Bem gente, desculpem a demora, mas agradeço aos poucos, mas fiéis leitores, que acompanharam essa saga. Espero que gostem do final e mais uma vez agradeço a atenção de todos. Boa leitura!
Pantanal das Lamentações - Final
Agora eram apenas três, dois homens e uma menina.
A menina, pequena e enigmática, refletia em sua face infantil o próprio sofrimento. Ela sentia dores, sentia medo, enfim, sentia tudo que um adulto poderia sentir, mas era apenas uma criança e tudo para ela parecia ser mais assustador. Quando a Arnaldo, este apenas parecia esperar pelo fim, resignado, estava ali por que merecia, pelo menos era isso que ele pensava, todas as mortes que provocara, todas as vidas que tirara, tudo isso tinha um preço e agora ele o pagava. Augusto de certa forma também sabia que passava por tudo aquilo por que também o merecia, tanto tentou evitar voltar ao Pantanal que o destino, tramando contra ele, o trouxera ali, mas aquele não era o Pantanal que ele conhecia, mesmo assim era o Pantanal conforme ele sempre enxergou: um lugar que deveria ser esquecido.
- Sabe piloto – falou Arnaldo – eu sou um canalha, sempre fui. Ganhei a vida tirando a vida dos outros. Dizem que isto é errado, só Deus pode tirar a vida de alguém, por isso tentei mudar, arrumar um emprego, mas a violência sempre me perseguiu. De todos os empregos no mundo consegui logo o de segurança!
- Talvez seja o destino. – respondeu Arnaldo – Talvez seu destino fosse segurar uma arma. Quem sabe as forças superiores, se é que existem, estavam usando você para algum fim maior?
- Falou bem, se é que existem, mas se alguma força superior me usou a seus serviços essa força só pode ser a própria Morte, pois matar foi a única coisa que fiz. Mas não acredito nisso, simplesmente por que gostava do que fazia piloto, eu gostava de matar. Acha que temo este lugar? Pois eu não temo, eu fiz para estar aqui. Assim como você.
- O que está insinuando? – tentou se evadir Augusto.
- Ora piloto, o tempo de mentiras já acabou, você fez algo, algo muito grave para estar aqui. O que foi? Talvez se disser seu sofrimento será menor.
- Meu crime não tem nome guarda. É algo que deveria ser esquecido e enterrado, mas que me persegue todos os dias.
- É, se ele o perseguia acho que já o alcançou. Mas me diga algo, e quanto a ela? – perguntou Arnaldo referindo-se a garota – O que acha que ela faz neste lugar? Será um engano dos céus?
- Não sei, só sei que ela sofre mais do que todos nós, está vendo coisas fortes demais para uma criança presenciar. As vezes penso se ela tem um pai e uma mãe preocupados com ela.
A menina, sem emitir uma única palavra, os observava deixando-os ainda mais confusos. De qualquer forma Augusto deixou de pensar nela rapidamente, seu corpo agora doía ainda mais, podia sentir a queimação insistente em sua pele que antes estava apenas vermelha, mas que agora se enchia de pequenas bolhas.
- Parece até que andou brincando com fogo piloto. – comentou Arnaldo.
Augusto sabia que aquele comentário tinha um fundo de verdade.
Sem destino e sem esperança eles avançaram. Somente o som de seus passos se arrastando no terreno encharcado era ouvido, o céu permanecia encoberto e as nuvens escuras delimitavam uma linha no horizonte tênue e sombria ao se encontrarem com as aguas negras e estagnadas do Pantanal. A paisagem imutável não parecia ter fim, cada passo que davam não parecia leva-los a lugar algum, mas então algo surgiu no horizonte, um pequeno ponto a princípio, mas que depois se revelou serem dois objetos.
- Veja – falou Augusto – tem alguma coisa lá.
- Tomara que seja uma saída desde lugar, ou que seja pelo menos nosso fim, não aguento mais! – disse Arnaldo.
Durante a lenta aproximação eles perceberam irem em direção a duas construções, uma grande e uma menor. Aproximando-se ainda mais eles finalmente puderam identifica-las: era um grande casarão, do tipo encontrando em fazendas, com uma casinha menor ao lado.
- Oh meu Deus! – exclamou Augusto – Não pode ser!
