O Defunto
Foi numa noite de chuva, daquelas finas e insistentes, quando Paulo morreu. O que o levou não foi doença, seu coração batia bem dentro do peito e moléstia nenhuma o aborrecia, tampouco foi um acidente, pois era homem com excessos de cuidado que zelava pela segurança. Mesmo essa segurança não foi suficiente, Paulo agora era apenas mais um defunto tombado numa poça d’água. Na cabeça a prova de tal fato: um furo no meio da testa e um rombo na nuca, o rastro da bala que tirou sua vida.
Podia-se terminar aqui. Afinal quantos corpos são encontrados todas as manhãs vítimas de violência? Mas não era o caso, Paulo, mesmo morto, ainda teimava em viver, se alguém passasse por ali poderia pensar que um bêbado remexia-se no chão querendo se por de pé novamente, antes fosse. Paulo não se portava como um bêbado, movia-se aos trancos e solavancos, suas tentativas desajeitadas de se reerguer enfim surtiram efeito e ele se levantou. Parecia bêbado realmente, olhou de um lado a outro, um olhar vazio e sinistro, e apesar de não ter escolhido um rumo definido pôs-se a marchar.
Era uma cena no mínimo patética, Paulo andava aos tropeções, uma caminhada torta como se fosse uma dança mal interpretada, ergueu as mãos a frente do corpo como que para pegar alguma coisa, a cabeça estilhaçada estava levemente inclinada para um dos lados e de sua boca nada mais saia que não fossem grunhidos. Na verdade Paulo caminhava mais morto do que vivo.
A certa altura ele encontra um grupo de pessoas, jovens aproveitando a noite. Alguns riem de sua presença, ele nada fez. Outros ficam com medo ao perceberem a ferida na cabeça.
- Olha só o rombo na cabeça! Como ele consegue andar? – exclamam.
E Paulo prossegue sua marcha. Os jovens apenas observam, pensam se não seria melhor chamar uma ambulância ou talvez a polícia, mas logo deixam aquele sujeito seguir seu rumo enquanto seguem os seus.
Assim segue aquele defunto no meio da noite, teimando em permanecer no mundo dos vivos. Sobe a rua que um dia foi sua, para em frente ao portão que um dia foi seu e se dirigi a casa que um dia o pertenceu.
E vindos lá de dentro ele pode ouvir berros enlouquecidos e choro reprimido. Mas Paulo se mantém calmo, com naturalidade leva a mão ao bolso como sempre fez e tira lá de dentro uma chave que insere na fechadura da porta. Enquanto ele faz o movimento lá dentro tudo se cala num silêncio repentino.
E Paulo abre a porta, como sempre fazia, mas, ao contrário de outras vezes, não é o abraço de sua mulher que o recebe e sim mais um balaço, desta vez no peito. E mais uma vez ele cai, e mais uma vez ele se levanta.
- Morre desgraçado! – grita um homem com uma arma na mão enquanto atira.
As balas furam o corpo de Paulo, um corpo já morto que nada mais sente. Já a alma de Paulo, esta também não sente dor alguma, pelo menos não a dor de chagas ou ferimentos, mas há outra dor, aquela dor que surge após a traição de um amigo.
Pois Paulo lembrava bem agora, mesmo com um rombo na cabeça sua memória ainda era nítida. As lembranças de seu melhor amigo, Henrique, com a arma na mão a atirar-lhe pelas costas só por causa de um bilhete de loteria.
“Agora Paulo” – disse Henrique após o crime – “Vou à tua casa e pegarei tua Maria nem que seja na força, pois amigo que é amigo divide até a mulher do defunto!”
Não Henrique, não hoje. Paulo não deixaria.
E nos mesmos movimentos trôpegos ele marchou pela última vez, mãos estendidas à frente tendo como destino o pescoço de Henrique que tremia paralisado de medo frente à aparição. Num canto, com as roupas rasgadas e sangue a sair da boca, Maria caía desmaiada, que assim fosse, a pobre já sofrera demais e não merecia ver o que aconteceria.
Querem saber o que aconteceu? Pois bem, eu lhes digo: naquela noite a Morte enfim fez um ato de justiça.