A CASA DAS SETE NOIVAS

A cozinha era enorme e espaçosa. Armários, sob medida, altos como o pé direito da casa. Olhou à sua volta e sentiu que tudo estava sob controle. Não se assustaria assim, tão fácil. Ele tinha fama de mulherengo e difícil ,mas afinal, era ela quem estava ali. Olhou a cafeteira expresso, tão convidativa... Apanhou duas xícaras e logo o aroma dos grãos torrados fresquinhos inundava o lugar. Algumas gotas de adoçante,biscoitos e o lanche da tarde pareceu-lhe ótimo.Levou as xícaras e os biscoitos,deixando um rastro de nódoas pretas no assoalho recém encerado.

No escritório, "Ele" trabalhava como de costume. Deixou a xícara ao alcance das mãos dele. Conheceram-se pela internet e após algumas conversas e um namoro rápido de dois meses passaram a morar juntos. Na época todas as amigas acharam precipitação mas, afinal ,tiveram que se render à sua vontade. Ele era um homem educado, de modos refinados. Gostava sempre de uma taça de vinho tinto ao final do dia enquanto dedilhava ao piano, suas canções preferidas.

_Amor,poderia trazer um pouco mais de café ?

Pedia Ele, com carinho.

_Aqui está querido, do jeito que você gosta. Essa cafeteira é realmente ótima.

_Sim, era a preferida de Cristine... Trouxe para mim quando esteve na Itália.

_Cristine? Quem é mesmo Cristine?

_Uma bailarina que viveu comigo há três anos atrás. Nos separamos quando foi contratada por uma grande companhia de ballet em Londres. Me trocou pela morte do Cisne.

Disse enquanto sorria com sarcasmo...

Todas as manhãs a rotina era a mesma. Acordava, passava pela porta do escritório dele, que sempre estava fechada, fazia o café e levava uma xícara para ele, tendo o cuidado de bater na porta antes. Algumas vezes a porta estava trancada, outras, semi cerrada... Com o tempo, passou a perceber um aroma instigante...Algo que lembrava um templo religioso, ou uma igreja.

_Querido, que cheiro esquisito, parece...Vela,é isso!

_Humm,talvez esteja sentindo o cheiro da vela que acendo durante minhas orações matinais. Por isso muitas vezes me tranco,gosto de privacidade quando falo com DEUS.

_Nossa, que lindo esse seu lado, tão religioso.

Retrucou pasma

_É, há sete anos fiz uma promessa e desde então tenho tentado cumpri-la...Mas como promessa é promessa, não posso contar.

Explicou tentando encerrar o assunto.

Passaram-se alguns meses e o relacionamento parecia-lhe ótimo, exceto por algumas excentricidades dele. Os objetos da casa deveriam estar sempre exatamente nos mesmos lugares. Não poderia mudar nada, sem autorização prévia. Tudo impecavelmente limpo e no lugar. Certa vez "Ela" trouxera umas flores para alegrar a casa. Colocou num lindo vaso que achara no armário da sala. Cristal austríaco legítimo.

Ao chegar em casa, "Ele" se deparou com o vaso e suas feições mudaram completamente. Parecia consternado e com a voz agressiva gritou:

_ Onde você pegou esse vaso?

Perguntou lívido.

_ No ar...armário da sala

Gaguejou

_Nunca, nunca mais faça isso sem me consultar.

_ Mas, mas...

_Você nunca vai entender... Esse vaso é uma lembrança da minha quarta esposa, Suzane. Há quatro anos ela me deixou após contrair uma febre súbita.Não tinha ninguém, a não ser um primo distante.Passei dias ao lado dela e a única coisa que me pedia era que diariamente, colocasse nesse vaso de cristal suas flores prediletas...Rosas brancas.

_Desculpe, nunca poderia imaginar.