- Conhece este lugar piloto?
Augusto continuava observando atônito. Arnaldo tentava entender tudo. Mas foi a menina que teve a reação mais surpreendente:
- Ma-ma-mama! – gritou ela com dificuldade rindo e pulando, arrastando a mão de Augusto e querendo ir em direção a casa menor.
Os dois homens a olharam espantados, eram as primeiras palavras que ouviram da boca daquela criança. Porém eles ouviram mais do aquilo.
Bem ao longe, atrás deles, o relinchar alto e agudo de um cavalo preencheu o pântano. Os três lentamente se viraram sabendo o que iriam encontrar. E lá estava ele, o mesmo cavaleiro sombrio que levou André, o primeiro deles a morrer.
- Piloto, eu não conheço este lugar, mas parece que você e a garota conhecem, isso significa que o meu destino esta aqui fora e o de vocês lá dentro. Vão para lá, eu vou esperar aquele desgraçado chegar até aqui.
Augusto olhou nos olhos de Arnaldo, ele poderia ser um assassino, mas portou-se como um bom companheiro durante aquela desprezível jornada.
- Adeus amigo – disse Augusto estendendo uma mão avermelhada e cheia de bolhas, algumas já se abrindo.
- Adeus piloto, mas acho que em breve nos veremos no inferno. Menos você pequena, espero que consiga sair daqui. – falou ele olhando para a criança.
Augusto o deixou e foi com a criança em direção a casa menor. Ele iria enfrentar seu destino.
Arnaldo apenas esperou. O cavaleiro aproximava-se bem devagar, trotando lentamente.
- Vem de uma vez miserável! – gritava Arnaldo.
O cavaleiro chegou bem perto, sua cabeça, apenas uma caveira sem olhos, se virou na direção do segurança, ele desceu de seu cavalo e se aproximou bem devagar de sua vitima, colocando-se face a face com ele.
- Assassino – disse o estranho com uma voz cavernosa – os outros esperam por você.
- Me leva de uma vez então! – Arnaldo gritou.
O estranho cavaleiro ergueu as mãos e segurou a cabeça de Arnaldo que tremeu com o toque frio de seus dedos esqueléticos, ele tentou se soltar daquele aperto esmagador, mas era impossível. Então o cavaleiro girou os braços torcendo o pescoço de Arnaldo, o som de sua coluna se partindo chegou até Augusto que se virou para ver o desfecho de tudo.
E o que Augusto viu foi o cavaleiro esqueleto torcer o pescoço de Arnaldo até sua cabeça se soltar do corpo, corpo que caiu sem vida no chão, mas estranhamente a cabeça de Arnaldo ainda parecia ter vida, pois seus olhos e boca se abriam e fechavam em uma tocante expressão de dor. O cavaleiro levantou a cabeça de Arnaldo a segurando pelos cabelos e enquanto o sangue escorria de seu pescoço partido Arnaldo olhou para seu algoz e fez a única coisa que ainda podia: riu. Riu desgraçadamente e descaradamente para morte, cumprindo sua promessa.
O cavaleiro subiu em sua montaria sem se importar com Augusto e a menina e partiu, levando consigo a cabeça de Arnaldo com seu riso a se perder ao longe.
Agora restavam apenas dois.
- Bem, eu tenho que enfrentar meu destino, vamos lá – falou Augusto para a criança.
Eles pararam em frente a porta da casa menor, a pequena garota a abriu e entrou rapidamente. Antes de entrar Augusto olhou para o casarão e pode ver que um pouco de fumaça escapava de suas janelas, ele olhou em volta do ambiente sombrio esperando ver alguma outra coisa, mas nada viu. Conformado, ele entrou na pequena casa.
Lá dentro a garotinha corria de um lugar para o outro, parecia procurar alguma coisa, mas não encontrava nada.
Augusto observou a casa, pequena, simples, mas aconchegante e bem decorada. Ele mais uma vez seguiu a garotinha até um quarto onde ela se deitou em uma cama lindamente adornada com motivos infantis. A menina deitou-se na cama, segurou uma boneca encontrada lá, abaixou a cabeça e começou a chorar, um choro baixo e comovente.
