O Casca Grossa - DTRL 10
Noite fria e silenciosa.
A quietude só era quebrada quando os sapos coaxavam, ou quando algum animal se arriscava a caminhar por entre as folhas secas.
Paulo cooperava com o silêncio. Segundo seu avô, pescar era um ato de concentração e nada melhor para se concentrar do que ficar quieto.
Sentado na beira do rio, o homem de 36 anos esperava por um beliscão, uma fisgada. Mas naquela noite, a pesca não estava proveitosa. Por mais de duas horas ele estava ali e durante esse tempo não havia pego nada, nem um misero Lambari.
Certo é que ele não pescava por necessidade. Graças a Deus os tempos difíceis haviam passado e a vida não era mais como antigamente. Os homens agora não precisam caçar sua comida e sim trabalhar para ganhar dinheiro e depois compra-la.
Paulo lembrou das histórias que sua avô contava, de toda uma rotina quase que selvagem que dominava o comportamento dos homens em um passado que não era tão distante. Roçar, pescar... Eram atos que hoje apenas os mais necessitados praticavam.
Sim, os tempos mudaram, mas no fundo Paulo não sabia se as coisas haviam realmente melhorado.
Ele estava ali, naquela sexta-feira sozinho, pois pescar era um de seus Hobbies favoritos. Havia aprendido com o avô e desde que esse morrera, Paulo adquiriu à sua maneira de viver, o costume de todo fim de mês escolher um rio para passar a noite pescando, em contato com a natureza.
Era uma forma de pagar um tributo ao velho morto, uma forma de sair do caos da cidade grande e voltar as suas origens.
Ele trabalhava como auxiliar administrativo e não ganhava muito dinheiro. Mas era o suficiente para manter a casa e ainda fazer alguns agrados a sua única companheira, Lúcia.
Paulo não tinha filhos e por mais que quisesse, esse era um sonho quase que impossível. A seis anos, desde que o casamento, eles vinham tentando, mas tudo se reduzia tentativas.
O homem tinham um problema em seu organismo, era um papo genético que ele não gostava nem de pensar a respeito, pois quando isso acontecia, ele sentia como se não fosse um verdadeiro homem e sim um corpo vazio, sem força para nada.
Por sorte quando pescava, Paulo esquecia de todos os problemas. Suas memórias se reduziam ao tempo em que era criança, momentos de verdadeira felicidade e nada mais.
Divagava, lembrava das brincadeiras que aconteciam quando pequeno. Lembrava do avô, seu verdadeiro pai.
A figura do velho era tão importante, que o fato de seu pai biológico ter lhe abandonado ainda quando criança, tudo porque queria sair daquela cidade pequena e ganhar o mundo, não tinha efeito nenhum em seu coração. Ele não precisava de um pai, pois tivera o melhor avô possível.
Seus pensamentos foram quebrados ao meio, quando ouviu o barulho de passos. Assustado ele olhou para trás e nada viu.
Voltou a visão para o rio e então enxergou algo. Alguma coisa lá do outro lado, na outra margem.
Paulo pegou o lampião e mirou em direção, sabia que não adiantaria muito. Mas o sinal poderia espantar algum tipo perigoso de animal selvagem.
Olhou e conseguiu distinguir uma sombra.
Quem diabos era aquele?
Não era temporada de pesca e Paulo tinha quase certeza de que o rio escolhido era um lugar simplesmente esquecido pelos pescadores. Tudo porquê aquele não era um rio normal.
E aquele não é um cara normal. Sussurrou uma voz em sua cabeça. Uma voz que ele não gostava de ouvir. A voz que lembrava dos problemas, seu tormento interior.
A sombra ganhou formas e Paulo tentou aceitar o fato de que o homem era apenas mais um pescador.
Acabou seu sossego. Disse aquela voz chata novamente.
Mas o homem da outra margem não foi em sua direção. Ele apenas sentou-se do outro lado rio. Quase que de frente para Paulo.