Ela balbuciou, deprimida.Afinal de contas,começava a dar razão aos amigos,quantas mulheres afinal já havia passado por ali. Realmente estranho um homem tão educado,carinhoso e... sozinho. Na garagem, um Land Rover e uma Toyota Hilux prata modelo do ano davam a entender que era um homem de posses," herança de família", ele sempre justificava. Viviam bem, sempre comiam nos melhores restaurantes,mas sempre... sozinhos. Não gostava de dividir ela com ninguém,ele lhe dizia e isso de certa forma a satisfazia. Mas os rompantes de agressividade, passaram a lhe perturbar,como o daquele dia.

Depois de alguns minutos de silêncio, ele se recompôs:

_Não queria magoar você, é que essas lembranças são muito dolorosas.

_Mas você nunca me disse nada sobre o seu passado...

_Nunca me perguntou.

_Parece que muita gente já passou pela sua cama, não?

_Nenhuma tão linda como você.

_E me disse que era ...tão sozinho.

_E era, até você chegar. Você é quem eu procurava por tanto tempo...

Já tive algumas mulheres sim, mais precisamente seis.

_Seis? E o que aconteceu com elas? Não teve filhos?

_Não gosto de crianças e digamos que eu seja um pouco "temperamental"... Com o tempo, as brigas e discussões se tornam frequentes e levam embora todo o encantamento.

_Não quer ter filhos comigo?

_ Você me faz querer, é especial .

***

Estava decidida a entrar naquele escritório, sozinha. Nunca encontrava os tocos de vela e só podia permanecer ali quando levava as xícaras de café expresso. Aproveitou a ausência mais demorada dele,

sexta-feira à noite. Naquele dia, aproveitou-se de uma distração dele durante o banho. Pegou a chave, levou a um chaveiro ao lado do casarão, fez uma cópia e retornou antes que ele notasse sua ausência. Recolocou a chave no chaveiro e aguardou a sua saída. Chovia,mas mesmo assim ele resolveu sair, a sorte estava a seu favor. Nervosamente, girou a chave com certa dificuldade e ouviu a porta destravar... Dentro do escritório mal iluminado,avistou o notebook,alguns livros e CDs. Não havia fotos. Não havia nada que indicasse a presença de outra mulher na casa. Nenhum vestígio de amores antigos, uma carta, uma dedicatória, nada, apenas aquele cheiro insuportável de vela. Procurou o que poderia ser um altar, um santo... Olhou para o chão e notou alguns pontos em que o assoalho havia sido raspado. Marcas de vela talvez... As marcas eram mais fortes próximas a um velho baú de imbuia,como se frequentemente fosse arrastado. E assim o fez, com as duas mãos espalmadas sobre o baú,tentou arrastá-lo o máximo que pode. Levantou um velho tapete puído e descobriu incrédula uma espécie de alçapão. Levantou a pequena portinhola no piso, desceu alguns degraus levando na mão o celular aceso para iluminar o caminho. A escada de madeira tinha poucos degraus e terminava numa espécie de porão. Mantendo o celular aceso foi se esgueirando pelo lugar mal iluminado. Tropeçou em algumas latas cujo rótulo indicava :PARAFINA . O cheiro de vela era cada vez mais forte... No fundo da sala alguns vultos cobertos por um lençol . Aproximou-se devagar procurando o interruptor . Acendeu a luz e a claridade revelou os vultos. Descobriu um deles com cuidado. Era uma espécie de estátua humana de cera como as que já vira no museu. Uma mulher, perfeitamente esculpida na cera, em tamanho natural. Traços finos e delicados. Os braços arqueados como numa pose de dança. Nos olhos sem brilho, tristeza. Descobriu a segunda estátua. Mulher também: estatura mediana, rosto mais angulado e postura mais desafiadora, como se estivesse se defendendo. Restavam ainda mais quatro estátuas. Ia descobrir a terceira quando ouviu um barulho de chave. “Ele voltou mais cedo”, pensou. Nervosa tentou cobrir as “mulheres de cera”, tinha que ser rápida agora. Ao cobrir a segunda , desequilibrou-se tropeçando em uma lata de parafina. A figura feminina que tinha na mão erguida uma espécie de chave de fenda, balançou, rodopiou e caiu no chão fragmentando-se. Olhou estarrecida ao perceber que as estátuas eram ocas e estavam preenchidas com umas roupas de mulher e restos de... cabelos.

