O velho baú dourado

Chovia uma fina garoa naquela manhã fria e úmida, em Pedra Torta, quando um pequeno carro estacionou numa ladeira miserável, repleta de casas sobrepostas, muitas ainda no tijolo nu, uma visão quase de favela. Uma das escadas de pedra levava a uma casa verde, mais isolada num terraço, e com dois pavimentos e um sótão. Era bem melhor que a maioria das outras ali visíveis, o que provocou um suspiro de alívio na moça loura, de saia e blusa sóbrias e sapatos de salto alto, que saiu do automóvel, segurando a sua bolsa.
— Deus queira que ela esteja - murmurou.
Tendo deixado o carro junto à calçada, pôs-se a subir a escadaria, primeiro para a esquerda, depois para a direita, avistando galinhas e cachorros nos quintais vizinhos, roupas na corda, crianças semi-nuas.
Quando chegou à entrada da casa, teve uma surpresa. Uma mulher de meia-idade, sólida e bem vestida, abriu a porta e fitou-a, parecendo já estar à sua espera.
— Oi! Você deve ser Adelaide.
— Sou, sim. A senhora é Elizabeth?
— Ela mesma — a mulher sorriu discretamente e estendeu-lhe a mão. — Venha, minha filha.
— É um prazer conhecê-la.
— O mesmo digo eu.
Beijaram-se e Adelaide acompanhou Elizabeth para dentro de casa, para a sala de visitas. Adelaide aceitou o convite para sentar numa das poltronas.
— Espero não ter chegado em hora imprópria — observou.
— Não, em absoluto.
— Quando me escreveu, quase não acreditei. A possibilidade de encontrar o que procurava era muito inferior à da velha história da agulha no palheiro. Se eu não tivesse podido verificar a sua idoneidade...
— Imagino que a sua profissão a torne alvo de charlatães...
— Bom — Adelaide desconversou — se você puder me mostrar o baú,,,
— É claro, ele está aqui mesmo, nesta sala.
Adelaide olhou em volta. O baú encontrava-se de fato na parede oposta, na estante de televisão e vídeo, tão visível que ela já poderia tê-lo avistado.
— Oh, puxa! — disse ela. — Deixa eu vê-lo de perto.
— É claro.
Ela se aproximou do móvel e observou o objeto enquanto criava coragem para
tocá-lo. Era lindo, com uma cobertura de folha de ouro, exceto na argola de cobre trabalhado, nas dobradiças e no ferrolho e fechadura. A chave era também dourada. O tamanho era de aproximadamente um palmo na altura e largura e uns quarenta centímetros de comprimento. A altura, diga-se de passagem, atingia um palmo no ápice, dada a convexidade da tampa.
Adelaide tocou-o.
— Não tem medo? — indagou Elizabeth.
— Deveria ter?
— Porque não me conta as suas motivações primeiro? Eu lhe servirei alguma coisa.
— Não é necessário...
— Você fez uma longa viagem e deve estar com fome. Não veio de Cabo Frio?
— Sim, direta de lá.
— Venha para a copa, lá você me conta tudo.
Adelaide não queria responder e sim perguntar mas, sendo uma visitante, achou melhor conformar-se com o ritual. Acompanhou Elizabeth para o aposento contíguo e sentou-se a uma mesa. A dona da casa serviu-lhe pães de queijo e Nescau e sentou-se também.
— Como é que você sabia da existência desse baú?
Mas Adelaide no íntimo duvidava que a peça ainda existisse, isto se de fato existira, e foi cautelosa ao responder:
— Alguns livros antigos falam nele...
— O Necronomicon, não é mesmo?
— Ah, sim... mas esse eu só conheço por referências...
— Onde você leu a respeito?
— Você sabe que eu sou uma pesquisadora. Estou sempre nas bibliotecas e agora na internet, e descobri em jornais mofados a referência à chegada ao Brasil desse velho baú, na comitiva de D.João VI, bem como o seu misterioso sumiço. A propósito, como ele chegou às suas mãos?
— Era de meu pai. Ele sempre me disse para não abri-lo, pois carrega uma espécie de maldição. Papai conhecia o tal Necronomicon e segundo ele, o livro em questão falava no baú.
— Você sabe o que é que o Necronomicon fala a respeito?
— Muito vagamente. Segundo papai, existia um portal relativista dentro do baú. Por esse motivo, ele jamais deveria ser aberto.
Adelaide sorriu com incredulidade.
— Ora ora! O Necronomicon foi escrito mil anos antes de Einstein...
— Eu sei, mas se falasse isso com papai ele falaria dos conhecimentos perdidos... como o fogo grego, os vimanas...
— Bem, e você respeitou a maldição?
— Hein?
— Quero saber se você abriu ou não o baú.
— Não, eu não o abri. Pode parecer uma besteira, mas eu não ousei desrespeitar o que papai falou. Foi a última vontade dele... que não abrisse o baú.
— Quer dizer que esses anos todos ele tem sido completamente inútil?
— Inútil?
— Sim, porque baús são para guardar coisas dentro...
— Ele serve de enfeite, pelo menos... compõe bem.
— Tudo bem, mas eu o abrirei.
— Faça-o longe daqui. Eu não sei o que pode acontecer.
— Você tem realmente medo do baú, Elizabeth? Afinal, isso tudo é apenas uma superstição! E acredita você que esse tempo todo... séculos... ele nunca foi aberto?
— Papai dizia que foi aberto uma vez, e tornado a fechar. Muitas desgraças ocorreram por causa disso: o baú em questão era a própria Caixa de Pandora.
Adelaide riu-se com gosto e abriu a bolsa, apanhando o talonário de cheques.
— Se você realmente pensa isso... por que não se livrou dele, não o jogou fora?
— Preferi não fazer isso. Não me pergunte por que.
— Teve medo de jogá-lo no lixo... e que ele acabasse sendo aberto, sem ninguém para controlar...?
— Eu não sei. De qualquer modo, não se joga fora um objeto desses.
Adelaide pagou os dois mil reais pedidos – oh, talvez estivesse louca em gastar tanto dinheiro com um objeto – e procurou apressar a entrevista. Não gostava de Pedra Torta, uma cidade perdida no tempo e no espaço, como se estivesse,ela própria, presa de uma maldição...
Embrulhou o baú e levou-o embora. Elizabeth parecia grandemente aliviada e satisfeita.
— Boa sorte, que você vai precisar — foi a despedida da anfitriã. – E tome cuidado!
“Engraçado... – pensou Adelaide, já no carro. – Ela não parece tantã. Mas está tão convicta dessa maldição...”
Numa coisa mentira. Ela tivera acesso ao Necronomicon e um de seus trechos, lá para o final, dizia:

