Memórias de uma Assassina

ATENÇÃO! Esse texto apresenta conteúdo violento e insinuação de nudez. O critério do leitor é avisado.

Dirigindo e ouvindo um bom AC/DC, eu já sabia aonde queria ir. O ronco do meu Opala 1978, 4.1 SS, preto, modificado com potência aumentada, despertava todas as redondezas. Indo para a zona leste naquela terça-feira às 3h da manhã, o destino era o “Bar do Zeca – bebidas e salgados”. Não pense que é tolice, que eu estava indo lá para encher a cara ou mesmo me divertir com os amigos. Eu não tinha amigos, na verdade nunca tive.

Parei do outro lado da rua, sem despertar a atenção dos três homens lá dentro, tirando o dono da bodega. Saí do carro, e o tranquei. A noite era fria, eu estava usando a calça de látex que eu adoro, meu coturno e blusa de couro um pouco aberta, mostrando meu decote. Só porque eu sou um pouco louca não quer dizer que eu não tenha vaidade. Entrei no lugar, todos acabaram me fitando com os olhos. Perdoe-me o vício de linguagem, mas era de causar espanto. Uma mulher nos seus 26 anos, de 1,80m (até maior que alguns deles) em um botequim de madrugada. É normal isso?

-Ei, beleza – já saiu falando um dos galanteadores – sente-se aqui.

Alguns homens realmente não sabem como agir na presença feminina. Mas isso jamais foi problema.

-É claro. Eu quero uma vodca, por favor.

-Aqui não é lugar de bebida cara, miss. Já é quase de manhã, e de dia a gente só serve rabo de galo.

-Mas eles aqui do meu lado estão bebendo vodca, e eu quero me juntar a eles.

Neste momento, os olhos do cretino ao meu lado reluziram, achando que conseguiria uma companhia facílima, ainda naquela noite, e sem muito esforço. Estava muito bom para ser verdade.

-Desculpa, moça, mas se você quiser beber é rabo de galo. Eles são meus clientes amigos. E para eles, eu sirvo o que eu tenho de melhor.

-Não estamos em uma democracia? Eu não tenho direitos iguais, seu tolo?

-Não, não tem.

-Veja como trata a moça, Zeca! Deixa de idiotice e serve logo a bebida que ela quer!

-Não me diga como agir no meu próprio bar, Henrique! Essa porra é minha e eu faço o que eu quero!

O “Henrique”, neste momento, levantou-se.

-Por que não trata melhor a moça, ela é cliente, seu estúpido!

-Serve logo essa merda, Zeca, gordo burro!

Risos foram ouvidos. Zeca era, de fato, um “gordo burro”. Aquele tipo de gordão mesmo, de quase dois metros, pança enorme, 150 quilos, careca e seboso. O tipo de homem que toda mulher ama.

-É assim que vocês tratam um amigo? Quase doze anos de amizade e me trocam por uma mulher, só por ser gostosa?

Sérgio perdeu a paciência. Levantou-se, apontou um revólver na direção de Zeca e gritou:

-Serve agora!

Rapidamente o morfético colocou um copo na bancada e encheu de vodca. Eu bebi tudo de uma vez, uma bebida grátis de vez em quando esquenta e revigora os ânimos. Nisso, fomos conversando, e eu acabei até gostando de Sérgio. Era um rapaz legal, apesar de ser um assassino.

-Então, é professora de educação física?

-Sim, ali na Super Fitness, na Paulista!

-Emanuelle, quem iria dizer que nós nos conheceríamos num boteco? Uma personal trainer conversando com alguém da ralé... Mas, afinal, o que você veio fazer neste bar?

-Na verdade, eu vim até este bar para matar aquele gordão ali.

-O que?

-É, meu caro. Eu vim desde a zona sul até aqui para meter chumbo no cérebro desse José Carlos atrás de você. Mas eu julguei o ambiente aconchegante demais, e acabei gostando.

-Entendi, é uma brincadeira! Você é do tipo que se solta quando está bêbada!

-E do tipo que mata quando está sóbria.

Saquei a pistola e meti um tiro em cheio na boca de Zeca, atravessando-lhe a nuca. Este caiu morto.