Augusto se aproximou dela, sentou-se na cama, tocou sua cabecinha com suas mãos queimadas e disse:
- Eu não queria que tivesse terminado assim, eu...
- Você é um homem mal! – disse a garotinha de repente assustando o piloto.
- Você fala? – perguntou Augusto incrédulo.
- Não, eu nunca falei, mas aqui não precisamos de palavras Capitão Augusto Borges. Elas não são necessárias para dizer o que sinto.
- Eu não entendo... – continuou Augusto.
- Vai entender.
A menina acariciou os cabelos da boneca e olhou pela janela, por ela era possível ver a fumaça tomar conta do casarão ao lado, lentamente consumido pelo fogo.
- Tudo começou lá não foi – disse a garota apontando para a casa em chamas.
- Sim – respondeu Augusto.
- Era um de seus clientes que morava ali, um rico fazendeiro do Pantanal. Mas mais do que seu cliente ele era seu amigo, ele era um homem bom. Eu lembro que ele sempre me dava presentes, como este – a garotinha mostrou a boneca – eu gostava dele, mas ele não vivia sozinho não é Augusto? Ele tinha uma esposa, uma bela esposa.
Augusto ouvia tudo o que a garota dizia.
- Sim Augusto, ela era linda, linda e tão gentil quanto o esposo – continuava a garota com uma maturidade que não combinava com seu corpinho infantil – Era tão bonita que despertou em você um desejo. E você Augusto tentou esconder esse desejo, tentou negar o que sentia, mas não conseguiu. Então você começou a corteja-la as escondidas, mas ela era uma mulher nobre e nunca cedeu a seus anseios. Você vivia um dilema Augusto, eu sei, estava apaixonado pela mulher de um amigo, mas você podia ter ido embora, podia tentar esquece-la, mas não fez nada disso não é? Fez a pior escolha possível.
- Eu estava fora de mim... – tentou se explicar Augusto.
- Sim, eu sei, você fraquejou, mas isso não explica as atitudes que tomou a partir daí. Um homem decente não faria o que você fez. Você nunca foi decente Augusto, como todos aqueles ladrões que estavam no avião você quis tomar o que não era seu, e quis tomar a força!
Augusto sentiu a pele se queimar ainda mais, bolhas e bolhas, enormes e dilatadas tomavam conta de seu corpo, explodindo e revelando a carne sob a pele.
- Ah Augusto! Por que não foi embora? – continuou a menina – Mas não, os pensamentos maquiavélicos tomavam conta de sua cabeça e você arquitetou um plano sinistro: sequestraria a esposa de seu amigo e a levaria com você em seu avião. Mas as coisas não saíram como planejado. Vocês dormiam no casarão aquela noite, eles no andar de cima e você no andar de baixo, você sabia que ela descia todas as noites em busca de um copo de água e aí você atacou: ela desceu e você a agarrou por trás tapando sua boca e apontando uma arma para sua cabeça, queria leva-la sem estardalhaço, mas ela não se entregou, ela lutou e conseguiu se soltar e gritar. Então você, tomado de ira e fúria, a agrediu, deu-lhe uma coronhada que marcou seu rosto angelical e a atirou contra a parede fazendo-a chorar.
Augusto abaixou-se no chão, a dor das queimaduras e a dor das lembranças se misturavam provocando um sofrimento maior do que qualquer outro que já tenha experimentando antes.
- Você parou por um momento Augusto, pensou em ir embora, mas novamente não o fez. O corpo daquela mulher indefesa no chão não provocou pena em você, ao contrário provocou mais desejo, um desejo insano de possuí-la. E você o faria Augusto, mas neste momento seu amigo apareceu, seu bom amigo. Ele não entendeu nada, viu você tentando agredir a mulher que ele tanto amava e não pensou duas vezes, reagiu. E você o que fez? Você atirou Augusto, atirou e matou uma pessoa que sempre lhe dera amizade e atenção!
- Eu o matei... – balbuciou Augusto quase chorando.
- Sim, você o matou a sangue frio. E mais uma vez poderia ter ido embora capitão. Mas o desejo era mais forte, não deixou que a mulher nem ao menos chorasse a morte do esposo, você não a respeitou, você simplesmente a atacou, a espancou, rasgou suas roupas e a violou, a violou como só um monstro faria, um monstro pior do que Ernani.
