Síndrome Dissociativa Adquirida
(Ashur)
(Ashur)
14/03/2112
É tudo mentira. Este não sou eu.
15/03/2112
Dizem que a síndrome dissociativa adquirida pode atingir qualquer um que tenha passado da adolescência, não importa sua herança genética, ou sua condição de saúde. É uma doença silenciosa e apavorante, surgida nos últimos anos, ninguém sabe de onde, pior que AIDS, câncer, ou qualquer das epidemias do século XXI. Mas também é o tipo de coisa que você ouve falar que aconteceu com o conhecido de algum conhecido, ou com algum operário de outro turno. Não é algo que você imagine descobrir ao acordar de manhã cedo.
Acho que foi por isso que, depois de ler meu diário - a primeira coisa que faço ao acordar, geralmente para escrever algum sonho que tive de noite - eu fiquei me olhando no espelho, tentando ver se enxergava alguma pista de que havia algo de errado. Era o meu próprio rosto me olhando, não tinha ninguém diferente no reflexo na minha frente. Talvez eu estivesse só imaginando coisas, sabe, vendo fantasmas.
Agora escrevi isto no diário, numa nova página, coisa que nunca faço. Eu nem pulo linhas, tentando fazer as páginas renderem ao máximo, mas não desta vez. Desta vez eu comecei uma nova folha e estou escrevendo o que passa na minha cabeça. Quer dizer, deve ter uma centena de explicações. Talvez uma piada de algum operário dos outros quartos, que pegou meu diário de noite, escreveu umas frases nele, e colocou de volta no mesmo lugar. Ou então é só algum tipo de sonambulismo, eu escrevi meio dormindo e não lembro. Pior que não parece minha letra. Quer dizer, parece, mas toda solta, desalinhada, ocupando quase duas linhas.
"Você está racionalizando...". É só minha voz interior? Ou será que já tem alguém falando na minha cabeça, começando a substituir minha mente pela dele. Meu Deus, estou ficando paranóico.
16/03/2112
Estou me sentindo ao mesmo tempo ridículo e aliviado. Eu fiquei com medo de abrir o diário e encontrar algum outro texto que não me lembre de ter escrito.
Passei o dia mal, na fábrica. Eu sei que eu devia me reportar ao meu controlador imediatamente, só por ter uma suspeita de ter a síndrome dissociativa, mas eu passei o dia repetindo para mim mesmo que estava imaginando coisas.
Eu abri o diário na página anterior. "É tudo mentira. Este não sou eu.". Será que não foi um sonho que eu tive, e escrevi quando acordei, só não lembro?
Eu faço um acordo comigo mesmo. Se não acontecer mais nada, nenhum lapso de memória, nenhum texto misterioso no diário, enfim, nenhum outro sintoma da síndrome, eu vou esquecer este assunto. Prometo, aqui mesmo, que não vou perder o sono com isto.
12/04/2112
Faz quase um mês que não abro esse diário. Acho que tinha medo de encontrar algum outro texto escrito de forma misteriosa, mas felizmente não tem nada desde minha última anotação. É hora de voltar à rotina, continuar escrevendo o que aconteceu nas últimas semanas, como sempre faço.
O clima está tenso na fábrica. Há rumores que há algum rebelde entre nós, operários, e tivemos várias paradas da operação e interrogatórios. Isto me deixou com raiva, pensar que pode haver algum terrorista a solta, como se ainda vivêssemos no século XXI. Não dá para entender que alguém possa querer perturbar a harmonia da sociedade.
Sandra e eu conversamos a respeito, no intervalo. Ela veio de outra fábrica, transferida, uns meses atrás, e às vezes nós conversamos. Começo a achar que ela talvez goste de mim. Mas nós estávamos falando sobre como nunca antes, na história humana, se chegou tão perto de uma sociedade perfeita. Todos sabem seu lugar, e estão felizes onde estão. Nós, operários, os controladores, e os líderes. Três níveis trabalhando juntos para o bem comum. Nunca, antes, as pessoas tinham tão claro seu papel e importância. Isso só torna mais absurdo pensar que alguém pode querer destruir o que construímos.