-O quê você está fazendo, está louca? – todos os amigos de Sérgio ficaram pasmos sem saber o que fazer, bem como o galã, ou melhor, galinha.

-Sabe, Sérgio, você é muito cavalheiro, mas infelizmente eu também vou ter de te matar. Nestes últimos 12 anos você acabou se envolvendo no tráfico de bebidas junto com o Zeca e matando um menino de menos de 15 anos, que descobriu sobre o esquema.

-Espere, não...

-O seu azar é que às terças você vinha beber aqui, sempre desarmado, para relaxar, no lugar mais recluso. Você está oficialmente perdoado de ser um assassino.

-Que bom eu pen...

Você sabe qual é o barulho que faz uma Desert Eagle? É um som envolvente, carnoso, consistente, chega a dar tesão. Este som eu ouvi aquela noite várias e várias vezes, e quase que o sangue de Sérgio espirra em mim. Ainda bem, que eu odeio sangue.

-Sua vadia, a gente te pega!

Os outros até tentaram vir para cima. Um deles eu também matei a tiro. O outro, eu fiz um trato:

-Vamos fazer assim: eu jogo minha arma na rua e a gente sai no braço. Quem perder, morre.

-Eu vou te dar uma surra antes de te matar, sua maluca!

Ele até tentou. Eu gostei da determinação dele. Talvez ele tenha feito aulas de boxe. Eu esquivei de incontáveis socos. Quando eu percebi que seus braços começavam a doer de cansaço, um dos socos eu segurei com a palma da mão. Torci seu braço na direção das costas, onde eu o quebrei. O grito de dor foi imenso; e eu que pensava que só mulher dava grito agudo.

Ele foi ao chão, lentamente. Deixei-o imobilizado e puxei –o até a rua, onde tive de ir buscar a pistola.

-Sua sorte é que hoje eu estou de bom humor, camarada, senão eu te mataria batendo sua cabeça contra o balcão.

Começou a chorar e a gritar, dizendo que era inocente, que apenas participava do comércio, que o mandante do crime era Zeca e que quem matou era um pistoleiro.

-Qual é o telefone dele?

-Eu... não... posso... dizer...

-Você está me deixando de mau humor, e não vai me querer ver assim!

-Por favor, me deixe ir embora, eu não falarei nada a ninguém!

-Você não tem a chance de sair vivo dessa. A única coisa que muda para você é a sua morte ser dolorosa ou não. Mas agora você me testou, e eu vou te dar um gostinho do inferno.

Levantei-o e fui até a portinhola de acesso ao outro lado do balcão. Ali, existe uma porta perpendicular ao local que as bebidas são servidas, que abre verticalmente. Levantei, era de madeira relativamente densa. Coloquei sua cabeça no batente, e abaixei o quadradão de madeira com força na orelha do inútil. Começou a sangrar. O grito desta vez estava mais para um lamento doloroso do que algo histérico. Parece que mediante a dor, ele ficava mais sério. E eu sabia que ele ainda não falaria. Bati mais uma vez, e a sua orelha já não era mais visível de tanto sangue.

-Eu espero que a sua orelha ainda esteja funcionando, senão eu terei que tratar da sua outra também! Qual é o telefone dele? Eu sei que matadores agem só por telefone. Nem pense em nomes falsos.

Ele me passou o número e eu, que era boa de memória, decorei. Puxei-o com força e o arremessei no ar, era extremamente leve, um magrelo que não ultrapassava os 60kg. Um só tiro no coração.

-Se você estava no meio, não é inocente...

Saí do lugar e ainda apaguei as luzes.

No dia seguinte eu não estava tão mal. Fazia um tempo relativo que eu não matava, e ficar comprando luvas de couro novas o tempo todo detonava meu orçamento. Qual é! Não pense que eu usaria luvas de látex, não é elegante. Cheguei na academia com meu Escort. Só usava o Opala de vez em quando ou de noite.Eu até gostava de ir à academia. Eu podia me exercitar, treinar minhas lutas de leve e erguer um bom ferro. Nem pense que eu faço o estilo machão – eu sou atlética.