Paulo pensou na distância que separava os dois. Provavelmente de uns 30 metros. O Rio Casca Grossa era grande.
Casca Grossa... Refletiu Paulo e todo o motivo de estar ali naquele lugar veio a sua cabeça.
Enquanto um peixe não mordia a isca. O homem lembrou-se da história que seu avô contara sobre aquele lugar, que tinha a fama de ser mal-assombrado.
E sob efeito da monotonia do rio Casca Grossa, Paulo viajou pelos caminhos de sua memória. A história do avô ganhou sua imaginação como um filme. Na verdade, parecia que ele havia voltado no tempo.
(...)
Como assim mal assombrado? Perguntou o jovem Paulo, que na época adorava estórias de assombração.
Muita gente morreu lá meu filho... E até hoje morre. Eu mesmo não sei como sobrevivi!
Mas o que é que tem lá vô!?
Não sei bem, uns dizem que é um espirito, outros que o próprio demônio mora no rio. Só sei que algo há, algo inexplicável.
Eu não entendo, me explica melhor. Pediu Paulo e seu avô lhe explicou.
Contou a estranha estória do índio Sharam e do Rio Casca Grossa.
(...)
Dizem que quem vai lá não volta. Mas eu voltei. E voltei com uma boa estória. Sabe, desde de pequeno assim como você, sempre escutei vários causos sobre o rio Casca Grossa. Causos que diziam que muita gente havia morrido afogada lá, tudo porque um demônio morava no fundo das águas.
O rio é mais antigo que todos os homens, ele não tem nada humano, é mais forte que isso, esse foi um comentário feito por meu pai... Seu bisavô.
Acredito que ele se referia a esse demônio. Mas uma coisa que é humana e provavelmente faz parte da verdade, é a história de Sharam e de seu espirito que vive aprisionado no rio.
Sharam viveu em um passado tão antigo quanto o rio. Ele era prisioneiro de um bando de estrangeiros que rondavam essas região aqui do anterior.
Acho que eles lidavam com exploração, pelo menos é isso que ouvi.
Sabe, hoje os tempos são tão modernos que essas histórias antigas estão todas se perdendo. Por sorte eu ainda lembro, por sorte.
Um dia eles invadiram uma aldeia de índios que vivia quase que na margem do Rio Casca Grossa. Há boatos de que esses índios eram muito supersticiosos e de que todo o mês pagavam tributo ao rio, com oferendas das mais diversas. Isso porque acreditavam que não se pode deixar a natureza com fome. Ela é como o homem... Ou melhor, o homem é como ela.
Um dos moradores dessa aldeia, não aguentou a ideia de ser dominado por estranhos que chegavam de barco e tinham a pele de outra cor.
Esse era Sharam, que juntou suas forças e tentou defender seu povo.
Mas como na maioria dessas histórias, os estrangeiros eram mais fortes.
E para provar toda sua superioridade em relação aos nativos, eles pegaram o índio que tentara ser herói, lhe acorrentaram e o atiraram vivo dentro do rio, com pedras pesadas presas aos seus pés.
Os moradores foram mandados embora da tribo e os estrangeiros ali se instalaram.
Na semana seguinte, o trabalho dos estrangeiros seguia normal, mas aos poucos, os sujeitos começaram a desaparecer e os boatos que corriam pela boca do pequeno grupo de pessoas era de que Sharam, o índio salvador, havia voltado do mundo dos mortos para se vingar daqueles bandidos. Dizem que um a um, todos foram arrastados para dentro do rio.
O tempo passou, muitas pessoas foram morar na região próxima do rio. E lendas foram criadas em relação à ele. Casas Grossa ganhou fama de mal assombrado e a maioria dos moradores que se aventurava por lá, sumia.
