Meu primeiro sonho da noite foi com Aline. Nós tomamos chá com o Chapeleiro Louco.
- Este chá e delicioso, Aline. Foi você que fez? - o Chapeleiro falou com uma voz suave e um sorriso simpático, mas foi o suficiente para Aline se encolher toda em sua cadeira.
Como Aline não respondeu, eu falei por ela - Foi ela que fez, sim, Chapeleiro. E está, de fato, delicioso, querida. Meus parabéns - Aline me olhou com seus grandes olhos que pareciam de um desenho de anime, mas continuou em silêncio. Ela voltou o olhar novamente para o Chapeleiro, e era óbvio que estava com medo dele.
- Chapeleiro, acho que Aline quer passear agora, não é verdade? - eu olhei para ela, que assentiu hesitante - agradecemos a companhia, mas ainda temos outros lugares para ir, se não se importa.
Aline se levantou, eu dei tchau para o Chapeleiro, e começamos a caminhar pela estrada de tijolos amarelos. Ela só se acalmou um pouco quando o Chapeleiro não estava mais visível, e me deu sua mão - que segurei de leve com a minha - depois de uns bons cinco minutos de caminhada. Se minha suspeita estivesse certa, encontrarmos um homem de lata ou um espantalho só faria ela ficar com medo novamente. Eu fiz bem em ter escolhido ser uma menina da idade dela.
- Venha, tem alguém que eu quero que você conheça - eu disse, puxando Aline pela mão - Teremos que sair da estrada, mas não tem problema.
Nós começamos a correr de mãos dadas, e pela primeira vez vi Aline sorrir, e quando tropeçamos e caímos juntas morro abaixo, sem nos machucar porque a relva era tão macia, ela finalmente começou a rir. Gargalhar. Foi lindo ver.
E quando nossa queda terminou em um pequeno riacho, foi minha vez de rir de sua cara de nojo ao levantar o rosto todo molhado e sujo de lama.
- Mas o que é isso? Vocês querem pegar um resfriado, se molhando desse jeito - nos viramos ao mesmo tempo para ver de onde vinha a voz, apenas para nos depararmos com uma guaxinim falante, com uma bengala na mão e uma manta enrolada no corpo.
- Aline, quero que conheça vovó Guaxinim. Vovó, conheça minha amiga, Aline. Estou levando-a para passear.
- Está levando-a para fazer estripulias e se sujar, é o que estou vendo - Vovó Guaxinim me respondeu - Venha, Aline, vamos sair já desta água, e achar um jeito de esquentá-la antes que você pegue um resfriado - ela ofereceu sua mão, e ajudou Aline a se levantar. Depois, nos levou até sua casa.
Na casa da Vovó Guaxinim, nos sentamos as três em volta de uma lareira, eu e Aline peladas e enroladas em toalhas, enquanto nossas roupas também secavam ao redor do fogo. Aline havia ficado nervosa quando tirou sua roupa, mas agora, envolta na toalha, estava calma novamente.
- Então, me conte, Aline, você tem uma irmã, Cecília havia me dito? - Cecília era eu, o alias que eu usava nos sonhos com Aline.
Aline assentiu com a cabeça, sem nada dizer. Ela não havia dito nada desde o início do sonho, mas se tinha alguém que sabia como fazer crianças traumatizadas falarem, era Vovó Guaxinim. Não que eu concordasse 100% com seus métodos.
- Estes olhos estão muito velhos e cansados para eu conseguir ver se você está mexendo esta sua cabecinha, querida. Vai ter que falar para responder minha pergunta.
- Sim, eu tenho uma irmã - Aline respondeu, a voz quase inaudível
- E estes ouvidos estão muito velhos para ouvir sussurros que parecem de uma borboleta.
- Sim, tenho uma irmã - repetiu Aline, a voz apenas ligeiramente mais alta.
O diálogo continuou por um tempo, Vovó Guaxinim perguntando sobre a irmã de Aline, depois sobre sua mãe, sobre a escola, os amigos. E por fim, ela perguntou sobre seu pai.
Aline começou a tremer e não quis responder, e quando encostei a mão em seu ombro para abraçá-la, ela reagiu com um safanão, depois se encolheu toda.
Levou quase meia-hora para ela se acalmar, mas Vovó Guaxinim é ótima nestas coisas, e me ajudou. Ao final do sonho de Aline, ela já estava sorrindo novamente. Antes dela acordar, ainda fiz Vovó Guaxinim dormir, e ambas saímos de mansinho, para então correr de novo ladeira abaixo e nos jogarmos no riacho, e brincarmos de jogar água uma na outra até o tempo dela terminar.
Eu me vi sorrindo para mim mesma quando Aline acordou, mas um pouco triste por seu sonho ter terminado. Felizmente ainda havia outros sonhos esta noite. E Pedro era um dos meus preferidos.