_ Mas...mas, isso são OSSOS !

Levantou-se e antes que pudesse se mexer sentiu uma pancada na sua nuca. Não viu mais nada.

***

Abriu os olhos e reconheceu as cortinas do seu quarto. A cabeça dolorida ainda girava um pouco. Os olhos foram se acostumando à claridade. Não lembrava muito bem do que havia acontecido, a mente ainda muito confusa. Ao seu lado, ele cochilava ao lado da cama, sentado numa cadeira. Tocou levemente a mão dele que acordou num sobressalto.

_Há quanto tempo estou dormindo?

Ela perguntou.

_Há três dias.

Ele respondeu parecendo preocupado e cansado.

_O que aconteceu? Minha cabeça está dolorida, aqui atrás.

Disse, apontando para a nuca.

_Encontrei você no meu escritório, caída no chão. Talvez tenha escorregado em algum pingo de vela... O que esperava encontrar lá ? Era só ter me pedido, eu teria permitido que entrasse. Poderia ter se machucado seriamente.

_ As imagens estão confusas, lembro de uns lençóis e...uns vultos.

Levantou-se e deu uns passos em direção da porta.

_Onde vai desse jeito ?

Franziu as sobrancelhas com um ar de questionamento.

Ela não respondeu. Segurando nas paredes, parou em frente a porta do escritório.

_Abra essa porta.

_Tem certeza de que é o que quer?

_Tenho.

Ele girou a maçaneta e a porta abriu. Tudo parecia normal ; no lugar. Ela caminhou tentando lembrar o que havia acontecido. Um lampejo e recordou-se que havia empurrado o baú.

_Empurre o baú e retire o tapete, por favor.

Ele obedeceu prontamente. Ela olhou para o chão, mas não havia nada de errado. Não encontrou nada riscado, pelo contrário, o piso parecia...novo.

_Você deve ter batido com a cabeça ao cair e ter imaginado...coisas. Passou três dias falando palavras sem sentido .Trouxe um amigo médico que a examinou e disse que teve apenas uma concussão pela queda e que mantinha-se desacordada talvez, por sua própria vontade, por querer esquecer alguma coisa...Lembra-se de mais alguma coisa ?

__Lembro que senti um cheiro forte de vela e que vi uns...vultos .

_ Você está confusa, misturando realidade e fantasia. Puro delírio seu.

_ Mas tudo parecia tão real !

_ Vamos, precisa voltar para a cama e descansar

Disse ele já a conduzindo de volta ao quarto

***

Alguns meses depois, parecia refeita da queda. Viviam um para o outro e ele nunca fora tão atencioso. Resolveu dar uma geral no armário dele. Fazer bainha em algumas calças, pregar alguns botões... Abriu a porta do closet e separou as calças a serem consertadas. As blusas sem botão foram imediatamente reparadas. Estava feliz. Olhou para os sapatos italianos impecavelmente arrumados e limpos e deu por falta de um par. Justamente o que ele gostava mais. “ Onde estão esses sapatos ? Será que deu para alguém? “ Vasculhou pela casa e nada. Procurou entre as coisas dele na garagem. O lugar estava completamente limpo. Voltou para o quarto, ligou a televisão e começou a costurar as bainhas das calças. No noticiário do dia, enchentes, deslizamentos, moda outono inverno e de repente um rosto com feições familiares. Alguém reclamava pela falta de empenho da polícia civil em desvendar o caso da bailarina Cristine Dietrich desaparecida há três anos. Havia sido convidada para o Staff do Royal Ballet de Londres mas nunca chegara ao seu destino. Ela levantou os olhos e achou os traços da bailarina parecidos com os de alguém que já tinha visto. Esforçou-se mas ninguém lhe veio a mente. Deu de ombros , desligou a TV e empenhou-se no jantar : Tilápias ao molho de camarão. Temperou o peixe com bastante limão e alecrim. Para o molho: creme de leite fresco, camarões e noz moscada. “Esqueci da noz moscada”,pensou.