Augusto voltava no tempo, os gritos da mulher ecoavam em seus ouvidos enquanto era espancada e violentada por ele em sua loucura.
- E por fim você a matou, a matou estrangulada não foi Augusto? Depois de tudo você olhou os mortos e pensou no que fazer com eles. Então você teve a ideia, a brilhante ideia, a fazenda estava cercada de jacarés, por que não dar os corpos a eles?
Augusto lembrou-se dos jacarés em volta da fazenda.
- Você os esquartejou Augusto, os esquartejou e atirou os pedaços de seus corpos para aqueles répteis. Mas seu crime não permaneceu escondido Augusto, você foi visto, foi visto e por isso matou de novo. Tornou-se um assassino Augusto, um assassino assim como aquele guarda, Arnaldo, foi um dia.
- Eu não queria mata-los, mas se não o fizesse... – tentou explicar Augusto.
- Eles iriam denuncia-lo, eu sei, eram pessoas boas. Eram meus pais, os caseiros da fazenda. Eles viram você atirando os corpos de seus patrões para os jacarés e antes que pudessem fazer qualquer coisa você atirou, atirou pelas costas em um homem e uma mulher indefessos e deu a seus corpos o mesmo destino nefasto, alimentou os jacarés com eles.
A menina parou um pouco, lágrimas desciam de seus olhos. E pela primeira vez Augusto percebeu a temperatura subir e um pouco de fumaça invadir o ambiente.
- Mas ainda era pouco, não é Augusto Borges? Era preciso eliminar todas as provas, apagar tudo, ou melhor, queimar tudo, e foi isso que você fez. Primeiro ateou fogo no casarão, espalhou gasolina em tudo e ascendeu um fosforo. As chamas consumiram aquela casa em poucos minutos. Porém ainda havia a pequena casa, a casa do caseiro e sua esposa, então você foi até lá e atirou tochas pela janela, e a pequena casa incendiou-se também, mas havia algo que você não sabia.
- Eu lamento tanto... – Augusto dizia desolado.
- Não lamente. – disse a menina – De qualquer forma o casal de caseiros tinha uma filha, eu, e naquele dia eu dormia nessa cama com minha boneca. Quando acordei o fogo tomava conta de tudo, eu tentei gritar, mas eu era apenas uma criança muda e as palavras não saíram, eu apenas senti meu corpo se queimar devagar enquanto ouvia o som de um avião decolando e partindo para longe. Eu não deveria morrer aquele dia capitão, morri antes da hora e por isso meu espirito tem vagado neste lugar de sofrimento desde então, mas um dia um cavaleiro medonho me avisou que eu seria libertada assim que sete desgraçados, inclusive o culpado de minha morte, pagassem por seus crimes. Agora Augusto eu estou feliz, pois sei que meu sofrimento acabou.
Augusto permaneceu no chão. Agora até suas roupas se queimavam enquanto sua pele se soltava do corpo revelando extensas queimaduras de segundo grau.
- Sofra Capitão – disse a menina se abaixando até ele – sofra como eu sofri. Tenho que partir agora, meu tempo no vale da sombra e da morte acabou, vou para um lugar melhor do que este. Quanto a você, talvez agora se encontre com seus amigos.
A menina levou sua boneca e o deixou, Augusto sentiu a dor insuportável de ser queimado vivo e pensou que aquela dor deveria ter sido muito mais intensa em uma criança.
- Se é assim – balbuciou ele – que eu pague por meus crimes.
A fumaça tomava conta de tudo, as paredes e os móveis começaram a se incendiar lentamente. Augusto percebeu então que as chamas ganhavam formas, formas reptilianas, jacarés de fogo que avançavam sobre ele devorando sua carne queimada.
O piloto sofria em silencio, sabendo merecer tudo que passava. Então, vindo lá de fora, ele ouve o relinchar de um cavalo. Ele tenta levantar a cabeça, seus olhos já sem pálpebras enxergam em meio a fumaça a figura do cavaleiro esquelético e seu cavalo e, montada em sua garupa, a pequena menina segura sua boneca e acena para ele. Os dois então desaparecem na imensidão.
