O Diário de Amália
Cuidado se no meio da noite te der uma vontade louca como a de Amália. Sugiro, aos que imprudentemente gostam de se aventurar que não façam isso... Mais cuidado ainda aos sonâmbulos. Amália saiu de casa no meio da noite e por um acaso avistou um casebre, que ao início pensou ser abandonado. Curiosa, ela foi até lá para ver. Encontrou um misterioso livro, que lhe pertence, como a tantas outras Amálias que por um acaso por lá passaram ou que ainda passarão. Aconselho a todos, que não mexam em nada!
O Diário de Amália
Quando o solstício de dezembro chega, os fabulosos alcíones constroem seus ninhos sobre as águas. Tudo se transforma. As flores já floresceram, as folhas caíram no outono e o vento já as varreu, apodreceram. As gotículas despencam dos orvalhos nas manhãs gélidas de inverno, congelando os galhos secos, os lagos imensos. O sol que a tudo degela está repousando atrás da montanha, pois é chegado o inverno, a estação mais fria do ano.
***
Subitamente no meio da noite ela se levantava, ainda descalça descia as escadas. Colocou um sobretudo, passara a chave na porta e a escondeu debaixo do tapete. Muitos poderiam estar se perguntando por que aquela moça estava saindo aquela hora. Parecia sonâmbula, inconsciente da loucura que fazia.
O grande casaco a protegia do frio, mas por debaixo está com suas vestes íntimas - que mais parecia uma mortalha. Sua camisola branca de uma seda alva a confundia com outras visagens, que nessa hora perigosa vagueavam por essas paragens e somente os olhos intrusos metidos nos buracos das fechaduras as veem, quando de insones o medo os deixam eternamente acordados.
Sentiu uma estranha vontade de sair de casa aquela hora e uma coragem mais estranha ainda, que até ela mesma era a estranheza que mais estranhava. As ruas estavam desertas, tudo estava fechado, luzes acesas e apagadas, tudo em silêncio absoluto. Nenhum vivente perambulava. Talvez espectros pairavam naquela cidade fantasma... De repente o silêncio mortal se quebra. Uma ave agourenta passou voando sobre sua cabeça, rasgava com seus gritos diabólicos os céus, e lhe dera um desses calafrios de arrepiar a espinha.
O silêncio fúnebre voltava a se instalar, dava alguns passos e de longe avistou um casebre afastado de tudo. Aquilo lhe fascinava e envolvia, como a música que embala as crianças para dormir. Então por que não ir até lá, para ver o que tem naquele singelo casebre?
Ao lado da porta um grande vaso de mármore com flores violáceas. Trepadeiras verdes subiam pelas paredes rachadas até as velhas telhas, era uma planta viva, abraçava toda a sua casa. Os carvalhos sombrios e embruxados tinham formas assombrosas, suas ramificações nervosas pareciam milhares de braços espatifados, quase que cobriam por completo a faixada arruinada da casa. Soaram duas batidas na porta e nada... Nada respondia. Então na terceira batida, de imediato, antes que sua mão segurasse a aldrava, a porta áspera rangeu misteriosamente, e devagar se abria; convidando-lhe para entrar.
Ainda chegou a olhar para trás, e ligeiramente seus pés caminharam para dentro, percebia que não era mais dona de si. Dentro, tudo era soturno, envolvida por uma estranha energia, foi quando de repente uma janela de vidro começou a bater, seu coração dava pancadas apressadas. De medo? Medo de não sei o quê. De uma simples janela batendo!? Ah isto é uma bobagem, ela foi lá para fechá-la! O vento era tão violento, que espalhou várias folhas amarelecidas, que se dispersaram por toda a sala, pertenciam a um livro que estava na estante, que de suspendido caiu aberto, numa determinada página, quando o vento de uma só vez cessara.
***
O mistério a atraía para ver de perto o que estava escrito naquelas linhas. O livro era um mimo que a ela seduzia. Seus olhos estavam nele, porque de fato, ele era o livro dos seus olhos. A afeição que sentia por ele era tão grande, como se cada linha fosse dedicada a ela.
Fatalmente como quem caminha de olhos vendados para precipitar-se de um abismo, recolheu todas as folhas, e marcou a determinada página, a que mais lhe interessava.
Ela vai alocando as páginas ao livro e a cada página o mistério se fazia maior e mais difícil, como um enigma, e ela a chave para desvendar o segredo. Então ela o abriu ...
“ Depois de aberto nunca mais será fechado. ”
Essa frase tão provocativa lhe dava tremores, mas não a impediu de continuar. A dedicatória convidava a folhear as próximas páginas, que dizia:
“À minha amada que finalmente a encontrei por acaso. A…..”
Se surpreendeu com aquele “ A ” sugestivo e o que poderia ser as reticências? Pensou ser o nome da amada que por algum motivo não poderia ser revelado. Prosseguiu com a leitura, pois todo aquele mistério fazia com que ela ansiasse por mais.