Vou escrever mais seguido. Não tenho razão para ter medo, não tenho a síndrome, a frase que apareceu no meu diário é só mais um desses mistérios inexplicáveis.
20/04/2112
Estou com tanto nojo do que aconteceu hoje que quase vomitei.
Realmente temos um rebelde na fábrica. Um ou mais. Eles invadiram o sistema e publicaram uma mensagem na tela de todos os computadores dos operários, algo tão obsceno que eu preferia simplesmente esquecer. Na verdade não deveria ter lido, não sei explicar por que li, e espero que ninguém descubra.
A mensagem parecia um discurso saindo das loucuras do final de século XXI. Os controladores estão fazendo entrevistas com cada operário, perguntando quem leu. Alguns voltaram confusos, acho que apagaram a memória de curta duração deles. Na minha vez com meu controlador, eu disse que fechei os olhos e não li o texto. Creio que ele não percebeu que eu menti.
Mas, no fundo, os controladores estão certos. O texto era horrível e eu nunca mais quero ler nada como aquilo. Só quero apagar da minha mente.
21/04/2112
Nossos pais eram humanos. E livres. Eles amavam, tinham filhos, construíam famílias, escolhiam o seu futuro. Eles eram como os líderes. Só havia líderes. Todos éramos líderes, não havia inferiores. Não havia controladores e operários assexuados, escravos vivendo apenas para servir, gerados em série em incubadoras. Nossos pais eram livres, e nós podemos ser também.
22/04/2112
Eu estou apavorado. Eu tenho que falar com meu controlador. Mostrar para ele meu diário. Tem um monstro invadindo meu cérebro, um monstro que me fez copiar a mensagem rebelde.
Mas o que vão fazer comigo? A síndrome tem cura? Ou só vão apagar minha mente, danificada demais para ser tratada? Não quero ter minha memória zerada.
Tenho que saber mais sobre a síndrome, para decidir o que fazer.
Estou com medo.
25/04/2112
Na síndrome dissociativa adquirida, uma doença cada vez mais comum entre operários, uma segunda personalidade começa a se formar na mente do indivíduo, gradativamente tomando o lugar da personalidade real. O indivíduo geralmente torna-se agressivo e um perigo para a sociedade. O tratamento definitivo pode exigir reinicializar completamente a memória e personalidade do operário, se não houver sucesso em controlar os sintomas.
Levei uns dias para conseguir esta informação, veio diretamente de um acesso internet de um controlador. Só me deixou mais nervoso.
Eu deveria falar com meu controlador, mas estou com medo. Talvez a doença não piore sempre, talvez estabilize. Eu só escrevi algumas frase no meu diário, só isso.
Não quero que zerem completamente minha memória.
12/06/2112
Não sei por que fiquei tanto tempo sem escrever. Talvez tenha sido o mais correto, talvez a síndrome só me ataque enquanto escrevo. Talvez seja bobagem, não sei, não parece fazer sentido.
As coisas pioraram muito na fábrica. Têm rumores todos os dias, meus colegas estão assustados. Dizem que uma fábrica inteira, em Brasília, foi desativada por causa dos rebeldes, e todos os operários foram mortos. O controlador da nossa divisão veio pessoalmente falar conosco. Ele disse que a fábrica foi realmente fechada, mas foi apenas uma reorganização de logística, e os operários foram realocados para outras fábricas. Só serviu para aumentar os rumores.
Hoje Sandra me disse que era como se 2100 estivesse acontecendo de novo. Eu não entendi, mas ela não quis me explicar. Amanhã vou perguntar de novo, não sei do que ela está falando, não tenho nenhuma memória tão antiga.
21/06/2112
Taijo.
Não sei quando ouvi este nome pela primeira vez, mas agora é só o que os operários falam. Taijo. Ele era um operário, parece, mas quis ser um líder, ou quis que todos os operários fossem líderes, algo assim. Foi o que aconteceu em 2100. E ele morreu.
Só que agora todo mundo fala que ele está vivo, que ele que está liderando os rebeldes.
Eu nunca tinha ouvido falar dele.