Augusto se deixa devorar pelo fogo, uma fumaça negra sobe até os céus formando nuvens escuras. E na imensidão daquele Pantanal nada é ouvido, nada a não ser as lamentações de um homem condenado.
A menina, pequena e enigmática, refletia em sua face infantil o próprio sofrimento. Ela sentia dores, sentia medo, enfim, sentia tudo que um adulto poderia sentir, mas era apenas uma criança e tudo para ela parecia ser mais assustador. Quando a Arnaldo, este apenas parecia esperar pelo fim, resignado, estava ali por que merecia, pelo menos era isso que ele pensava, todas as mortes que provocara, todas as vidas que tirara, tudo isso tinha um preço e agora ele o pagava. Augusto de certa forma também sabia que passava por tudo aquilo por que também o merecia, tanto tentou evitar voltar ao Pantanal que o destino, tramando contra ele, o trouxera ali, mas aquele não era o Pantanal que ele conhecia, mesmo assim era o Pantanal conforme ele sempre enxergou: um lugar que deveria ser esquecido.
- Sabe piloto – falou Arnaldo – eu sou um canalha, sempre fui. Ganhei a vida tirando a vida dos outros. Dizem que isto é errado, só Deus pode tirar a vida de alguém, por isso tentei mudar, arrumar um emprego, mas a violência sempre me perseguiu. De todos os empregos no mundo consegui logo o de segurança!
- Talvez seja o destino. – respondeu Arnaldo – Talvez seu destino fosse segurar uma arma. Quem sabe as forças superiores, se é que existem, estavam usando você para algum fim maior?
- Falou bem, se é que existem, mas se alguma força superior me usou a seus serviços essa força só pode ser a própria Morte, pois matar foi a única coisa que fiz. Mas não acredito nisso, simplesmente por que gostava do que fazia piloto, eu gostava de matar. Acha que temo este lugar? Pois eu não temo, eu fiz para estar aqui. Assim como você.
- O que está insinuando? – tentou se evadir Augusto.
- Ora piloto, o tempo de mentiras já acabou, você fez algo, algo muito grave para estar aqui. O que foi? Talvez se disser seu sofrimento será menor.
- Meu crime não tem nome guarda. É algo que deveria ser esquecido e enterrado, mas que me persegue todos os dias.
- É, se ele o perseguia acho que já o alcançou. Mas me diga algo, e quanto a ela? – perguntou Arnaldo referindo-se a garota – O que acha que ela faz neste lugar? Será um engano dos céus?
- Não sei, só sei que ela sofre mais do que todos nós, está vendo coisas fortes demais para uma criança presenciar. As vezes penso se ela tem um pai e uma mãe preocupados com ela.
A menina, sem emitir uma única palavra, os observava deixando-os ainda mais confusos. De qualquer forma Augusto deixou de pensar nela rapidamente, seu corpo agora doía ainda mais, podia sentir a queimação insistente em sua pele que antes estava apenas vermelha, mas que agora se enchia de pequenas bolhas.
- Parece até que andou brincando com fogo piloto. – comentou Arnaldo.
Augusto sabia que aquele comentário tinha um fundo de verdade.
Sem destino e sem esperança eles avançaram. Somente o som de seus passos se arrastando no terreno encharcado era ouvido, o céu permanecia encoberto e as nuvens escuras delimitavam uma linha no horizonte tênue e sombria ao se encontrarem com as aguas negras e estagnadas do Pantanal. A paisagem imutável não parecia ter fim, cada passo que davam não parecia leva-los a lugar algum, mas então algo surgiu no horizonte, um pequeno ponto a princípio, mas que depois se revelou serem dois objetos.
- Veja – falou Augusto – tem alguma coisa lá.
- Tomara que seja uma saída desde lugar, ou que seja pelo menos nosso fim, não aguento mais! – disse Arnaldo.
Durante a lenta aproximação eles perceberam irem em direção a duas construções, uma grande e uma menor. Aproximando-se ainda mais eles finalmente puderam identifica-las: era um grande casarão, do tipo encontrando em fazendas, com uma casinha menor ao lado.
- Oh meu Deus! – exclamou Augusto – Não pode ser!
- Conhece este lugar piloto?
