Culpa.

A passadas lentas e dificultosas, seguia em direção ao quarto no último andar. Uma espécie de punição imposta por si, mas não que adiantasse ou cortasse o mau plantado por si no passado... O lance de escadas pela metade havia feito de sua respiração um fio delicado, tal como seus movimentos imprecisos. Tolice acreditar que quando o lance de escadas acabasse ficaria bem, tolice.

Agora... Agora... Agora...

Tão logo se encostou à parede de tijolos puídos, a mão no peito por sobre o coração, uma fisgada mais dolorosa e a vã esperança de que ficaria bem.

- Misericórdia... - a voz cansada e maldita, deixou os lábios murchos e enrugados.

Punição... Punição... Punição...

O ar de repente escasso, saiu em golfadas do pulmão doente. O medo gritante o fazia olhar desesperado para os lados.

Apertou o terço em sua mão e sentiu a cruz que trazia pendurada no pescoço, queimar a pele por cima da roupa pesada e negra. O corpo balançando sem ritmo, a voz falhada e desesperada... Uma oração manchada.

- Perdão, Pai...

O espaço entre uma parede e outra ficara estranhamente menor, os degraus parecendo dentes afiados querendo o engolir, o arrependimento tardio e sem valor.

Arrependimento... Arrependimento... Arrependimento...

Ignorando os sussurros gritantes que enchiam seus ouvidos, se obrigou a caminhar novamente. O que poderia ser pior que seu arrependimento? Os passos voltaram assim como a batida do coração já operado, e, pagava agora os erros que cometeu quando jovem... Ah, se soubesse... Ah, se pudesse...

- Padre Olavo?

Ouviu ao longe a voz de um coroinha, moveu o corpo devagar e fitou o pequeno menino loiro:

- Tudo bem com o senhor? - a voz infantil trouxe lembranças. Como queria esquecer!

Por favor... Por favor... Por favor...

- Me perdoa, filho?

Se pronunciou e com mais esforço do que pensou que usaria, esticou a mão e tocou o ombro do garoto.

- Perdoar? - um sorriso sarcástico se formou nos lábios finos do menor.

O velho inclinou a cabeça para o lado:

- Filho...? - a voz receosa, arrancou risadas.

- Oh, sim, padre querido! - riu sapeca - Me chame do que quiser. - os olhos passando de um verde oliva para o negro noturno, tal como a voz açucarada que se transformara numa mistura amarga e seca.

Um leve arregalar dos olhos parcialmente tomados pela catarata, um salavanco que poderia rasgar o peito e cuspir o coração igualmente doente no chão de pedras áspera.

- Deus! - exclamou levando a mão até a boca.

Uma risada tão alta quanto o som da respiração do velho:

- Oh, não... - um falso pesar na voz do garoto. - Vou te dar outra chance. - sorriu se encostando na parede. - Pense em alguém expulso por desobediência. - piscou maroto.

- Por mil demônios! - exclamou assustado, arrancou a cruz de seu cordão e estendeu à frente do outro juntamente com o terço que segurava.

- Mil não, apenas um. - e o sorriso jocoso não deixava os lábios do loiro.

- O sangue de Jesus tem poder! - falou tremulo.

- Sim, sim... Pai nosso que estás no céu. - rolou os olhos negros - Sei de cor toda essa bobagem. - suspirou cansado.

- Cristo! - berrou num latim enferrujado.

- Maria, José e a turma toda! - desdenhou rolando os olhos novamente e então um ar sério pairou sobre o menor - Podemos falar sério, agora?

Tão atordoado quanto podia estar, o velho se encolheu e a parede fora seu suporte. Apertou os olhos com força, desejoso de que quando acordasse o outro não estivesse diante de si. Abriu os olhos cinzentos e o que vira fora o menino que um dia cuidara e ensinara sobre o Catolicismo, distorcido à imagem do que sempre temeu.

Maldição... Maldição... Maldição...

Com o coração batendo alucinado no peito, negou freneticamente com a cabeça antes de num rompante de jovialidade, se pôr à correr. As pernas levemente tremulas pareciam se embolar entre si, a respiração perturbada escapando em ofegos... As mãos já sem força se apoiando nas paredes como quem busca impulso para continuar.

