CONFISSÕES
Irmã Clara estava exausta, tinha acordado às seis horas da manhã para rezar o rosário dedicado ao santo Papa, chegou mais cedo à capela para preparar a missa para o padre Bianco, padre italiano austero, do jeito que ela gostava, ainda rezava a missa em latim, depois da missa o café da manhã. Trabalhou a parte da manhã na horta do convento, durante a tarde na preparação de massa para hóstias da igreja da cidade, deu estudos às noviças sobre seu tema predileto – santidade – mais um rosário na capela e ensaio do coral. Realmente estava cansada.
Apesar de cansada ela era feliz, tinha entrado jovem no convento e sempre teve uma conduta irrepreensível, era muito estimada pelas madres superiores e respeitada pelas noviças, sua devoção servia de estímulo para as internas, assim como de inspiração e orgulho para toda a comunidade.
Seu quarto era bastante simples, uma cama, uma mesinha de canto, um armário, um pequeno banheiro adjacente, a foto do santo Papa com padre Bianco e na parede uma cruz com um grande rosário de prata com contas de ferro, um luxo que ela se dava de ter ao meio de tanta simplicidade.
Ela entrou em seu quarto, foi ao banheiro e, quando se preparava para tomar banho ouviu uma risada, pequena, abafada, mas uma risada de homem. Voltou ao quarto enrolada em uma toalha e, horrorizada tentou gritar, mas a voz lhe deixara, tentou andar, mas as pernas estavam paralisadas, sua cabeça girava e tentava raciocinar, havia um homem em seu quarto.
Era um senhor de cabelos grisalhos bem penteados para trás, terno branco impecável, olhos azuis profundos e bondosos, magro, esguio, elegante. Ele estava ali, parado, sentado em sua cama, de pernas cruzadas.
- Quem é o senhor? Balbuciou a irmã, tentando entender aquela situação.
Cuidadosamente o homem pegou a foto a inspecionava com cuidado.
- Quem é o senhor? Não pode entrar aqui, aliás, como o senhor conseguiu entrar? Sabia que suas perguntas não faziam sentido naquele momento, não entendia como ele poderia ter entrado no convento, como entrou em seu quarto trancado, mas sabia que aquele senhor era familiar.
- Acho que conheço o senhor, sempre vai à missa, certo?
O homem parou de olhar a foto e, fitando-a lhe deu um sorriso.
Só então irmã Clara notou que estava nua com um homem em seu quarto e não sentia vergonha.
- Sim, o senhor sempre vai à missa de domingo, senta-se no fundo e sai antes dela terminar.
O homem para de sorrir, olha nos olhos da irmã, seus olhos azuis parecem penetrar em sua alma e ela sente um frio na espinha, arrepios que não consegue controlar.
- “Não terás outros deuses diante de mim.” Disse finalmente o homem, sua voz era rouca, grave, a irmã sentiu aquela voz estremecer sua alma.
-Mas não tenho, eu cumpro todos os meus deveres e faço jejuns, caridades, eu devoto minha vida toda ao serviço de Deus, desde minha juventude, me orgulho de nunca ter vivido fora destes muros, eu tenho o respeito de todos e ninguém tem nada para dizer de mim, eu juro por Deus que...
- “Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão, por que o Senhor não terá por inocente o que tomar seu nome em vão.”
- Eu sei, conheço muito bem a Bíblia e é no capítulo vinte de êxodo que a minha está aberta, bem ali na cabeceira da minha cama, não precisa ficar recitando versículos...
-“Honrará teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá”.
- Eu tenho um chamado, tenho uma vocação, não podia deixar o convento para cuidar deles, não tenho culpa de terem ficado doentes, eu rezei vários rosários por eles, fiz jejum, paguei promessas, meus irmãos estavam lá e cuidaram deles até o último momento, De – ela parou – Ele levou a alma deles, foi a vontade Dele...
-“Não adulterarás.”
- Mentiroso, caluniador, nunca estive com um homem, eu...
O homem aponta para o rosto de padre Bianco, solta a foto e se levanta.
- Eu , eu, eu nunca fiz nada com ele, ele nem sabe do que eu sinto, mas eu me vigio, eu me sacrifico, é apenas uma atração que eu mortifico todos os dias. Nunca toquei o padre Bianco, eu...
O homem se aproximava, e sussurrando em seus ouvidos disse:
- “Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo.”
- Eu não cobiço, ser madre superior é apenas um sonho, sou boa, sou honesta, sou impecável sou...eu ...sou...
Sentia a mão do homem gentilmente acariciar o seu pescoço, já não lembrava do que estava dizendo, só sentia calor, êxtase e prazer. Caiu no chão, antes de desmaiar notou que aquele homem que a tocou como nunca antes o fora, que lhe deu mais prazer do que já a dera padre Bianco em todos os sonhos e fantasias que já tivera estava descalço, a barra de sua calça branca estava suja de barro, seus pés estavam imundos. Sua visão turvou, ela adormeceu.
No dia seguinte nada estava preparado para a missa, as irmãs acharam estranho. Foram ao quarto de irmã Clara, bateram à porta. Quando a madre superior chegou com a chave-mestra e entrou no quarto ficou horrorizada, algumas irmãs desmaiaram, ninguém acreditava no que via. Ela estava caída, nua, morta, com o rosário enrolado em seu pescoço e preso à cruz, a foto rasgada separando padre Bianco do santo Papa caída no chão.
Logo a notícia se espalhou pela cidade, ninguém acreditava que uma pessoa tão doce, tão boa, tão pura, tão santa como irmã Clara poderia ter se enforcado com um rosário. Seu velório não pôde ser na igreja e seu corpo não pôde ser enterrado nas dependências do convento.
Poucas pessoas seguiram o cortejo fúnebre, todos diziam que ela parecia em paz no caixão, porém, o maior comentário sobre seu velório era o olhar doce, o silêncio dolorido, da presença constante do único que seguiu o cortejo até o cemitério e, mesmo depois de enterrada, não saiu de perto da lápide – Era um senhor de cabelos grisalhos bem penteados para trás, terno branco impecável, olhos azuis profundos e bondosos, magro, esguio, elegante.