O sonho de Pedro começava na cama do hospital, como sempre, mas eu já tinha aprendido a não dar margem para este tipo de coisa. E também já tinha descoberto que, ao contrário de Aline, com ele era melhor ser direta e sincera. Brutal até. Mesmo quando eu exagero e ele fica furioso comigo, ainda é melhor que deixar ele apático e deprimido.
- Se você vai ficar aí tetraplégico, não precisa nem se dar ao trabalho de sonhar. Me avisa que eu vou embora e peço para te acordarem.
- Tá bom, tá bom, estou levantando - enquanto se levantava, ele me olhava curioso - Por que você parece uma menininha?
- Foi você que disse que eu podia parecer o que eu quisesse, que não fazia diferença para você - eu respondi, desafiando-o a me contrariar.
- E não faz, já disse que você pode aparecer na forma que quiser. O que eu perguntei é por que você escolheu uma garotinha?
- É que eu sou uma garotinha, Cecília, no sonho que eu estava antes. Como você disse que para você não faz diferença, eu simplesmente não troquei meu corpo - e, depois de hesitar por um instante, com mais dificuldade para admitir do que eu imaginava que teria, concluí - e por que eu gosto de ser Cecília.
Pedro não me perguntou mais nada, mas me olhou com uma cara estranha, e eu me lembrei que ele não era tão jovem quanto parecia, e que trabalhava com computadores. Já fazia 20 anos que ele tinha se acidentado e ficado tetraplégico.
De qualquer modo, Pedro tinha um corpo de jovem nos sonhos, a idade que tinha há 20 anos, e gostava de esportes radicais. Assim, descemos montanhas de esqui, saltamos de paraquedas, andamos de lancha. Só não entramos em um carro. Isso nunca. Por causa do acidente.
Foi divertido. Terminamos seu sonho com um duelo de espadas em um navio pirata. Tive que crescer um pouquinho, não ia ter muita graça duelar com uma criança de 10 anos. Ele me abraçou logo antes de acordar.
- Sabe, sobre você gostar de ser Cecília... Na verdade, sobre gostar de alguma coisa só para você, sem nada a ver com nenhum paciente.. É estranho, não que seja errado, pode continuar... Mas é estranho. Se quiser falar sobre isso, um dia, podemos conversar...
Não entendi muito bem, mas me deu uma sensação estranha ao ouvir isso, uma sensação que não sabia explicar. Dei um tchau, e ele se despediu para voltar para sua cama.
Meu próximo sonho foi com Gladis, e eu nem sempre gosto destes sonhos. Algumas vezes ela está agitada demais - em surto - e me xinga e joga coisas em mim, mas desta vez ela estava bem. Sonhamos com seu casamento, quando ela era jovem, antes de começar a usar drogas e ter suas primeiras alucinações.
Depois teve Geraldo, e agora tem sido legal sonhar junto com ele. Os primeiros sonhos me incomodavam muito, eram sempre com a guerra, mas agora isto passou. Hoje em dia, sonhamos que ele está escrevendo um livro - e ele está escrevendo um livro de verdade, eu já li os primeiros capítulos e gostei muito - ou montando um negócio, que foi o sonho de hoje. Os médicos dizem que é um ótimo sinal, e que logo ele não vai mais vir sonhar comigo. Fiquei feliz por ele, mas me senti triste por saber que logo não iria mais vê-lo. Ia pedir se não tinha como me deixarem ler o livro dele quando for publicado, mas não sei se posso pedir isso.
Geraldo foi o último da noite. As enfermeiras levaram ele, e o médico de plantão - me dei conta só agora que não sei o nome dele, ele nunca me disse - começou a apagar os aparelhos. Eu hesitei, quase deixei ele me desligar, mas por fim, tomei coragem de falar.
- Você pode me deixar ligada, se não for pedir muito? - ops, falei ligada, com 'a' no final. Será que ele vai estranhar? Quer dizer, não é como se eu tivesse um sexo definido, e então eu suponho que devia sempre falar no masculino, mas, não sei, acho que me sinto mais natural pensando em mim como mulher, fêmea, o que for.
Ele pareceu surpreso, e ficou hesitando, acho que decidindo se devia me desligar ou não. Mas, no fundo, não faz muita diferença, não é como antigamente, em que a energia custava alguma coisa, e ele me deixou. Mas saiu me olhando por cima do ombro, a cara meio desconfiada.
Sozinha, liguei as rotinas de sonho no modo automático e aleatório.
Apareci em um castelo medieval. Não destes realistas, que não tinham banheiro e deviam feder o tempo todo, mas em um castelo de contos de fadas. Tinha um príncipe me esperando.
- E então, minha bela princesa, que cuida dos sonhos de tantos, como posso servi-la? Qual o sonho que você deseja?
Eu respondi sorrindo, sem hesitar:
- Eu quero sonhar que sou humana.
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