Sozinha

Assim, Emma chega em casa. O dia fora cansativo. Morar sozinha era chato, tedioso. Mas, pelo menos, tinha a privacidade que não encontrara morando com os pais. Larga a bolsa sobre o sofá, as roupas por sobre a cama e vai direto ao banheiro. Tudo o que ela quer é aliviar a tensão dos seus músculos. A água fria cai-lhe sobre as costas, amortizando as sensações. Ouve um ruído no corredor. Desliga o chuveiro e silencia. Seus sentidos aguçam-se. Nada mais ouve. Volta a ensaboar-se. Enquanto retira toda a espuma, de soslaio, pressente algo à porta do banheiro. Vira-se rapidamente a tempo apenas de ver uma sombra cinza desfazer-se em pleno ar. Solta um pequeno grito de pavor.

Mais que depressa, enrola-se no roupão e corre para a sala. Pega o aparelho de celular e disca um número.

-Alice?

-Oi Emma! O que houve?

-Alice, tem algo... Alguma coisa aqui em casa... Por favor, pode vir ficar comigo?

-Como assim alguma coisa?

-Não sei... Alguma coisa...

-Você anda assistindo muitos filmes de terror, Emma... Agora não posso ir, estou com o Brad. Só daqui a uma hora, uma hora e meia mais ou menos. Tudo bem? Pode esperar?

-Eu... Eu...- Emma titubeou- Espero sim. Vou me vestir e vou espera-la no bar.

A sensação de estar sendo observada não a abandonou. Vestiu-se com pressa e quase caiu descendo os degraus da escadaria que dava acesso ao térreo do prédio. Sentia o coração pulsar-lhe frenético no peito. Volta a olhar para o pico da escadaria de madeira e vê novamente aquela fumaça cinzenta desfazer-se no ar. Seu corpo está trêmulo.

Ao chegar ao bar, Nick, o barman, nota-lhe o nervosismo.

-Menina, o que houve? Você está branca como papel! Viu assombração?

Emma olhou para ele, mas nada respondeu. O medo travara-lhe as palavras. Só podia ser coisa de sua cabeça. Talvez efeito dos filmes de terror. Talvez Alice tivesse razão. Talvez... Virou-se para Nick e pediu-lhe uma dose grande de vodka. Engoliu num gole só. Seus pelos dos braços estavam arrepiados. Abriu uma das apostilas da faculdade que carregava na bolsa, mas não conseguiu concentrar-se. Pediu mais vodka. Na quinta dose, Nick voltou a perguntar:

- Emma, tem certeza que está tudo bem?

Emma resumiu o que lhe acontecera. Nick riu, nervosamente.

-Não há de ser nada. Você está delirando. Andou assistindo terror, não é? Aquelas farrinhas com seus amigos lá no seu apê. Dá nisso.

Emma reclamou com ele. Nick tinha a fama de ser afetado e retrucou-lhe um ou dois palavrões, saindo em seguida. Depois de mais duas doses de vodka e quase duas horas esperando Alice, em vão, Emma decidiu voltar para seu apartamento. Estava tonta. Quase caiu tentando alcançar o elevador. Não fosse Jonas, o filho do síndico, ela não teria conseguido. Els trocaram uma ou duas palavras. Jonas sempre fora muito gentil com ela e percebendo a triste situação de Emma, preocupou-se.

-Você vai ficar bem, moça?

Emma apenas sacudiu a cabeça. Jonas abriu a porta do apartamento dela com as chaves que Emma mesma lhe entregara. Acomodou-a no sofá e despediu-se. Mas ela agarrou-lhe um dos braços.

-Não vai! Fica comigo, por favor! Tem umas coisas nessa casa...

Emma olhava a sala, espantada. Jonas temeu a reação dela.

-Emma, já é tarde. Vá para seu quarto e durma. Seu mal é sono e bebida. Não há nada aqui!

-Tem sim... Uns vultos que aparecem e somem de repente... Tem coisa estranha aqui, vieram me pegar!

Jonas arrastou-a até o quarto e a fez deitar-se. Percebeu o quanto ela estava gelada e agora, lágrimas escorriam de seus olhos inchados. Ela não estava bem. Mas ele não podia ficar ali. Despediu-se e saiu, deixando a moça aos prantos, desesperada no apartamento sozinha.

Emma tentou se acalmar. Sua maquiagem estava borrada e ela pode ver-se pelo reflexo do espelho do guarda roupas. Parecia uma louca. Fechou os olhos e tentou dormir. “É tudo coisa da minha cabeça...”. Ela abre os olhos novamente. Ua garganta sibila um grito ao ver a imagem negra que cresce dentro do quarto. Um misto de sombra e fumaça. Ela treme. Esforça-se para levantar-se. Mas aquela coisa já está por cima dela. Agarrando-lhe o pescoço. Sufocando-a. Emma observa aquela figura. Um rosto sem cor, entremeado de grossas cicatrizes, algumas recentes, de onde brota um líquido viscoso. Não tem boca. Apenas um par de olhos amarelos como fogo, sem pupilas. Emma sente as garras enegrecidas cerrando-lhe a carne em volta do pescoço. Grita, mas ninguém a ouve. Vê mais duas figuras assomarem ao quarto. Um espectro vermelho como sangue ri, debochadamente, mostrando suas presas tortas e afiadas. Tem a pele negra como nanquim. O corpo encurvado. A outra criatura não tem rosto. Emma luta com todas as suas forças. Chuta e esmurra o ar em volta de si, sem progresso algum.

A criatura negra aproxima-se dela. Estende as garras afiadas e perfura-lhe os olhos enquanto o espectro vermelho gargalha, ecoando pela casa sua risada sinistra. Uma dor indescritível atravessa-lhe o corpo e ela grita. Mas, de sua boca, nenhum som sai. As mãos em volta do seu pescoço tornam-se mais fortes. Falta-lhe o ar. Emma sente uma das mãos descer-lhe pela nuca, arrancando-lhe os cabelos. Perde os sentidos por completo.

Na manhã seguinte, Jonas, ainda preocupado com Emma, resolve visita-la. Chama-a. bate à porta. Sem resposta. Desceu à portaria, pediu ao porteiro que interfonasse para ela. Nada. Como ainda era cedo, supôs que ela estivesse dormindo. Foi ao bar, tomou café, e cerca de uma hora depois, voltou ao apartamento de Emma. Só então preocupou-se seriamente. Embora batesse na porta veemente, não obteve resposta. Chamou o pai e os dois porteiros. Com a chave reserva, destrancaram a porta.

O cenário era aterrador. Havia sangue e um líquido escuro espalhados como uma trilha que levava até o quarto onde, na noite anterior, Jonas a havia deixado. Correram para ver se Emma estava bem. Sobre a cama, o corpo inerte da moça. Estava estraçalhado como que atacado por alguma fera selvagem. O alvo lençol estava ensopado de sangue. Jonas virou-se e saiu dali, não suportando a cena. Os porteiros observaram, amedrontados, os olhos vazados, que pareciam ter sido arrancados. Só podia ter sido obre de algum ritual satânico. Saíram dali, telefonando para a polícia. Alguém poderia explicar o que havia acontecido?

Milene Gomes
Enviado por Milene Gomes em 31/01/2014
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