Ela lia com uma serenidade e interesse, aparentava ter uma boa oratória, esqueceu-se de que estava num lugar sombrio e desconhecido, a qual ela não pertencia, que entrara sem pedir licença, viera assim por acaso, em uma dessas vontades loucas de pura insanidade. E se então o dono da casa a surpreendesse e ficasse zangado, com seu atrevimento e audácia por ter entrado e se apossado de sua casa? Bisbilhotar as suas intimidades, principalmente um livro tão íntimo, que mais parecia um diário? Não imaginas o que seria da pobre moça? Pela sua cabeça não se passaram em momento algum perguntas como estas, nem a culpa de ter entrado na casa. Ela estava fascinada e perdera totalmente a noção de tempo e espaço, pois se ela bem soubesse não deveria ter entrado.
***
“Quando não estavas aqui sentia um agudo vazio, cortante, como facas afiadas, que por dentro me dilaceravam. Arrepiava-me a pele, como se o vento gelado das noites viesse-me sussurrar coisas. (...) E tudo isto não faz sentido, se não estiver aqui para ver o vinho se servir nesta taça de um vermelho translúcido, tingindo o palor deste frio casebre abandonado, cheirando a mofo, mas singelo e deletério. O vermelho que te assustas é o que te dar uma vertigem, como numa convulsão rápida. Me afasto de ti, como se o vinho não mais nos interessasse, mas eu sentia que tu me bebias com teus olhos grandes e tua boca sequiosa, tuas mãos a me segurar com uma estranha violência, me tomava agora pelos braços, quando meus olhos de medo arregalaram. Vi que os seus eram verdes. Não queria acreditar no que estava vendo.
Então com isso ele se susteve com um beijo, que dera em sua mão direita, beijava-a como se quisesse devorá-la, e como uma corça selvagem ela se afastava com fugacidade, como líquido volúvel que pelas mãos da criatura escoavam, pois sabia que por detrás daquela capa sombria se escondia o perigo.”
À Amália
28 de Dezembro de 1876.
Assustada com a graça da amada por ser a mesma que lhe pertencia, nem percebeu que segurava a taça que há pouco estava no livro, assustou-se, e eis que ela de sua mão deslizou, pois, a lágrima que custou a cair de sua face, retiniu ao ler aquelas singelas e terríficas linhas de um livro de capa grossa e arroxeada, de nervosa fez cair todo o líquido contido na taça, que manchou todas as páginas.
Se desesperou do desastre que tinha causado. Ao tentar consertar toda aquela desordem, viu que o vinho não era bem vinho, percebeu que era mais denso, mais espesso. Era sangue.
Do nada, dedos franzinos tocaram seus cabelos negros, pesados como a noite, que caíram, para aterrar nos seres o sono velante. As luzes começavam a diminuir sua intensidade, desvanecendo, até morrer, até que não conseguia ver mais nada… Era tão frágil, como aquela taça, que não se sabe de onde veio parar em suas mãos, que agora só restava seus cacos espalhados pelo chão, avisava há pouco o prenúncio da inesperada chegada.
O medo tomou-lhe. Sequer nenhum músculo de sua face tomada de uma cor da flor de algodão, se movia. Sentiu uma estranha sensação, de como se alguém estivesse atrás dela ou aos lados. Sua expressão congelou.
Teve uma impressão, que era uma presença esquisita de uma mistura de coisas ininteligíveis... Simplesmente era mistério, pois todo desconhecido é um mistério. Seus olhos brilhavam no escuro, de um verde jaspe e de um ímpeto tomava-lhe as mãos. Um sopro gélido a envolvê-la, que de toda continuava paralisada desta presença desconhecida que lhe velou a noite, como se lhe velasse os olhos. A coisa tinha mãos frias como as de um defunto embalsamado. Um medo medonho apossou-se dela e uma vontade gritante de sair daquele lugar maldito, de poder soltar o grito abafado, que rasgasse os céus, mas se via totalmente incapaz na sua morbidez total.
A coisa estava se aproximando cada vez mais dela, e mesmo estando inerte, lânguida, podia pressentir aquela presença. De olhos abertos a criatura comprida fazia-lhe beber toda a sua escuridade. Era terrível, como por dentro se sacudia e estrebuchava. Dentro dela, a criatura estava entrando, escarafunchando, debatendo-se. Uma voz sinistra sussurrava no seu ouvido:
“ – À minha querida Amália, que por acaso viestes remexer minha casa.”
Os pesadelos a assustavam seguidamente, como se estivesse a todo momento caindo de um abismo. No âmago de sua alma, a pobre Amália ainda sentia a coisa sacolejar que dizia:
“ - Dorme Dorme, minha querida Amália… ”
O sono da Morte cobriu-lhe os olhos para sempre.
FIM