Eu, eu mesmo e todos os outros
(RSollberg)
(RSollberg)
É um domingo sombrio em plena terça-feira. A cerveja chega fervente enquanto a batata frita murcha está congelada por dentro. Olho para o atendente, tentando descobrir se ele é novo no local, se tem Demência em estágio avançado ou se quer apenas me sacanear. Nunca fui bom com apostas, por isso fico com “todas as anteriores” (mesmo sabendo da ausência de lógica nessa opção). Despejo o líquido quente no chão da minha garganta e deixo o prato cheio ornamentando o balcão gorduroso. Imagino um vaso de tulipas em um parapeito de coxinhas. Jogo algumas unidades da maior invenção do homem na mesa submersa em restos, e percebo que agora não me resta mais nada de valor.
- Há mais coisa entre o ignorante e o escolado, Inácio, do que sonha nossa vã teosofia - digo para o Pastor sem rebanho que está do outro lado de todos os lados.
Saio dali fingindo ter a dignidade que todos sabem que não tenho. Metade dos meus olhos está perdida no horizonte, a parte restante pisca sem parar tentando permanecer acordada. Tento sincronizar o soluço e a passada, mas o celular começa a vibrar no bolso interrompendo toda a contagem. Merda! Nem sei porque diabos estou contando... Nem sei se diabos sabem contar. Escrevo “numerologia satânica” no bloco de notas que carrego junto ao peito, que é justamente o mais próximo do que tenho de um coração.
Vago sem rumo, mas com objetivo certo, como uma abelha com Alzheimer em busca da colmeia. Lembro-me do idiota do bar que frita as cervejas e assopra as batatas. A raiva me consome... Torço para um bandido vir me assaltar. Quero um marginal magricela, esfomeado e desnorteado, que irá receber toda a fúria burguesa de minha indignação estática. Vou socar a cara dele, pensando em todos os roubos que sofri. Todos os calotes que tomei. Não será somente uma vendeta pessoal, será por todos os desvios de verba e pelos saques ao museu do Cairo. Pelo fim da Pepsi twist light e o aumento do metrô. E pelos vinte centavos, obviamente.
Passo por uma mulher idosa que na boca só tem espaços. Seus lábios são rachados e o rosto um belo rejunte de fissuras. Ela ri, sua gengiva é vermelha, lisa, linda, seus dentes provavelmente não eram. O tempo diário que os dentistas recomendam para a escovação: 10 minutos por dia. Ou seja, 60 horas por ano...75 dias que perdi em minha vida de poucos sorrisos. Calculo sem precisar de diabos.É tempo suficiente para comprar uma bela dentadura e escrever um livro de autoajuda. Dou-me conta de que a velha tem uma vantagem enorme de divina ociosidade, mas não acredito que ela tenha dormido mais do que eu. Certamente não. Tem gente que se arrepende de ter dormido muito, comigo é ao contrário, constantemente me arrependo de estar acordado. Não sei se estou acordado?
Engraçado como as pessoas vivem buscando significado para nossa patética existência. Idiotas que acham que somos úteis para alguma coisa que não seja o nosso próprio rabo. Talvez se ainda tivéssemos cauda? E aqueles “Doutores” – imbecis diplomados – que passam dez anos ininterruptos estudando – máquinas dotadas de estupidez infinita – para finalmente descobrirem que ácido borrifado em olhos de coelhos pode causar cegueira. Descartes para criancinhas com moléstia cerebral. Garantia etérea de um quadro na parede e alguns pronomes ridículos de tratamento – ineficazes. Paliativos que só disfarçam mediocridade. Mimetismo obtuso. Ctrl + C e Ctrl + V de pincenê. “Método com discurso ecolálico de puro zotismo” diria eu, se fosse um deles. Um instante... Sou ou não sou, eis a questão. “TODAS AS ANTERIORES” grito no meio da noite, entre os fantasmas que se acotovelam ao meu lado.
