva que despencava.

Esparta avançava como a morte, e no grande planalto em que a batalha se desenrolava, suas falanges menores avançavam com força equiparada à parte mais forte, gladiando em quantidade semelhante ao inimigo. No exército na esquerda, o combate era duro, mas a habilidade e hegemonia espartana sobressaiam-se à má sorte dos oponentes que tinha cada vez menos guerreiros. Os que restaram, lutavam em desespero, e o medo, estampado em suas faces sujas e molhadas, era um sinal disso. Um hoplita tebano segurando um pequeno gládio avançou em direção a um espartano, com o escudo em aberto e a espada descendo em arco. O homem só teve o trabalho de desviar e estocar. O sangue jorrou quando o fio se soltou, manchando as poças de grená, perpetuando o sacrifício de batalha.

O soldado sobrevivente continuou avançando, e de repente, sentiu os pés atados, derrubando-o num forte baque. Levantou o rosto da lama, e cuspiu, observando o aço cantando em volta. Seus companheiros não perceberam a queda, e ele mesmo não entendia o motivo. Tudo isso aconteceu em questão de milésimos de segundo, enquanto olhava para trás, buscando encontrar o que o derrubara.

E a mão descarnada que segurava seu calcanhar infiltrou um medo terrível nas entranhas, impelindo-o a puxar a perna bruscamente. Mas não obteve força suficiente. O chão se abriu ao seu lado, e o corpo esquelético que o agarrava emergiu, sem carne nenhuma aparente, trajando um colete rasgado e um saiote em frangalhos. O gládio enferrujado que trazia a outra mão chiou nas gotas de chuva, cortando tão forte que arrancou a cabeça do hoplita espartano. O gesto não notado liberou o horror, e os mortos que há muito não batalhavam subiram a terra.
 
***
 
Os inimigos, deitados pelo caminho como um rastro de migalhas, eram um guia para mostrar de onde viera Ulisses. Iluminado pelo poder divino, seus movimentos eram automáticos, acertando e aparando, digladiando e matando. A maciça massa de homens já havia diminuído por dois terços, restando apenas os mais duros e valentes. Mas mesmo esses não eram suficientes, tendo em vista a facilidade do avanço espartano. Um homem se aproximou com bruta violência, e o choque das espadas foi estridente e assustador. Ulisses desviou para direita, enquanto o gume do gládio passava a centímetros de sua coxa. Investiu com uma girada brusca de braço, acertando em cheio o escudo do oponente. Após a aparada, o tebano empurrou com o escudo e levantou o braço, estocando, com a outra mão, em direção ao abdômen de Ulisses, que desviou o golpe para esquerda, segurando a espada do inimigo com seu dyplon, e em seguida encravou a lâmina no peito do homem.
E viu, surpreso, o oponente não esboçar qualquer reação.

Somente nesse momento, em que seu espanto era visível, ele percebeu os cortes profundos no colete de couro do inimigo. Da perna esquerda ainda escorria um liquido viscoso e vermelho, atenuando o roxeado em volta da ferida. Nesse segundo em que perdeu a percepção da batalha e vacilou, o grito da coisa o acordou de seus devaneios. Fitou o gládio avançando em direção a sua cabeça, e desviou com um movimento rápido, mas não o suficiente. O fio arrastou-se pelo ombro e criou um talho considerável. Sangue jorrou quase que instantaneamente, e ele se viu obrigado a aparar o golpe desferido em seguida. A arma que era a extensão de seu braço permaneceu enterrada nas entranhas do inimigo, e nessa situação ele precisou recuar, enquanto as marteladas no escudo tornavam-se incessantes.