Augusto continuava observando atônito. Arnaldo tentava entender tudo. Mas foi a menina que teve a reação mais surpreendente:
- Ma-ma-mama! – gritou ela com dificuldade rindo e pulando, arrastando a mão de Augusto e querendo ir em direção a casa menor.
Os dois homens a olharam espantados, eram as primeiras palavras que ouviram da boca daquela criança. Porém eles ouviram mais do aquilo.
Bem ao longe, atrás deles, o relinchar alto e agudo de um cavalo preencheu o pântano. Os três lentamente se viraram sabendo o que iriam encontrar. E lá estava ele, o mesmo cavaleiro sombrio que levou André, o primeiro deles a morrer.
- Piloto, eu não conheço este lugar, mas parece que você e a garota conhecem, isso significa que o meu destino esta aqui fora e o de vocês lá dentro. Vão para lá, eu vou esperar aquele desgraçado chegar até aqui.
Augusto olhou nos olhos de Arnaldo, ele poderia ser um assassino, mas portou-se como um bom companheiro durante aquela desprezível jornada.
- Adeus amigo – disse Augusto estendendo uma mão avermelhada e cheia de bolhas, algumas já se abrindo.
- Adeus piloto, mas acho que em breve nos veremos no inferno. Menos você pequena, espero que consiga sair daqui. – falou ele olhando para a criança.
Augusto o deixou e foi com a criança em direção a casa menor. Ele iria enfrentar seu destino.
Arnaldo apenas esperou. O cavaleiro aproximava-se bem devagar, trotando lentamente.
- Vem de uma vez miserável! – gritava Arnaldo.
O cavaleiro chegou bem perto, sua cabeça, apenas uma caveira sem olhos, se virou na direção do segurança, ele desceu de seu cavalo e se aproximou bem devagar de sua vitima, colocando-se face a face com ele.
- Assassino – disse o estranho com uma voz cavernosa – os outros esperam por você.
- Me leva de uma vez então! – Arnaldo gritou.
O estranho cavaleiro ergueu as mãos e segurou a cabeça de Arnaldo que tremeu com o toque frio de seus dedos esqueléticos, ele tentou se soltar daquele aperto esmagador, mas era impossível. Então o cavaleiro girou os braços torcendo o pescoço de Arnaldo, o som de sua coluna se partindo chegou até Augusto que se virou para ver o desfecho de tudo.
E o que Augusto viu foi o cavaleiro esqueleto torcer o pescoço de Arnaldo até sua cabeça se soltar do corpo, corpo que caiu sem vida no chão, mas estranhamente a cabeça de Arnaldo ainda parecia ter vida, pois seus olhos e boca se abriam e fechavam em uma tocante expressão de dor. O cavaleiro levantou a cabeça de Arnaldo a segurando pelos cabelos e enquanto o sangue escorria de seu pescoço partido Arnaldo olhou para seu algoz e fez a única coisa que ainda podia: riu. Riu desgraçadamente e descaradamente para morte, cumprindo sua promessa.
O cavaleiro subiu em sua montaria sem se importar com Augusto e a menina e partiu, levando consigo a cabeça de Arnaldo com seu riso a se perder ao longe.
Agora restavam apenas dois.
- Bem, eu tenho que enfrentar meu destino, vamos lá – falou Augusto para a criança.
Eles pararam em frente a porta da casa menor, a pequena garota a abriu e entrou rapidamente. Antes de entrar Augusto olhou para o casarão e pode ver que um pouco de fumaça escapava de suas janelas, ele olhou em volta do ambiente sombrio esperando ver alguma outra coisa, mas nada viu. Conformado, ele entrou na pequena casa.
Lá dentro a garotinha corria de um lugar para o outro, parecia procurar alguma coisa, mas não encontrava nada.
Augusto observou a casa, pequena, simples, mas aconchegante e bem decorada. Ele mais uma vez seguiu a garotinha até um quarto onde ela se deitou em uma cama lindamente adornada com motivos infantis. A menina deitou-se na cama, segurou uma boneca encontrada lá, abaixou a cabeça e começou a chorar, um choro baixo e comovente.
Augusto se aproximou dela, sentou-se na cama, tocou sua cabecinha com suas mãos queimadas e disse:
- Eu não queria que tivesse terminado assim, eu...