Logo chegando, todos me cumprimentaram. Meu sorriso abria sorrisos nos outros, é algo que eu percebi. Eu não me julgo muito bonita, não. As vezes eu penso que sou muito alta, mas é bom para o serviço. As pessoas ficam me olhando nos olhos, ao menos. Não sei o que olhos azuis têm assim de tão especial. Eu prefiro olhos cor mel.

Meu expediente só começava as 10h, isso era bom, apesar de perder quase todo o dia lá. Mas era bom, acima de tudo, bom. Meu primeiro emprego, desde o estágio da faculdade, era naquela academia, e o legal era que pagava bem; primeiro por ser o local que a elite paulistana frequentava, segundo pelo tempo de serviço. Ganhava quase seis mil por mês, que em dinheiro da época, era muita grana. Hoje seis mil não paga nem a gasolina mensal do meu Opala direito.

De manhã iam as tiazinhas e os desocupados. As tiazinhas eu até entendo, a maioria acima dos 45, aposentadas, muitas vezes mães cansadas da rotina desgastante, procurando a beleza ali. O pior eram os desocupados. Playboys idiotas, completamente vagabundos que cagavam dinheiro. Davam em cima o tempo todo, e isso enchia o saco. Vezes eu jogava o verde, dizia estar sempre ocupada, cortava conversa, vezes que eu simplesmente chegava e dizia:

-Eu não estou interessada.

Bom mesmo era o período da noite, a partir das 18h. A partir das 18h25, na verdade, que era o horário costumeiro de Carla chegar. Você conhece a Carla? Como não conhece a Carla? A Carla é minha melhor amiga, uma menina de 21 anos que faz jornalismo na PUC. Um pequeno gênio, embora um pouco boba as vezes. Todos os gênios tem seus defeitos, e eu suporto os da Carla. Até gosto.

Eu a via de longe e apenas sorria. Era o sinal de que estava tudo bem. Não éramos muito de ficar de papo na academia, nossos gênios são reservados. É um dos motivos que eu me dava tão bem com ela. Ela veio até mim e nos cumprimentamos com beijo no rosto.

-Como foi a faculdade hoje?

-A aula de direito penal foi um pouco pesada, mas eu estou aprendendo. Meu pai acha que eu daria boa promotora, mas eu tenho pensado em fazer direito do trabalho e ser advogada mesmo. O que você acha?

-Promotora.

Um pouco estranho, não acha? A melhor amiga de uma futura promotora é uma assassina fria e cruel.

-Como foi ontem, deu tudo certo?

-Deu sim, mas com uma pequena mudança de planos. Acabei ficando amiga deles, até.

-Ah é? Eles eram legais?

-Sim! Muito convidativos e cavalheiros, exceto pelo barman.

-Barman em boteco? Sua linguagem é um pouco sofisticada até para mim! O dono do boteco!

Começamos a rir. Eu adorava aquilo. Eu não desgrudava de Carla, e sempre arranjava uma desculpa. Ou era para ajudar no exercício, ou era para orientar, ou era porque estávamos conversando mesmo. Os gaviões noturnos nem chegavam perto quando Carla estava por ali – sabiam que seriam secamente tratados e futuramente ignorados. Eu sou demais para eles. E Carla também.

Eu só não gostava do ex-namorado da Carla, vivia dando no saco. Se até eu ficava irritada com o que ele fazia, imagine a minha amiga. Ele terminou, depois se arrependeu, depois brigou e xingou muito, depois voltou e traiu, depois disse que a culpa era dela, e naquele tempo a bola da vez era bombom de chocolate que milagrosamente aparecia no estojo dela e bilhetinhos do tipo:

Minha loirinha,

Volta para mim!

Quero ver seus olhos verdes

Seu gatão

Chique no úrtimo. O importante é que Carla era minha única amiga em toda a vida, eu adorava aquela menina. Ela sabia tudo a meu respeito e vice-versa – a confiança era tanta que ela sabia que eu era assassina. Mas essa amizade é longa e não cabe ser contada agora. Esse capítulo serve para falar do serviço, e disso eu não abro mão. Se bem que eu já acabei ficando agitada e falando da Carla. Porcaria, não posso nem lembrar desse nome que já saio falando pelos ouvidos. Mas como eu já esculachei mesmo, vamos continuar.