Olhando ao redor, como em câmera lenta, viu ossos brotando do chão. O urro de dor de seus companheiros veio em seguida, acompanhado do som de ferro quente chiando em água. O carmesim brotou como flores em um campo de primavera, e Esparta caia tal como as colunas de mármore das cidades sitiadas. Ulisses ainda lutava, repelindo e retrocedendo, gritando aos sete ventos na esperança de ser ouvido. Do ombro ferido a vida se esvaia aos poucos, mesclando-se a infindável chuva assoladora. Os trovões e relâmpagos reverberavam pelo campo desolado, cada vez mais fortes, acentuando a triste realidade de que eram os deuses a tripudiar, completamente descontentes pelas coisas correrem fora do planejado.

E foi enquanto Ulisses, o grande herói, lutava e corria por sua vida, que viu a essência da guerra ascender aos céus, abandonando seu exército de vez. E nesse mesmo momento também contemplou, passeando entre as fileiras inimigas que se engrossavam novamente, o próprio Hades reencarnado. Suas vestes exalavam medo mais puro, com imagens de horrores inimagináveis. A armadura ornamentada em pedras preciosas nunca antes vistas era de cegar pela beleza. 

O até então escolhido pelos deuses, dobrou o joelho com a força imposta pelos inimigos. Ao seu lado, as falanges desbaratadas rendiam-se em discordância, não suportando a pressão dos soldados do sub-mundo. Os caídos voltaram a se erguer, levando embora todas as chances de vitória. Do outro lado, seus companheiros tombavam um por um, enquanto as hordas inimigas terminavam o avanço, liberando o brado aterrorizante e vitorioso. Os braços já fracos caíram pesados, jogando o escudo ao chão, com seu executor celebrando sobre ele. O corpo afundou na lama e a cabeça virou de lado, contemplando os mortos em regozijo. Um trovão cantou mais alto do que todos os outros, e no horizonte um ponto vermelho surgiu.

Montado em um cavalo negro exalando fogo, uma montanha cavalgava em direção à guerra. O peitoril largo e os olhos de ódio acentuaram-se com a proximidade do deus. Era ali o próprio senhor da guerra, trajando uma armadura escarlate e empunhando uma gigantesca espada. Ulisses observou a cena épica se desenrolar ao longe, enquanto os restos de seu exército eram pisoteados pela horda de mortos-vivos que abria caminho para o confronto. Estáticos, todos observavam, com a tensão preenchendo cada músculo e osso ali presente. Ares avançou com a fúria olimpiana sobre suas costas e levantou a espada, preparando-se para o ataque. Hades somente teve o trabalho de levantar as mãos, abrindo um buraco de escuridão incalculável que sugou a fúria e o deus, limpando-os do mundo como se nunca tivessem existido. A chuva cessou no mesmo tempo, levando junto os trovões inacabáveis. O que não havia mais de ânimo abandonou Ulisses tal como a vida que se esvaia. A última imagem gravada foi o gládio descendo como sentença, findando a existência e arrastando-o para escuridão.
 
***
 
Os olhos abriram-se bruscamente, levando-o a sufocar em busca de ar. Arranhou a garganta buscando respirar, mas nenhum esforço era plausível. Esperou que a morte viesse e agonizou num esgaçar que foi silenciando pouco a pouco.

Percebeu que inspirar não era necessário, e se acalmou. Olhou para as mãos e a lama acumulada contrastava com as nuvens tempestuosas que fugiam dos céus. O sangramento parara e a crosta vermelha se acumulou no ombro, mas sem dor nenhuma aparente. Os guerreiros restantes deixavam o campo de batalha em euforia, caminhando solenemente para grandes cavernas que se abriram no chão.

Com os pensamentos confusos, a visão enevoada e o corpo leve como uma brisa, Ulisses se levantou, caminhando em direção à escuridão.
Ali ainda era um guerreiro, e travaria guerras com a extinção ao seu lado, pelo resto da eternidade.

Era um homem. E já não mais um deus. Esparta havia ficado para trás, e agora, além de todas essas coisas, ele era a morte.

 
 Tema: Guerra
Jefferson Lemos
Enviado por Jefferson Lemos em 29/09/2014
Reeditado em 07/02/2015
Código do texto: T4981207
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