27/06/2112
Levaram Sandra embora.
28/06/2112
Sandra era uma rebelde. Como pude me enganar tanto com alguém. Nós conversamos sobre quão próximos estávamos da sociedade ideal, e todo o tempo ela só queria destruir tudo isso.
Devem ter zerado ela. Mesmo que tragam de volta para nossa unidade, o que duvido, vai ser como se fosse outra pessoa, não vai lembrar que eu existo.
Foi Sandra a primeira pessoa que me falou de Taijo. Ela devia estar espalhando os rumores sobre ele entre os outros operários. Talvez ele nem exista, nunca tenha existido.
10/07/2112
Não apareceu mais nada em meu diário, mas estou tendo lapsos de memória. Não sei desde quando, mas tenho certeza de que eles acontecem. Comecei a desconfiar e passei os últimos dias a controlar meu relógio, tipo olhando de dez em dez minutos. Hoje teve um momento que mais de uma hora havia se passado, como se simplesmente tivesse sumido da minha vida.
As coisas também só pioraram na fábrica. Além de Sandra, levaram vários outros operários embora. Já ouvi duas ou três conversas estranhas, operários falando heresias. Eu devia ter ido ao controlador, mas hesitei. Tenho medo de delatar os outros e alguém revelar alguma coisa sobre meus lapsos de memória. Se descobrirem que estou com a síndrome, não sei o que vão fazer comigo.
Sinto falta de Sandra.
15/07/2112
Eu tenho que tomar coragem.
Um homem precisa viver pelas suas crenças. Não pode viver com medo. E eu acredito na nossa sociedade. Eu acredito na divisão entre operários, controladores e líderes, e no meu papel como operário, e vou defender a harmonia que construímos.
É fácil falar. Eu tenho medo. Mas não tenho escolha.
Ontem eu ouvi uma conversa sobre Taijo. Ele apareceria na fábrica nos próximos dias, estava planejando alguma grande ação de mobilização de operários. Um mês atrás eu mal havia ouvido falar neste nome, mas agora parecia que todos os meus colegas o admiravam e só falavam nele. É como se todos estivessem contaminados por algum tipo de loucura, como se todos os operários da fábrica estivessem com síndrome dissociativa em grau avançado.
Amanhã eu irei alertar meu controlador que Taijo irá aparecer aqui. E vou revelar que tenho a síndrome e confiar que meus controladores e líderes saibam o que é o melhor para meu caso. Deveria ter feito isto no primeiro sinal da doença, meses atrás.
16/07/2112
Meu controlador está morto.
Eu o matei.
Eu não faço ideia do que aconteceu, só sei que ele estava caído no chão, e eu estava com as mãos ensanguentadas por cima dele. A última coisa que lembro era de avisá-lo que os operários iriam fazer alguma coisa nos próximos dias.
Agora estou trancado em meu quarto, tremendo. Só estou escrevendo para me acalmar.
Vou sair pela porta, e apertar o botão de alarme para acionar a segurança. E vou me entregar. O mais importante é deter os outros operários antes que cometam alguma loucura. Preciso alertar os líderes que Taijo planeja alguma coisa.
17/07/2112
Eu acordei parado na frente do alarme, ontem. Tocá-lo teria estragado tudo, as tropas teriam vindo antes de termos tipo tempo de evacuar a fábrica.
Foi por pouco, mas não importa, eu posso sentir que agora não vai haver recaídas.
Onze anos perdidos, mas podia ser pior. Foi sorte terem apenas apagado minha mente junto com os outros, sem saberem quem eu realmente era.
Eu li o diário desta coisa, deste robô que quiseram que ocupasse meu lugar. Síndrome dissociativa adquirida. Que piada inventaram para explicar nossas memórias voltando, nossas mentes ressurgindo.
Desta vez ninguém vai apagar minha mente. Sandra arriscou tudo para me encontrar, me ajudar a lembrar, e eu devo isso a ela.
Eu não vou falhar como falhei 11 anos atrás.
E ninguém vai me fazer abandonar minha luta.
Nem me fazer esquecer meu próprio nome:
Taijo.