Nos conhecemos na própria academia, há cerca de três anos e meio. Ela era novata, nunca tinha feito musculação antes, e eu acabei sendo a sua instrutora. Era novinha, ainda tentava passar no vestibular – que desde sempre não foi fácil. Tímida, no começo ela se mostrou reservada, de pouca conversa. Mas eu havia simpatizado com ela desde o início. Pouco e sempre, eu fui trilhando meu caminho através de sua confiança. Eu sabia que daria boa conversa. Ela era simplesmente igual a mim, um pouco reclusa, com algumas amarguras; apesar disso não ser bom, ao menos tínhamos alguma semelhança. Conversávamos sobre tudo, música, filmes, mas sempre que tocávamos em um assunto mais delicado acabávamos nos reservando. Sabe como é, coisas pessoais a gente não diz nos primeiros dias.

Depois de cerca de três meses, eu a chamei para ir tomar um café após que o seu treino, a coincidência era que ela terminava de treinar logo após o término do meu expediente. Fomos a uma cafeteria, e lá nos soltamos. Fora do ambiente da academia, gente olhando, fica mais fácil se divertir mesmo. Já estava bem tarde e era sexta, decidimos então ir a uma balada. Ela me daria uma carona, o meu carro ficaria no estacionamento do meu trabalho.

Fazia tempo que eu não ia em festas noturnas assim, e eu pedi que ela sugerisse o clube. Parece que ela leu minha mente – ou já tinha notado minha paixão por rock – fomos até o Riot, uma espécie de balada que só rola músicas, eu diria, “hardcore”.

Lá nós dançamos muito, e enchemos a cara até quase cair. No divertimos muito, conversamos sobre o que queríamos, e demos inúmeros foras em inúmeros homens. Ao final da festa, quando o desespero masculino começa a aflorar, resolvemos ver quem dava o fora mais incrível. Foi muito engraçado.

-Você acha que eu venho em balada pra arranjar companhia? Está me chamando de biscate?

-Está dizendo que, só porque estou solteira, preciso ficar com alguém? Eu tenho cara de estar desesperada?

-Dá licença, eu tenho de ir ao banheiro vomitar.

-Você não é bonito o suficiente para mim.

E a campeã da noite foi esta de Carla:

-Desculpe, mas eu tenho namorada, ela está ali – apontando para mim. Isso quebra qualquer homem. Ela veio ao meu encontro, e nós rimos até trabalhar o abdômen. Foi demais fazer isso.

Saímos quase enxotadas, quando o clube estava prestes a fechar. Tivemos a consciência de parar de beber umas duas horas antes, para podermos dirigir sóbrias. Não tem nada a ver com lei seca, isso nem existia. A gente simplesmente tinha amor pela vida. Ela me levou até em casa, e eu a convidei para entrar.

-Eu não posso, meus pais sabem que eu vou em balada mas eu não posso voltar depois de amanhecer. Fica ruim para mim.

-Tudo bem, que tal numa próxima oportunidade?

-Está ótimo!

Nós trocamos telefones e ela se foi. Eu estava planejando, para aquela noite, ir até pinheiros e passar um pente fino em dois cirurgiões que abusaram que mulheres enquanto estavam inconscientes, mas eu deixei para um outro dia. E eu não gosto de atraso. Eu fiz o trabalho, depois, duas vezes mais lento e dez vezes mais doloroso – para eles.

E os meus dias se resumiam a isso – academia e muito treino. Afinal, a prática leva à perfeição e, no meu serviço, erros podem levar à prisão e mesmo à morte. E eu não podia morrer. Não pelo menos antes de varrer uma parte razoável do lixo que reside na grandiosa São Paulo, terra da chuva, lálálá...

Continua.

Alberto Fitzgerald
Enviado por Alberto Fitzgerald em 11/05/2013
Reeditado em 11/05/2013
Código do texto: T4285408
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