- Você é um homem mal! – disse a garotinha de repente assustando o piloto.
- Você fala? – perguntou Augusto incrédulo.
- Não, eu nunca falei, mas aqui não precisamos de palavras Capitão Augusto Borges. Elas não são necessárias para dizer o que sinto.
- Eu não entendo... – continuou Augusto.
- Vai entender.
A menina acariciou os cabelos da boneca e olhou pela janela, por ela era possível ver a fumaça tomar conta do casarão ao lado, lentamente consumido pelo fogo.
- Tudo começou lá não foi – disse a garota apontando para a casa em chamas.
- Sim – respondeu Augusto.
- Era um de seus clientes que morava ali, um rico fazendeiro do Pantanal. Mas mais do que seu cliente ele era seu amigo, ele era um homem bom. Eu lembro que ele sempre me dava presentes, como este – a garotinha mostrou a boneca – eu gostava dele, mas ele não vivia sozinho não é Augusto? Ele tinha uma esposa, uma bela esposa.
Augusto ouvia tudo o que a garota dizia.
- Sim Augusto, ela era linda, linda e tão gentil quanto o esposo – continuava a garota com uma maturidade que não combinava com seu corpinho infantil – Era tão bonita que despertou em você um desejo. E você Augusto tentou esconder esse desejo, tentou negar o que sentia, mas não conseguiu. Então você começou a corteja-la as escondidas, mas ela era uma mulher nobre e nunca cedeu a seus anseios. Você vivia um dilema Augusto, eu sei, estava apaixonado pela mulher de um amigo, mas você podia ter ido embora, podia tentar esquece-la, mas não fez nada disso não é? Fez a pior escolha possível.
- Eu estava fora de mim... – tentou se explicar Augusto.
- Sim, eu sei, você fraquejou, mas isso não explica as atitudes que tomou a partir daí. Um homem decente não faria o que você fez. Você nunca foi decente Augusto, como todos aqueles ladrões que estavam no avião você quis tomar o que não era seu, e quis tomar a força!
Augusto sentiu a pele se queimar ainda mais, bolhas e bolhas, enormes e dilatadas tomavam conta de seu corpo, explodindo e revelando a carne sob a pele.
- Ah Augusto! Por que não foi embora? – continuou a menina – Mas não, os pensamentos maquiavélicos tomavam conta de sua cabeça e você arquitetou um plano sinistro: sequestraria a esposa de seu amigo e a levaria com você em seu avião. Mas as coisas não saíram como planejado. Vocês dormiam no casarão aquela noite, eles no andar de cima e você no andar de baixo, você sabia que ela descia todas as noites em busca de um copo de água e aí você atacou: ela desceu e você a agarrou por trás tapando sua boca e apontando uma arma para sua cabeça, queria leva-la sem estardalhaço, mas ela não se entregou, ela lutou e conseguiu se soltar e gritar. Então você, tomado de ira e fúria, a agrediu, deu-lhe uma coronhada que marcou seu rosto angelical e a atirou contra a parede fazendo-a chorar.
Augusto abaixou-se no chão, a dor das queimaduras e a dor das lembranças se misturavam provocando um sofrimento maior do que qualquer outro que já tenha experimentando antes.
- Você parou por um momento Augusto, pensou em ir embora, mas novamente não o fez. O corpo daquela mulher indefesa no chão não provocou pena em você, ao contrário provocou mais desejo, um desejo insano de possuí-la. E você o faria Augusto, mas neste momento seu amigo apareceu, seu bom amigo. Ele não entendeu nada, viu você tentando agredir a mulher que ele tanto amava e não pensou duas vezes, reagiu. E você o que fez? Você atirou Augusto, atirou e matou uma pessoa que sempre lhe dera amizade e atenção!
- Eu o matei... – balbuciou Augusto quase chorando.
- Sim, você o matou a sangue frio. E mais uma vez poderia ter ido embora capitão. Mas o desejo era mais forte, não deixou que a mulher nem ao menos chorasse a morte do esposo, você não a respeitou, você simplesmente a atacou, a espancou, rasgou suas roupas e a violou, a violou como só um monstro faria, um monstro pior do que Ernani.
Augusto voltava no tempo, os gritos da mulher ecoavam em seus ouvidos enquanto era espancada e violentada por ele em sua loucura.