Confira também
<< -- Uma Porta entreaberta
É tudo mentira. Este não sou eu.
15/03/2112
Dizem que a síndrome dissociativa adquirida pode atingir qualquer um que tenha passado da adolescência, não importa sua herança genética, ou sua condição de saúde. É uma doença silenciosa e apavorante, surgida nos últimos anos, ninguém sabe de onde, pior que AIDS, câncer, ou qualquer das epidemias do século XXI. Mas também é o tipo de coisa que você ouve falar que aconteceu com o conhecido de algum conhecido, ou com algum operário de outro turno. Não é algo que você imagine descobrir ao acordar de manhã cedo.
Acho que foi por isso que, depois de ler meu diário - a primeira coisa que faço ao acordar, geralmente para escrever algum sonho que tive de noite - eu fiquei me olhando no espelho, tentando ver se enxergava alguma pista de que havia algo de errado. Era o meu próprio rosto me olhando, não tinha ninguém diferente no reflexo na minha frente. Talvez eu estivesse só imaginando coisas, sabe, vendo fantasmas.
Agora escrevi isto no diário, numa nova página, coisa que nunca faço. Eu nem pulo linhas, tentando fazer as páginas renderem ao máximo, mas não desta vez. Desta vez eu comecei uma nova folha e estou escrevendo o que passa na minha cabeça. Quer dizer, deve ter uma centena de explicações. Talvez uma piada de algum operário dos outros quartos, que pegou meu diário de noite, escreveu umas frases nele, e colocou de volta no mesmo lugar. Ou então é só algum tipo de sonambulismo, eu escrevi meio dormindo e não lembro. Pior que não parece minha letra. Quer dizer, parece, mas toda solta, desalinhada, ocupando quase duas linhas.
"Você está racionalizando...". É só minha voz interior? Ou será que já tem alguém falando na minha cabeça, começando a substituir minha mente pela dele. Meu Deus, estou ficando paranóico.
16/03/2112
Estou me sentindo ao mesmo tempo ridículo e aliviado. Eu fiquei com medo de abrir o diário e encontrar algum outro texto que não me lembre de ter escrito.
Passei o dia mal, na fábrica. Eu sei que eu devia me reportar ao meu controlador imediatamente, só por ter uma suspeita de ter a síndrome dissociativa, mas eu passei o dia repetindo para mim mesmo que estava imaginando coisas.
Eu abri o diário na página anterior. "É tudo mentira. Este não sou eu.". Será que não foi um sonho que eu tive, e escrevi quando acordei, só não lembro?
Eu faço um acordo comigo mesmo. Se não acontecer mais nada, nenhum lapso de memória, nenhum texto misterioso no diário, enfim, nenhum outro sintoma da síndrome, eu vou esquecer este assunto. Prometo, aqui mesmo, que não vou perder o sono com isto.
12/04/2112
Faz quase um mês que não abro esse diário. Acho que tinha medo de encontrar algum outro texto escrito de forma misteriosa, mas felizmente não tem nada desde minha última anotação. É hora de voltar à rotina, continuar escrevendo o que aconteceu nas últimas semanas, como sempre faço.
O clima está tenso na fábrica. Há rumores que há algum rebelde entre nós, operários, e tivemos várias paradas da operação e interrogatórios. Isto me deixou com raiva, pensar que pode haver algum terrorista a solta, como se ainda vivêssemos no século XXI. Não dá para entender que alguém possa querer perturbar a harmonia da sociedade.
Sandra e eu conversamos a respeito, no intervalo. Ela veio de outra fábrica, transferida, uns meses atrás, e às vezes nós conversamos. Começo a achar que ela talvez goste de mim. Mas nós estávamos falando sobre como nunca antes, na história humana, se chegou tão perto de uma sociedade perfeita. Todos sabem seu lugar, e estão felizes onde estão. Nós, operários, os controladores, e os líderes. Três níveis trabalhando juntos para o bem comum. Nunca, antes, as pessoas tinham tão claro seu papel e importância. Isso só torna mais absurdo pensar que alguém pode querer destruir o que construímos.