Até que se tornou quase que proibido ir até Casca Grossa, pois o rio, que já era um lugar sagrado e misterioso, agora tinha um índio ao seu lado. Um espirito que lhe ajudava a manter sua fome saciada. Sim, meu pequeno Paulo, é como se o rio estivesse vivo e zangado com toda aquela desordem.
Assim como homem, Casca Grossa poderia muito bem ter ficado louco. Afinal suas oferendas haviam cessado e um grupo de pessoas estranhas que sequer lhe respeitavam, viviam rondando suas margens.
Os anos avançaram e as pessoas que ali viviam, foram migrando para cada vez mais longe do rio. Até que a região do Casca Grossa ficou deserta.
Pouco mais tarde, foi fundada nossa cidade, Teixeira Suares. O lugar mais próximo de Casca Grossa, são apenas cinquenta quilômetros de distância.
Meu pai me contou tudo isso e disse que nunca havia visitado o Rio Casca Grossa. E ele não foi mesmo, mas eu fui. Fui e estou lhe contando isso para evitar que você vá. Aquele rio é traiçoeiro, ele corrompeu o índio inocente, e é quase certo que um mal inexplicável vive ali, uma força não-humana.
Eu fui de dia, só por curiosidade e mesmo assim, ao chegar na margem do rio, um calafrio correu minha espinha.
O lugar era silencioso demais e suas águas negras como uma noite sem lua e estrelas.
Pesquei lá, era um peixe atrás do outro. Provavelmente foi a maior pesca da minha vida. Mas então o sol começou a ir embora e aos poucos o lugar foi ficando ainda mais sinistro.
Ai aconteceu o pior. Vi que na outra margem do rio uma coisa se levantava da água. Não demorou muito para eu entender que era um homem. Ele saiu da água e parou na outra margem. Estava de costas para mim. Então ele se virou em minha direção e acredite se quiser, seus olhos eram vermelhos.
Levantei e sem pensar sai correndo, esqueci dos peixes, mas ele não importavam naquele momento. Tudo porque em minha cabeça só havia um pensamento.
"É o índio do rio, ele vai me levar para dentro, vai me matar! Casca Grossa está com fome!"
Corri, fui embora e nunca mais voltei. Mas sempre que lembro dos olhos daquela coisa, da forma como ela saiu da água, meus pelos se arrepiam e uma certeza é reforçada em meu pensamento: Nunca mais vou voltar lá, nunca mesmo.
(...)
A história veio como uma avalanche. Paulo não tinha ideia de por quanto tempo havia ficava divagando, sonhando e lembrando de toda aquela narrativa feita por seu avô.
Poderia ter continuado viajando em suas memórias, se não fosse a beliscada, o primeiro peixe. A vara entortou indicando que só podia ser um dos grandes.
Paulo se ajeitou e com calma começou a manobrar a vara de pescar. Tinha que tomar cuidado se não perderia aquele e ele não queria isso.
Mexeu para um lado, mexeu para o outro e então começou a puxar.
Fez força, não acreditava no peso que o bicho tinha. Mas quando a linha saiu da água, não trouxe consigo nenhum peixe.
Paulo não acreditou, mas seus olhos não mentiam. Pegou o objeto e o encarou por alguns segundos. O repúdio se espalhou por seu corpo e assustado ele atirou a coisa novamente na água, sem ter ideia se aquilo era realmente verdade ou não.
Um crânio, a porra de um crânio. Sussurrou ele, perdido, amedrontado.
Passou a mão na testa e pegou o cantil. Um gole de água poderia acalmar, desacelerar seu coração. Mas de nada adiantou, pois na sequencia ele ouviu um estrondo na água. Muito mais forte do que o choque do pequeno crânio ao tocar o rio.
Ele encarou Casca Grossa e viu que o pescador que até então estava sentado do outro lado havia desaparecido.
Ele foi arrastado pelo índio, Sharam o pegou, agora ele também pertence ao rio. Explodia a voz em sua cabeça.