_ Amor, poderia trazer um pacote de noz moscada?

Pede ela ao celular enquanto limpava os camarões .

_ Claro, estarei aí em trinta minutos.

Passado cerca de uma hora, ela ouve o barulho do motor do carro entrando na garagem e grita:

_ Já não era sem tempo !

Ele entra em casa distraído com o jornal nas mãos.

_ E a noz moscada, trouxe?

_ Ops, deixei na mala do carro.

E jogou a chave na direção dela. Ela já ia reclamar, mas calou-se ao perceber que ele estava pensativo, talvez aborrecido com alguma coisa que lera no jornal que agora estava amassado na lata de lixo. Pegou a chave, abriu a mala do carro e avistou o pequeno pacote do mercado. Ia fechar a mala quando percebeu um saco preto jogado num canto. Desfez o nó, abriu o saco e dentro, o sapato desaparecido. Estava coberto por uma crosta de cera amarelada com cheiro de ... parafina. Um lampejo lhe ocorreu e lembrou das latas de parafina. Sua cabeça começou a rodopiar. Sentiu algo estranho incrustado na sola de um dos sapatos. Virou e tentou descolar o objeto grudado. Fez força e aos poucos o objeto foi cedendo até estar completamente livre, na palma da sua mão. Seu estômago revirou e sentiu vontade de vomitar. Atirou o objeto rapidamente no chão ,tentando se livrar. O objeto rolou pelo cimento parando próximo a roda do carro. Um novo rodopio e um novo lampejo e dessa vez lembrou – se claramente das estátuas de cera. Sim, agora sabia onde havia visto aquele rosto do noticiário, a estátua da mulher de braços arqueados. A bailarina sumida era uma das mulheres daquele porão . Sua vista começou a escurecer enquanto percebia que ele caminhava na sua direção. No rosto uma mistura de escárnio e prazer. Ele se abaixou e pegou o objeto próximo a roda : um dente, na realidade, um pedaço da arcada dentária de uma das suas vítimas embolada num tufo de cabelo louro.

_ Poderíamos ter sido muito felizes, mas você e essa sua maldita curiosidade... Sempre me desobedecendo, sempre invadindo a minha privacidade. Você não entenderia nunca . Amei todas aquelas mulheres , todas as seis . Queria que fossem só minhas, que nunca envelhecessem e que eu pudesse tê-las e admirá-las para sempre. Eram independentes demais e tinha medo que me deixassem sozinho. Achei que você era diferente, que me amaria e nunca me deixaria, mas olhe para você , querendo me deixar... Não posso deixar você partir, entende ?

Ela tentou correr mas suas pernas não respondiam, tentou gritar mas a garganta estava seca demais. A voz dele foi ficando cada vez mais distante e finalmente tudo escureceu.

***

Não podia se mexer . Sentia de novo aquele cheiro peculiar de vela. Não podia falar pois a boca fora-lhe amordaçada. Um líquido quente começou a queimar lhe a pele e a medida que endurecia, limitava seus movimentos. Inicialmente a cabeça, deixando livre os orifícios dos olhos e narinas . O líquido escorria pelo pescoço, colo, tronco e finalmente braços e pernas. Podia vê- lo, em pé, esculpindo a cera com prazer e sorrindo... Apenas os olhos dela falavam. Uma mistura de terror e melancolia substituída ao final de alguns dias pela névoa cinza e sem brilho de uma simples estátua de cera.