Minha Morte
A lua, o vento, e a escuridão têm sido minhas únicas companhias nessa cidade. Depois daquela noite, que tem durado pela eternidade, nunca mais pude ver a luz do dia, nem sentir o calor do Sol. Ele me faz tanta falta...
Como agora, a Lua estava linda, cheia, clara, enfeitando a noite fresca e estrelada que fazia. Eu voltava de um bar no qual estivera com amigos. Fazia tanto tempo que eu não os encontrava, foi muito bom revê-los. Nunca mais pude fazer isso. A imortalidade é antes maldição que dádiva! É cruel ter que viver para ver morrendo todas as pessoas que se ama.
Uma sensação estranha percorreu meu corpo todo, um frio que eu nunca sentira antes. Parei num semáforo, apertei o botão, e esperei o sinal abrir. Dentro da minha cabeça, um homem surgiu , dizendo-me “venha, siga-me”.
O que era aquilo? O que estava acontecendo comigo? Eu ficara apavorada, queria chegar a minha casa o mais rápido possível. Não me sentia segura sozinha nas ruas de São Paulo à noite. Mesmo assim, foi como se alguma coisa me puxasse, como se uma vontade estranha a mim governasse minhas ações. Voltei-me para trás. Emergindo da escuridão, um homem vinha em minha direção. Não posso negar que era muito atraente, mas meu medo era grande. Tive o pressentimento de que uma coisa ruim aconteceria – eu não sabia o quanto estava certa...
Quanto mais perto ele chegava de mim, mais fortes eram as forças externas que me mantinham ali, parada, à mercê daquele estranho. Parando bem próximo de mim, disse “Venha, senhorita” em meu ouvido. Como ele sabia que eu era solteira?
Estava tomada pelo pior pavor que jamais sentira e ele pasceria sentir isso. Podia sentir meu coração acelerado e minha respiração ofegante. Sem poder lutar contra o que me fazia obedecer, segui o homem alto e pálido. O pavor que eu sentia era maior a cada segundo.
De repente, me vi sozinha numa rua escura e praticamente desabitada. O silencio fazia-me escutar o murmúrio do vento, isso me trouxe de volta do transe no qual eu estava.
Mas um frio nasceu dentro de mim, eu senti que ele se aproximava novamente. Dessa vez, o sujeito misterioso vinha de frente para mim. Ele vestia uma calça jeans, camisa preta social como as mangas dobradas até um pouco abaixo do cotovelo e sapatos pretos. Seus cabelos, também pretos, eram curtos e lisos, olhos bem claros e sua pele tinha uma palidez que não era normal.
Fui dando passos para trás, à medida que ele se aproximava de mim. Que bom que eu ainda conseguia controlar alguns dos músculos do meu corpo. Porém isso não era o suficiente para que eu pudesse fugir. Ele ia vindo para mim, me olhando profunda e fixamente dentro dos olhos. Senti como se minha alma inteira estivesse sendo obcervada por aquele homem sombrio que estava a minha frente.
Qualquer perspectiva de reação acabou quanto dei de costas com uma parede trás de mim. Era impossível continuar indo para trás. Mesmo assim, ele não parou de vir em minha direção, estava me alcançando... Por alguma razão, o misterioso sujeito não apressou o passo, continuou me olhando fixamente e vindo lentamente para perto de mim. Meu medo era tão forte que me paralisava...
Chegando bem próximo a mim, encostou-me contra a parede e, quase que docemente, acariciou meu resto. Fiquei surpresa por tamanha gelidez, suas mãos que, assim como todo seu corpo, eram muito frios. Tremi quando imaginei a comparação dele com um cadáver. Creio que ambos teriam praticamente a mesma temperatura. Foi acariciando meu pescoço e beijando minha boca, o frio crescia cada vez mais depois que fui tocada por ele.
Não havia uma lâmpada sequer iluminando-nos, a Lua foi a única testemunha do que me aconteceu. Como esquecer do vulto sinistro, daquela noite maldita na qual conheci a pior das condições a que se pode submeter um ser humano? Como esquecer o ser tenebroso no qual me transformei?