Sem saber o que fazer, Paulo ficou em pé. Tentou enxergar algo, mas tudo que viu era apenas as escuras águas de Casca Grossa.
O silêncio havia tomado conta novamente do rio.
Paulo olhou a sua volta sem entender se tudo era realmente verdade.
O barulho havia mesmo acontecido?
Não, não aconteceu nada e aquele sujeito deve ter ido embora enquanto eu pensava no passado. Sim, provavelmente foi isso.
Olhe a sua volta, você está sozinho!
Mas não era essa a sensação que Paulo sentia.
Perdido, sem entender a realidade, ele começou a guardar seu equipamento.
Em sua cabeça uma voz insistia em dizer que ele devia mergulhar no rio e ir atrás do homem.
O cara está se afogando, vai lá, você pode salva-lo!
Outra voz, a de seu avô, ganhava mais espaço, tentado soar mais convincente.
Aquele rio é traiçoeiro, ele corrompeu o índio inocente, e é quase certo que um mal inexplicável vive ali, uma força não-humana...
Paulo começou a arrumar suas coisas enquanto um briga psicológica ocorria em sua mente. Ele não estava bem, aquele era o medo agindo de uma forma diferente.
Enquanto guardava suas coisas, sua atenção foi chamada por outro barulho na água. Ele olhou e dessa vez viu...
Viu que não muito distante dele, bolhas se formavam e então surgiu um braço. Parecia um pedido de socorro.
Esquecendo da voz de seu avô, Paulo pulou na água e começou a nadar em direção ao braço.
Iria salvar o pescador que havia chegado. Não iria deixar que ele se afogasse.
Nadou, nadou e então com força ergueu o corpo que afundava. Com o homem nos braços Paulo se ajeitou para voltar até a margem. Começou a avançar, o corpo ao seu lado imóvel.
Ele tinha medo de que fosse tarde demais. Mas então, duas certezas se sucederam.
A primeira, era de que o afogado não estava morto, pois do nada, Paulo sentiu uma mão tateando seu corpo. E a segunda foi de que aquele não era um simples pescador.
Paulo sentiu a mão do homem que acreditava ter salvo chegando até seu pescoço e aos poucos, lhe sufocando. Ele tentou soltar-se, fugir dali.
Em vão...
Paulo perdeu o controle e aos poucos se viu rendido. Antes de seus olhos fecharem, encarou a cara de seu algoz. Não foi grande a surpresa, ao descobrir que o homem, tinha uma par de olhos vermelhos.
(...)
Paulo afundou, foi devorado pelo rio e em questão de minutos, tudo estava silencioso novamente, como se nada tivesse mudando. Como se aquela paisagem fosse estática.
Mas no fundo de Casca Grossa, no interior de suas águas negras e fétidas, as coisas haviam mudado. O rio agora estava satisfeito, a força que nele vivia agora sentia-se saciada. Afinal mais um corpo fora absorvido, se juntando a tantos outros ossos.
Lá naquele mundo misterioso, imerso, o mundo do rio. Um espirito de um velho índio chorava. Chorava porque não entendia o motivo de ser escravo do rio, chorava por que não tinha ideias de quantas almas Casca Grossa ainda precisava para então o liberta-lo. Afinal essa havia sido a promessa.
Quando Sharam morreu, quando seu corpo enrolado em meio as correntes apodrecia, foram as águas que o libertaram.
O índio foi solto, mas percebeu que estava morto quando não conseguiu sair do rio.
Não demorou muito para que ele ouvisse uma voz, uma voz que estava nas águas e também em sua cabeça.
- Tenho uma proposta para você...
E lá estava ele agora. Sharam, a mais de 300 anos preso dentro do Rio, trabalhando para ele e esperando por sua salvação, uma salvação que só chegaria quando outro guerreiro, forte o bastante para lhe substitur, fosse atirado no rio com vida.
Mas os tempos haviam mudado e não para melhor. A natureza está doida e entre os homens, restam poucos guerreiros.