Caminho e falo sozinho, como um daqueles artistas geniais que falam de sua vida genial e suas carreiras geniais em um comercial de telefonia móvel. Será que eu seria um bom garoto propaganda para uma campanha de revitalização do teletrim? Código Morse, sinal de fumaça, ou pombos correios? Quem sabe...
Como será que é a vida de um equilibrista de sinal? Será que eles também se perguntam como deve ser a vida de um burocrata que pergunta bêbado como será que é a vida de um equilibrista de sinal? Acho que o equilíbrio é um mito. Uma daquelas coisas inventadas para equilibrar as coisas. Reflito sobre isso, enquanto minhas pernas bamboleantes tentam manter o meu corpo em pé. “FengShui para ébrios” anoto no caderno ou cardioerno, melhor dizendo.
“Não é fácil ser um cara positivo em mundo cheio de elétrons” – diria o professor de química idiota que inventei para o telecurso 2000, que acontece na minha mente sem instrução.
Tropeço. Caio no chão. Rio sem parar. Um corte na cabeça não consegue cortar os pensamentos. Encaro o teto do mundo, encaro os prédios enfileirados na ponta do cartão postal. O teto de muitas construtoras, o topo de muitos engenheiros, o cume de muitos funcionários que carimbam a autorização e assim conseguem suas coberturas. O círculo vicioso e vertical.
Imagino como é ser arremessado do maior prédio do mundo, só para sentir a leveza antes de alcançar o concreto frio. Em um roteiro, escolheria a voz do Clint Eastwood para dizer:“Dessa maneira saberão do que sou feito, todos irão ver os neutrinos escapando pelas fendas,
“Nesse mundo cheio de maldita gravidade, nenhuma leveza te fará ascender”, gravo mentalmente enquanto procuro a caneta que caiu do meu bolso. Levanto-me como um cowboy que acabou de descer do cavalo. Saco minha arma imaginária e aponto para um casal jovem que tenta me contornar.
- Só no dia em que conseguir revolver as balas do revólver”- digo com a voz do Clint Eastwood ecoando na minha cabeça.
O rapaz me olha amedrontado. Todavia, um macho beta sempre reconhece outro macho beta. O duelo nunca é físico. Levo um tiro no peito e me curvo um pouco. Ele sorri pra mim. Retiro um chapéu que não possuo e faço uma mesura para sua dama. O casal sai gargalhando, uma história que contarão pelo resto de suas vidas. Contarão para os seus filhos obesos e com déficit de atenção, não importa, pois para eles será eterno. Meu sorriso dura alguns segundos enquanto vejo eles se afastarem de mãos dadas.
Sinceramente, não sei por que nunca inventaram um Antabuse para amor. Todas as vezes que ingerisse traços de paixão – ainda que em doses homeopáticas – vomitaria, automaticamente, rios de repulsa. Nojo encapsulado ou adesivos com endorfina – manipulados de modo exagerado – para repelir os acasos de Eros. O mundo definitivamente seria mais fácil, ainda que um pouco mais turvo e mal cheiroso.
É a Vida que segue no compasso da trinca mágica. Esperma, lágrimas e bile. Consubstanciação etílica. Baco elevado à terceira potência, com cubos de gelo.
Chego em casa do mesmo jeito que sai, norteado por toda desorientação do mundo. Vou até a varanda e fico ali, nu. Com as veias expostas, sentindo os raios lunares gélidos ricochetearem em minha pele. Protegido por grossas meias acinzentadas que sustentam qualquer temperatura – camisinhas termostáticas para os pés.
Preciso dormir, afinal amanhã será uma segunda-feira de ressaca em uma terça-feira chuvosa. Quando acordar, serei eu o atendente abobalhado que gela batatas e requenta cervejas. O malabarista sem equilíbrio que quer saltar, mas tem medo de altura. Quem atira primeiro no duelo e sonha com crianças diabéticas. Serei aquele que procura o receituário que prescreve o antabuse para o amor. Serei o outro.
Eu, eu mesmo e os outros.
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