Nem percebeu quando, mas alcançou o final da escada e se arrastando o mais rápido que conseguiu passou pelo corredor escuro e frio. Abriu a porta se atrapalhando com a massaneta antiga e enferrujada, entrou afoito e bateu a porta. Trancou-a e para garantir puxou a cadeira de sua escrivaninha, prensando-a abaixo da massaneta. Procurou por seu vidro de água benta e quando o achou, jogou sobre a porta, molhando a madeira velha e ruidosa.

Seu peito parecia fazer uma força anormal para segurar o coração que galopava alucinado, o corpo tremulo e assustado se ajoelhou sentindo dor nas articulações, com o terço seguro num aperto pelas duas mãos, rezou e implorou perdão para o Deus que servia.

Socorro... Socorro... Socorro...

Assustou-se ainda mais quando trovões foram ouvidos, a noite antes repleta de estrelas, agora, macabra e solitária. O vento cortante abria e fechava a janela, em sincronia com os raios e trovões.

Não se atreveu a abrir os olhos, se enrolava nas orações praticamente gritadas... Em vão.

A porta se abrindo lentamente, o fez virar a cabeça para trás, temeroso. Andando majestoso o garoto adentrava o recinto, sem pressa. Lágrimas desesperadas riscavam a face franzida e a respiração parecia ter parado por um momento.

- Podemos falar sério agora? - tornou a indagar, a voz branda e estranhamente calma.

O velho voltou a negar com a cabeça:

- Tenha misericórdia de mim, Pai! - a voz tremula, efeito do corpo que se balançava na vã tentativa de se acalmar.

- Ele não terá, Ele não liga. - um sorriso maquiavélico no rosto branquinho e sem pêlos de menino.

- Perdão... Perdão... Perdão... Perdão... - falava desesperado. Engatinhou até o menor e se mantendo ajoelhado, implorava um perdão que não merecia.

- Você se perdoa? - a pergunta saiu calma, a voz macia.

Como se a Terra tivesse parado de girar, o velho parou com tudo. Os braços enfraquecidos pelo tempo caídos ao lado do corpo, a cabeça baixa em sinal de desorientação, a respiração cansada:

- Não... - a voz cheia de culpa, a alma parecendo queimar dentro do corpo.

Um sorriso sarcástico no rosto do menino:

- Hm, acho que as criancinhas também não o perdoariam... - o dedo no queixo fingindo o ar pensador - E nem vou falar das prostitutas. - comentou maldoso.

O velho levou a mão até os cabelos brancos e ensebados, os dedos puxando os fios:

- Pare! - pediu desesperado para esquecer os lampejos do passado.

- Pare! Pare! Pare, por favor, tio Olavo! - a voz subitamente infantil adentrara o ambiente.

A menina moreninha encostada no canto do quarto, abaixada contra a parede. O vestidinho branco e rosa, manchado de sangue e os cabelos cacheados bagunçados.

- Clara...? - a voz apavorada deixou a boca do padre velho.

- Por favor, tio Olavo... - os choramingos enchiam o quarto.

- Não! Pare com isso! Tire-a daqui! - o velho implorava.

- Parar? - o garoto se aproximou da menina e tocou seu rosto - Tio Olavo, parou quando você pediu, querida? - a voz doce para com a menina.

- Não. - tristonha respondeu, o olhar meigo dirigido ao tio.

- Por favor, tire ela daqui... - pediu derrotado.

''A principal e mais grave punição é se sentir culpado por algo feito por si no passado.''

O loiro se afastou da menina que ainda choramingava, se aproximou do velho e se pôs ao seu lado.

- Você tirou seu pau sujo dela? Parou de enfiar-se nela quando gritando ela implorava para que parasse? - indagava acusador - E as prostitutas que encontrava naquele beco sujo e escuro atrás da igreja? Não se importou em enterrá-las no quintal das galinhas? Não teve pena das criancinhas do orfanato, padre Olavo? Não pensou antes de...

- Cale-se! - berrou arrancando os fios do próprio cabelo - Eu imploro! Pare...