"No tempo em que a Terra era ainda dominada pelo inumano, uma raça que hoje sobrevive nas entranhas do planeta forjou um baú dourado, onde encapsulou a essência da maldade. Iria usá-la para dominar o mundo... e isto não foi possível, porque o segredo da correta abertura se perdeu. Este segredo, porém, foi descoberto e eu o sei e o darei aqui – mas ninguém mais sabe onde se encontra o baú. Se um dia ele vier a ser descoberto, estas inscrições servirão."

As pesquisas feitas por Adelaide em estranhas coleções de alfarrábios, manuscritos e papiros, davam também a entender que o baú fôra oculto por magos negros no tempo do lendário Milênio de Prata da Lua, e sumira por muitos séculos.
Poderia um objeto feito por mãos humanas ser tão antigo? Bem, o “Livro dos Nomes Mortos” sustentava que o cofrezinho não fôra forjado por seres humanos. Mas que seres eram, então? Ora, assim pensava Adelaide, o Necronomicon não passava de uma coleção de superstições coligidas por um velho louco.
Ela olhou para o baú, no sofá do carro. Começou a reparar melhor nos baixo-relevos, repletos de figuras simbólicas: serpentes de duas cabeças, um polvo com asas de morcego, animais fabulosos e amedrontadores... um estranho redemoinho no centro da tampa... olhando bem, aquilo dava a impressão de girar... como uma voragem...
Adelaide sacudiu a cabeça e desviou o olhar.
— Não estou louca!
E, com isso, resolveu a questão... ou assim pensou.

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Tivera pressa de retornar a Cabo Frio, onde se hospedara (detestava tanto Pedra Torta que não quisera se hospedar por lá), e de seguir para o Rio de Janeiro. Notou, é fato, durante a viagem, a alteração do tempo e a paulatina formação de pesadíssimos cúmulos-nimbos, contra todas as previsões da meteorologia. Logo uma chuva tenaz e torrencial passou a acompanhá-la e, para espanto da moça, o noticiário dava a entender que a tempestade seguia uma rota semelhante à sua... abandonando a zona de Campos e seguindo para a região dos Lagos.
Por menos que estivesse pronta a admitir, ela começou a sentir as garras frias do medo em sua nuca. Um medo irracional, ilógico, atávico... algo a lembrar que a raça humana sempre convivera com o medo do mal, o medo do desconhecido...
Medo... de um baú?
Súbito um trovão incrivelmente forte pareceu provocar uma trepidação do solo; a planície com suas fazendas era pouco visível devido ao espessamento do nevoeiro e Adelaide, tomada por um pânico nervoso irracional, perdeu a direção e seu carro, ultrapassando o acostamento, foi esbarrar na sustentação de um cartaz de “beba Coca-Cola”. Adelaide bateu com a cabeça e perdeu os sentidos.
Quando voltou a si percebeu, espantada, que ninguém a socorrera. A fúria da tempestade paralisara o tráfego da região e nem se avistavam outros carros ou ônibus. Não se via quase nada. O automóvel parecia ainda em condições de rodar;
mas a porta direita se abrira e o baú não estava mais na poltrona.
O baú!
Adelaide saltou do carro, sem ligar para o aguaceiro, e encontrou o baú dourado jogado em baixo do cartaz agora precariamente equilibrado... caído de lado, e aberto.
A moça pegou o objeto e olhou-o ... por dentro nada, absolutamente nada, a não ser o lado de dentro, é claro, também folheado a ouro sobre latão ou coisa parecida.
Ela ali ficou por alguns momentos, de pé, incrédula, ensopando-se com a chuvarada, contemplando o interior vazio do baú, enquanto os raios coriscavam sem cessar e os trovões ribombavam, como se houvesse uma rebelião no universo, e por trás de tudo, por trás do uivo medonho do vento, do ruído incessante e angustiante da chuva e do fragor da trovoada, parecia se ouvir também uma como que gargalhada demoníaca, ouvida através de um sentido mais profundo que a audição, algo que sugeria a gargalhada que o próprio Satã daria ao ser libertado da prisão milenar referida no Apocalipse...

Uma raça que hoje sobrevive nas entranhas do planeta forjou um baú dourado, onde encapsulou a essência da maldade.”

E a essência da maldade já não se encontrava dentro do baú.
Libertara-se.

Nota: esta história homenageia o autor norte-americano H.P. Lovecraft (1890-1937), criador dos "Mitos de Cthulhu" onde é mencionado frequentemente o "Necronomicon" ou "Livro dos Nomes Mortos".