Tragédia

Acordando, após uma noite de insônia e ter permanecido na cama, com um sono abrupto que o acometeu durante o dia. A surpresa ao se levantar de noite. Que estranho acordar à noite. A impressão de que não dormiu ou que o dia se foi e mais uma madrugada estará à espera. Uma companhia inesperada. Deitada ao seu lado. Nua. Com um corpo lívido. Uma mulher com olhos que pareciam de vidro. Era como se fosse uma pessoa com olhos de gato. Perguntou quem era e a mulher sorriu. Não era um riso de deboche e sim algo sensual. Dizia que já se conheciam. Realmente parecia familiar. Resolveu continuar o interrogatório, desejando explicações sobre como conseguira entrar e sua casa e se colocado nua ao seu lado. Mais um sorriso que o fez se calar. Foram até a mesa da cozinha, comer algo. Ela não tocou na comida, apenas apreciando ele degustando um resto de pizza e um resquício de refrigerante sem gás que estava escondido no fundo da geladeira vazia. Acendeu um cigarro e abriu as janelas, assoprando a fumaça em direção à noite.

Saíram pela madrugada. Encontraram conhecidos em um bar. As pessoas não podiam enxergá-la. Logo se deu conta disso. Algumas doses e ganharam a avenida novamente. Ainda estava com a lembrança de um livro de Camus. Deslizou uma ladeira e se deparou com um sujeito suspeito. Que o agarrou violentamente, levando sua carteira e dando-lhe alguns socos, que o deixaram no chão. A mulher sorria com piedade e mantinha-se quieta. Transitava apenas com um véu discreto cobrindo-lhe o corpo. Existia ali um desenho, que apesar de visto, ainda era velado. A dor das pancadas no rosto e aquele fantasma que o seguia. Não sabia que um espectro poderia ter tanto glamour. Sentou-se na beirada da calçada, aguardando algum carro passar por ali. Logo isso ocorreu. Se dirigiu ao cemitério e invadiu os portões poucos resistentes a intrusos. Agora admirava uma lápide. A mulher disse que sabia do que se tratava. Os dois se olharam, sem pronunciar uma única palavra. Nada. Nem sequer um leve suspiro. O próprio vento não se manifestou naquela ocasião.

O maço de cigarros, vazio, lançada amassado sobre o solo empoeirado. Agora estavam de mãos dadas. Ganharam outro rumo. Amanhecia e era possível tentar ver o nascer do sol. Se não fosse às nuvens. Um lago à disposição. Mergulhara de roupa, sentindo o frescor da manhã. Saiu tremendo de frio e agora no rosto da mulher, havia uma risada cínica. A camisa acabou rasgando ao enganchar no galho de uma árvore. A roupa foi secando no corpo. Pode ainda presenciar um acidente de carro, onde um ciclista foi atropelado por um veículo em alta velocidade. O ciclista foi arremessado sobre o carro e caiu com seus membros quebrados. Os médicos não chegaram a tempo. O rosto de sua acompanhante era de doçura diante do sofrer alheio. Parecia comovida e ao mesmo tempo conformada. Estava desempregado e separado de sua esposa. Os filhos lhe foram levados e as visitas se tornavam raras. Por dias tivera a companhia dessa mulher misteriosa, que lhe trazia uma paz. Perdia o pudor diante dela, que tudo sabia e presenciava, com sua presença percebida apenas por ele.

Saiu para mais uma tentativa de emprego. Dessa vez fora surpreendido por um jovem, que estava perturbado. Disse não ter nada. Até os documentos já haviam levado. Mesmo assim foi ameaçado. Tentou rir diante do desespero. Mas foi esfaqueado. Os golpes certeiros o fizeram tombar perante sua atual companheira. Por um instante, acreditou que o rapaz também a tinha visto. Mas logo, após verificar seus bolsos, o agressor o abandonara. Ficando apenas ele, consolado pelo colo de sua amiga. Que com voz doce e aquele mesmo sorriso de desejo, não deixava de encarar-lhe nos olhos. Ainda pensou em insistir mais uma vez, já que estava morrendo, em perguntar quem era ela. Mas antes que pudesse pronunciar as repetidas palavras. A voz da mulher, de forma suave, acariciou seus ouvidos. Ela disse: “Eu sou a sua tragédia”. Em seguida, ele sorriu e sentiu-se relaxado. Os olhos pesaram e as luzes se apagaram. Guardou consigo a última imagem, que seu cérebro, ainda resistiu em sustentar nos próximos minutos. Até que veio a escuridão definitiva, quando nada mais importa.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 23/01/2014
Código do texto: T4662052
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