Vou escrever mais seguido. Não tenho razão para ter medo, não tenho a síndrome, a frase que apareceu no meu diário é só mais um desses mistérios inexplicáveis.
20/04/2112
Estou com tanto nojo do que aconteceu hoje que quase vomitei.
Realmente temos um rebelde na fábrica. Um ou mais. Eles invadiram o sistema e publicaram uma mensagem na tela de todos os computadores dos operários, algo tão obsceno que eu preferia simplesmente esquecer. Na verdade não deveria ter lido, não sei explicar por que li, e espero que ninguém descubra.
A mensagem parecia um discurso saindo das loucuras do final de século XXI. Os controladores estão fazendo entrevistas com cada operário, perguntando quem leu. Alguns voltaram confusos, acho que apagaram a memória de curta duração deles. Na minha vez com meu controlador, eu disse que fechei os olhos e não li o texto. Creio que ele não percebeu que eu menti.
Mas, no fundo, os controladores estão certos. O texto era horrível e eu nunca mais quero ler nada como aquilo. Só quero apagar da minha mente.
21/04/2112
Nossos pais eram humanos. E livres. Eles amavam, tinham filhos, construíam famílias, escolhiam o seu futuro. Eles eram como os líderes. Só havia líderes. Todos éramos líderes, não havia inferiores. Não havia controladores e operários assexuados, escravos vivendo apenas para servir, gerados em série em incubadoras. Nossos pais eram livres, e nós podemos ser também.
22/04/2112
Eu estou apavorado. Eu tenho que falar com meu controlador. Mostrar para ele meu diário. Tem um monstro invadindo meu cérebro, um monstro que me fez copiar a mensagem rebelde.
Mas o que vão fazer comigo? A síndrome tem cura? Ou só vão apagar minha mente, danificada demais para ser tratada? Não quero ter minha memória zerada.
Tenho que saber mais sobre a síndrome, para decidir o que fazer.
Estou com medo.
25/04/2112
Na síndrome dissociativa adquirida, uma doença cada vez mais comum entre operários, uma segunda personalidade começa a se formar na mente do indivíduo, gradativamente tomando o lugar da personalidade real. O indivíduo geralmente torna-se agressivo e um perigo para a sociedade. O tratamento definitivo pode exigir reinicializar completamente a memória e personalidade do operário, se não houver sucesso em controlar os sintomas.
Levei uns dias para conseguir esta informação, veio diretamente de um acesso internet de um controlador. Só me deixou mais nervoso.
Eu deveria falar com meu controlador, mas estou com medo. Talvez a doença não piore sempre, talvez estabilize. Eu só escrevi algumas frase no meu diário, só isso.
Não quero que zerem completamente minha memória.
12/06/2112
Não sei por que fiquei tanto tempo sem escrever. Talvez tenha sido o mais correto, talvez a síndrome só me ataque enquanto escrevo. Talvez seja bobagem, não sei, não parece fazer sentido.
As coisas pioraram muito na fábrica. Têm rumores todos os dias, meus colegas estão assustados. Dizem que uma fábrica inteira, em Brasília, foi desativada por causa dos rebeldes, e todos os operários foram mortos. O controlador da nossa divisão veio pessoalmente falar conosco. Ele disse que a fábrica foi realmente fechada, mas foi apenas uma reorganização de logística, e os operários foram realocados para outras fábricas. Só serviu para aumentar os rumores.
Hoje Sandra me disse que era como se 2100 estivesse acontecendo de novo. Eu não entendi, mas ela não quis me explicar. Amanhã vou perguntar de novo, não sei do que ela está falando, não tenho nenhuma memória tão antiga.
21/06/2112
Taijo.
Não sei quando ouvi este nome pela primeira vez, mas agora é só o que os operários falam. Taijo. Ele era um operário, parece, mas quis ser um líder, ou quis que todos os operários fossem líderes, algo assim. Foi o que aconteceu em 2100. E ele morreu.
Só que agora todo mundo fala que ele está vivo, que ele que está liderando os rebeldes.
Eu nunca tinha ouvido falar dele.
27/06/2112
Levaram Sandra embora.