Bem, à luz azulada da Lua, a gelidez dentro de mim parecia aumentar mais e mais, a cada toque do homem que me agarrava. Mesmo com medo, não pode deixar de sentir um certo prazer. Lentamente, fui desabotoando sua camisa e perdendo a cabeça. Quando dei por mim, ela já estava jogada no chão. Tomada por um fogo que nascia dentro de mim (mesmo que incompatível com a situação) deixei que ele desatasse minha blusa, acariciasse meus seios e me beijasse. Era estranho, mas não deixava de ser bom. Não era um simples caso de abuso, aquele homem, mais do que ter prazer, também queria me dar prazer...
Eu esperava tudo, menos aquilo. Inesperadamente, senti uma dor inconcebível, dois objetos extremamente pontiagudos e cortantes enterraram-se profundamente em meu pescoço. Senti meu próprio sangue correr quente pelo meu ombro, ele me comprimia contra o próprio corpo, parecendo um animal voraz. O ser misterioso parecia rejubilar-se bebendo meu sangue, minha vida...
Involuntariamente, apertei-o o mais forte que pude, nas costas e no peito. Minhas unhas sempre foram cumpridas e resistentes. Pude sentir, com uma ponta de satisfação, que elas se enterraram na pele branca, indo pela carne fria do vampiro que me vitimava. Ingenuamente, eu tinha esperança de que ele me soltasse, mas estava enganada. Por um segundo, quando finquei-lhe as unhas, ele levantou o rosto, olhou para a Lua e gemeu de prazer. Meu sangue escorria por seu queixo, descendo pelo pescoço pálido da criatura. Ele estava alucinado... Seu sangue agora se misturava ao meu...
Tão inesperadamente quanto me mordera, o vampiro retirou as presas do meu pescoço. O prazer que mostrava no rosto se dissipara, dando lugar a uma tristeza aterradora, mesmo para uma criatura da noite. Abraçando-me forte, mantendo-me junto dele, numa atitude quase de ternura, curvou-se e me olhou.
Eu devia estar totalmente zonza, perdendo os sentidos (e realmente estava). De relance, pude ver uma lágrima vermelho-escura caindo da sue face, ele contemplava desoladamente a Lua. Tinha caído de joelhos, abraçando-me ainda. A gota rubra caiu certeiramente sobre meus lábios. Percebi que não me restava muito tempo de vida, meu sangue continuava a escorrer. Não sei por que instinto, bebi aquela gota, assinando minha condenação. O ser amaldiçoado me manteve agarrada a ele tempo suficiente para que eu bebesse de seu sangue.
Recobrei os sentidos, horas depois, no mesmo lugar em que tudo ocorrera. Em pânico, constatei que não tinha pulso. Nenhum ferimento, nenhuma dor... Nada! Foi a pior decepção da minha vida – e da minha morte. Eu não conseguia me conformar com os fatos... eu me transformei no ser que me assassinou!
Meu relógio marcava quatro horas, notei que os primeiros raios de um lindo Sol não demorariam por chegar. Pensei, realmente pensei, em ficar lá e esperá-los. Seria melhor assim, tanto para mim quanto para outras pessoas que ainda vivem, ignorando nossa existência. Mas não foi isso que aconteceu.
Cambaleante e desolada, voltei rapidamente ao meu apartamento. Ainda bem que morava – e ainda moro – sozinha. Desde então, nunca mais uma janela foi aberta durante o dia, que demora cada vez mais a passar...
Hoje, quando olho no espelho e não vejo nada além da parede atrás de mim, me questiono a respeito do motivo pelo qual ainda protelo em por um fim a essa agonia eterna da minha morte. A dádiva da imortalidade nada é perto da maldição impregnada nessa solitária condição.
Porém, creio que não vai demorar. A janela já está aberta e o Sol logo nascerá...