- E por fim você a matou, a matou estrangulada não foi Augusto? Depois de tudo você olhou os mortos e pensou no que fazer com eles. Então você teve a ideia, a brilhante ideia, a fazenda estava cercada de jacarés, por que não dar os corpos a eles?
Augusto lembrou-se dos jacarés em volta da fazenda.
- Você os esquartejou Augusto, os esquartejou e atirou os pedaços de seus corpos para aqueles répteis. Mas seu crime não permaneceu escondido Augusto, você foi visto, foi visto e por isso matou de novo. Tornou-se um assassino Augusto, um assassino assim como aquele guarda, Arnaldo, foi um dia.
- Eu não queria mata-los, mas se não o fizesse... – tentou explicar Augusto.
- Eles iriam denuncia-lo, eu sei, eram pessoas boas. Eram meus pais, os caseiros da fazenda. Eles viram você atirando os corpos de seus patrões para os jacarés e antes que pudessem fazer qualquer coisa você atirou, atirou pelas costas em um homem e uma mulher indefessos e deu a seus corpos o mesmo destino nefasto, alimentou os jacarés com eles.
A menina parou um pouco, lágrimas desciam de seus olhos. E pela primeira vez Augusto percebeu a temperatura subir e um pouco de fumaça invadir o ambiente.
- Mas ainda era pouco, não é Augusto Borges? Era preciso eliminar todas as provas, apagar tudo, ou melhor, queimar tudo, e foi isso que você fez. Primeiro ateou fogo no casarão, espalhou gasolina em tudo e ascendeu um fosforo. As chamas consumiram aquela casa em poucos minutos. Porém ainda havia a pequena casa, a casa do caseiro e sua esposa, então você foi até lá e atirou tochas pela janela, e a pequena casa incendiou-se também, mas havia algo que você não sabia.
- Eu lamento tanto... – Augusto dizia desolado.
- Não lamente. – disse a menina – De qualquer forma o casal de caseiros tinha uma filha, eu, e naquele dia eu dormia nessa cama com minha boneca. Quando acordei o fogo tomava conta de tudo, eu tentei gritar, mas eu era apenas uma criança muda e as palavras não saíram, eu apenas senti meu corpo se queimar devagar enquanto ouvia o som de um avião decolando e partindo para longe. Eu não deveria morrer aquele dia capitão, morri antes da hora e por isso meu espirito tem vagado neste lugar de sofrimento desde então, mas um dia um cavaleiro medonho me avisou que eu seria libertada assim que sete desgraçados, inclusive o culpado de minha morte, pagassem por seus crimes. Agora Augusto eu estou feliz, pois sei que meu sofrimento acabou.
Augusto permaneceu no chão. Agora até suas roupas se queimavam enquanto sua pele se soltava do corpo revelando extensas queimaduras de segundo grau.
- Sofra Capitão – disse a menina se abaixando até ele – sofra como eu sofri. Tenho que partir agora, meu tempo no vale da sombra e da morte acabou, vou para um lugar melhor do que este. Quanto a você, talvez agora se encontre com seus amigos.
A menina levou sua boneca e o deixou, Augusto sentiu a dor insuportável de ser queimado vivo e pensou que aquela dor deveria ter sido muito mais intensa em uma criança.
- Se é assim – balbuciou ele – que eu pague por meus crimes.
A fumaça tomava conta de tudo, as paredes e os móveis começaram a se incendiar lentamente. Augusto percebeu então que as chamas ganhavam formas, formas reptilianas, jacarés de fogo que avançavam sobre ele devorando sua carne queimada.
O piloto sofria em silencio, sabendo merecer tudo que passava. Então, vindo lá de fora, ele ouve o relinchar de um cavalo. Ele tenta levantar a cabeça, seus olhos já sem pálpebras enxergam em meio a fumaça a figura do cavaleiro esquelético e seu cavalo e, montada em sua garupa, a pequena menina segura sua boneca e acena para ele. Os dois então desaparecem na imensidão.
Augusto se deixa devorar pelo fogo, uma fumaça negra sobe até os céus formando nuvens escuras. E na imensidão daquele Pantanal nada é ouvido, nada a não ser as lamentações de um homem condenado.