28/06/2112
Sandra era uma rebelde. Como pude me enganar tanto com alguém. Nós conversamos sobre quão próximos estávamos da sociedade ideal, e todo o tempo ela só queria destruir tudo isso.
Devem ter zerado ela. Mesmo que tragam de volta para nossa unidade, o que duvido, vai ser como se fosse outra pessoa, não vai lembrar que eu existo.
Foi Sandra a primeira pessoa que me falou de Taijo. Ela devia estar espalhando os rumores sobre ele entre os outros operários. Talvez ele nem exista, nunca tenha existido.
10/07/2112
Não apareceu mais nada em meu diário, mas estou tendo lapsos de memória. Não sei desde quando, mas tenho certeza de que eles acontecem. Comecei a desconfiar e passei os últimos dias a controlar meu relógio, tipo olhando de dez em dez minutos. Hoje teve um momento que mais de uma hora havia se passado, como se simplesmente tivesse sumido da minha vida.
As coisas também só pioraram na fábrica. Além de Sandra, levaram vários outros operários embora. Já ouvi duas ou três conversas estranhas, operários falando heresias. Eu devia ter ido ao controlador, mas hesitei. Tenho medo de delatar os outros e alguém revelar alguma coisa sobre meus lapsos de memória. Se descobrirem que estou com a síndrome, não sei o que vão fazer comigo.
Sinto falta de Sandra.
15/07/2112
Eu tenho que tomar coragem.
Um homem precisa viver pelas suas crenças. Não pode viver com medo. E eu acredito na nossa sociedade. Eu acredito na divisão entre operários, controladores e líderes, e no meu papel como operário, e vou defender a harmonia que construímos.
É fácil falar. Eu tenho medo. Mas não tenho escolha.
Ontem eu ouvi uma conversa sobre Taijo. Ele apareceria na fábrica nos próximos dias, estava planejando alguma grande ação de mobilização de operários. Um mês atrás eu mal havia ouvido falar neste nome, mas agora parecia que todos os meus colegas o admiravam e só falavam nele. É como se todos estivessem contaminados por algum tipo de loucura, como se todos os operários da fábrica estivessem com síndrome dissociativa em grau avançado.
Amanhã eu irei alertar meu controlador que Taijo irá aparecer aqui. E vou revelar que tenho a síndrome e confiar que meus controladores e líderes saibam o que é o melhor para meu caso. Deveria ter feito isto no primeiro sinal da doença, meses atrás.
16/07/2112
Meu controlador está morto.
Eu o matei.
Eu não faço ideia do que aconteceu, só sei que ele estava caído no chão, e eu estava com as mãos ensanguentadas por cima dele. A última coisa que lembro era de avisá-lo que os operários iriam fazer alguma coisa nos próximos dias.
Agora estou trancado em meu quarto, tremendo. Só estou escrevendo para me acalmar.
Vou sair pela porta, e apertar o botão de alarme para acionar a segurança. E vou me entregar. O mais importante é deter os outros operários antes que cometam alguma loucura. Preciso alertar os líderes que Taijo planeja alguma coisa.
17/07/2112
Eu acordei parado na frente do alarme, ontem. Tocá-lo teria estragado tudo, as tropas teriam vindo antes de termos tipo tempo de evacuar a fábrica.
Foi por pouco, mas não importa, eu posso sentir que agora não vai haver recaídas.
Onze anos perdidos, mas podia ser pior. Foi sorte terem apenas apagado minha mente junto com os outros, sem saberem quem eu realmente era.
Eu li o diário desta coisa, deste robô que quiseram que ocupasse meu lugar. Síndrome dissociativa adquirida. Que piada inventaram para explicar nossas memórias voltando, nossas mentes ressurgindo.
Desta vez ninguém vai apagar minha mente. Sandra arriscou tudo para me encontrar, me ajudar a lembrar, e eu devo isso a ela.
Eu não vou falhar como falhei 11 anos atrás.
E ninguém vai me fazer abandonar minha luta.
Nem me fazer esquecer meu próprio nome:
Taijo.
O que você achou? Dê sua opinião.
Confira também
<< -- Uma Porta entreaberta