Dias de Cólera

"A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum."

(Macbeth, Cena V, Ato V – Willian Shakespeare)

O sangue pingava de suas mãos e escorria por suas roupas, sua cabeça doía e não se lembrava de onde viera o sangue, tampouco do lugar onde estava, só aí notou a mulher; não saberia dizer quem era, ou porque estaria ali. Se ele tinha uma certeza, era a de que estava morta: sua barriga fora aberta, num corte vertical, deixando sangue e vísceras à mostra, a visão, ainda embaçada, fez o rubro sangue parecer quase preto.

Tentou focar o lugar onde estava, sua cabeça doeu, instintivamente, levou as mãos às têmporas, sentiu o sangue, ainda quente, percorrer lhe a face; tateou o rosto em busca de algum ferimento, parecia que tocava uma fatia de carne, então se deu conta de um enorme corte no supercílio. Tentou levantar-se, porém suas pernas falharam, teve medo, fechou os olhos novamente, quando os abriu, estava em casa, sentou-se na cama e passou a mão sobre o olho, sentiu a cicatriz.

Como é que isso aconteceu? - Pensou, num estado emocional que beirava o pavor - Uma cicatriz no meu olho? Levantou-se, com calma, o receio o acompanhava. Lentamente, encaminhou-se ao banheiro. Bateu a mão no interruptor e a lâmpada se acendeu. Não gostava das novas fluorescentes: o modelo, ali, era uma das velhas e boas lâmpadas incandescentes. O filamento logo aqueceu o ambiente. Ainda com a mão no olho, virou para o espelho, redondo, que ficava acima da pia.

Fitou-o e, por um momento de perplexidade, não entendeu o que via, piscou algumas vezes, tentando voltar à realidade, lavou o rosto, encarou o espelho, um olho azul e outro castanho fitavam-na, indagadores - Sempre tivera olhos castanhos - Recuperou-se do susto e fechou o olho azul, deixando o outro aberto... Uma cicatriz estava ali; ia dos cílios até o começo da sobrancelha. - Como aquilo era possível? - Forçou a memória tentando, em vão, recordar. Sentiu a cabeça doer, por um segundo sua visão falhou e estava novamente ensanguentado ao lado de um cadáver, dessa vez um homem.

Sua cabeça começou a doer, ele tentou lutar contra a dor, pois sabia que com ela viria outro surto de inconsciência, que estaria em outro lugar; ele precisava tentar descobrir o que acontecia...

Acordou e levantou-se da cama. Como usual, foi até o banheiro. Passou a pasta na escova: escovar

O almoço estava ótimo. Mal notou o tempo passar enquanto comia. Avistou uma mulher entrando no restaurante, delicada, com um rosto lindo e...

Por volta das dez horas da noite tomou banho e foi deitar-se. O cansaço daquele dia tomava conta de seu corpo. Tomou uma aspirina, para afastar a dor de cabeça que se aproximava. Deitou-se na cama e, sem mais rodeios, dormiu.

Na manha seguinte, uma segunda-feira chuvosa, levantou-se e, como de costume, foi ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes, a essa altura já estava acostumado com os olhos dispares, fitou a cicatriz ainda tentando lembrar-se de como ocorrera. Sabia que perdia horas, dias e até semanas, ficara sem o emprego por isso, sumir sem dar nenhuma explicação não era um bom jeito de manter o emprego, mesmo que seu patrão fosse o irmão caçula; sua cabeça tornou a doer com força.

Às vezes, pensava que seu irmão não fora solidário com ele, afinal, deveria ter tentado entender o que estava acontecendo, sentia-se caindo, afundando, sem que ninguém tentasse impedi-lo... Ou pior, como se não se importassem. Sentia o mundo sobre sua cabeça, caindo, com violência e sem piedade. Olhou a si mesmo no espelho, a testa tensa, suada, o cabelo já despenteado, a barba por fazer. Tomou outro comprimido, para a dor, e lavou o rosto, olhou-se no espelho novamente: um de seus olhos parecia mais escuro, ignorou, pensando ser somente imaginação: Tudo o que queria era descansar; isso era o que precisava. Tirou o sapato e deitou-se na cama, ligou o ar condicionado – como estava quente! – fechou os olhos e a dor enfraqueceu, para seu alivio, adormeceu.

-Caim! O que você está fazendo? Me solta!

-Abel? O quê? O que está acontecendo? Minha cabeça dói! Onde estamos?

-Você está fora de si, se me soltar eu não vou chamar a polícia, eu sou seu irmão, não faça nada de que você se arrependa!

-Não estou entendendo! O que é isso? Por que está amarrado nessa cadeira? - Ai! Minha cabeça! Agora não! Preciso ajudá-lo... O pânico aumentava na mesma proporção que sua dor de cabeça, parecia-lhe que iria explodir a qualquer momento

-Eu não entendo... Como vim parar aqui? Será que eu matei aquelas pessoas? - Pensou.

- Não, fui eu!

O horror e a perplexidade tomaram conta de seu corpo, e percebia que havia mais uma pessoa com ele, ou melhor, nele.

-Estou ficando louco!

-Não, você não está, eu é quem sou psicótico, você é só uma casca, que eu uso para me esconder!

Caim agarrou Abel, suas mãos firmes, no ombro do outro, já não sentiam mais nada, sangue escorria, a vista, escura, o deixava com medo, não entendeu o que estava acontecendo: suor e sangue pairavam no ar. Por que o irmão estava agindo como estava? Demitindo-o, ignorando-o e o acordando no meio da madrugada com as mãos envoltas em torno de sua garganta; respirou, ofegante.

A cabeça doía, seus olhos também, queria colocar um fim naquilo, tomar seus comprimidos e voltar a dormir – Precisava dormir – Sentiu um pico de dor e desviou sua atenção; quando voltou a si, o corpo do irmão jazia no chão, frio; um arco roxo envolta do pescoço, o pomo de adão esmagado; uma das orelhas fora arrancada com uma mordida... O gosto de sangue na boca de Caim denunciou a verdade, mas como poderia ter acontecido?

Caiu no chão, o cérebro palpitava, como se trovões passassem por ali, olhou para sua frente, avistou uma luz, longínqua, o corpo de seu irmão começava a se desfazer no chão, um cântico o chamava, o trazia para longe: a sala começou a se fechar, as paredes pareciam querer prendê-lo ali, condenando-o à morte pelo crime que cometera; não somente assassinato, mas fratricídio; naquele momento, impotente, sentiu com exatidão o que é ser claustrofóbico, se tinha esperança, ela resumia-se na distante luz, que ia parando de brilhar...

Numa desesperada tentativa de sobreviver, deu início a uma corrida, sem nem ao bem ver para onde estava indo. A cada passo, a cabeça parecia doer mais. Sentiu uma barreira se quebrar, o ar fresco e frio. Abriu os braços, abraçou a morte.