- Todos os gritos de dor, o choro das crianças que não entendiam o que era aquilo. O medo estampado nos olhos de todos que matou, o desespero das vadias que tentavam fugir de você, a frieza com que fala com sua irmã que chora todas as noites pela filha violentada e assassinada...

- Chega! - implorou chorando. As lágrimas pareciam tão pesadas.

- Uma curiosidade aqui. - fez uma pausa para sorrir maldoso - É bom realizar a missa após foder o coroinha?

Negou com a cabeça desesperadamente:

- Ah, pensei que fosse bom. - suspirou.

O velho desesperado, se sufocava no próprio choro. A menina no canto do quarto choramingava e gritos de mulheres eram ouvidos ao longe... O loiro continuava a falar acusador.

- Me mate... - murmurou derrotado, o velho Olavo - E-eu mereço, me leve ao Inferno...

A gargalhada fria pareceu rachar as paredes:

- Matar-te? - indagou ainda risonho - Porque o faria? - olhou o padre com desdém.

- Eu mereço! - gritou - Eu mereço... - repetiu num fio de voz.

- Sim, você merece. - concordou frio - Porém, cada um tem o Inferno que merece. - falou vago.

O velho levantou a cabeça e fitou o outro indagador:

- Seu Inferno será em terra, velho podre. - declarou indiferente.

Antes que pudesse responder, Olavo viu a sobrinha morta por si quando criança desaparecer, os gritos cessaram, a noite ficara bela novamente.

- M-mas...

- E depois eu sou o malvado... - o garoto falou encarando o teto.

- O que...?

Não conseguiu completar a pergunta, assustado assistiu a ventania passar pelo quarto, assim como a lâmpada piscando e o garoto caindo no chão. O padre levantou e temeroso se aproximou do loirinho que abria os olhos verde-oliva e sorria gentil para ele:

- O que aconteceu...? - indagou sentando no chão - Minha cabeça dói... - reclamou com uma careta.

- Gustavo?! - o velho praticamente gritou, assustando o menino.

- Sim, padre! - respondeu prontamente, se levantou com um pouco de dificuldades e confuso encarava àquele que tinha como exemplo.

- Oh, Deus! - exclamou e riu - Devo mesmo estar ficando velho! - ria-se.

- Padre...? - o pequeno não entendia nada.

- Tudo bem, filho. - falou calmo - Vamos rezar que esse velho aqui precisa!

E assim a noite passou, após rezar bastante acompanhado do loiro, realizou a missa e quando já passava da meia-noite foi se deitar, rezou novamente e após tomar um gole d'água, fechou os olhos e sentiu o sono chegar. Tranquilo e despreocupado dormiu.

Cobrança... Cobrança... Cobrança...

Preso dentro do sono, se agitava na cama e sentia todas as suas vítimas o torturando, o fazendo sentir o que sentiram. Queria gritar, mas a boca parecia costurada com o nó do desespero. A cama velha rangia e os lençóis brancos estavam empapados do suor do velho, os olhos tentavam se abrir e sem êxito se sentia agoniado.

Implorava para despertar daquele pesadelo maldito! Ouvia a risadinha da sobrinha que assistia às prostitutas abusando do corpo do tio, o enfiando cabos de vassoura e tacando álcool no corpo velho. Sentira uma dor lancinante quando a primeira puta que matou, riscou um palito de fósforo e tacou em seu corpo que queimava, agora, espalhando o cheiro podre de carne imunda pelos arredores... Conseguiu finalmente gritar com o corpo em chamas.

Acordou chorando numa mistura de todos os sentimentos.

- Não aguento... Não aguento... - levantou da cama cambaleante, saiu do quarto batendo a porta.

Pelos corredos cortava a escuridão, enquanto corria para fora da casa paroquial. Os degraus da escada rapidamente ficaram para trás, com pressa foi até o quartinho dos fundos e pegou um corda grossa, um banco pouco alto e correu novamente para o quintal;

As vozes em sua cabeça, as imagens, os gritos...

- Chega! - gritava negando com a cabeça.

Culpa... Culpa... Culpa...

Sem jeito algum buscou força nas mãos cansadas para preparar o laço, amarrou uma parte da corda numa árvore que tinha ali, ajeitou o banco e chorando subiu em cima. Só queria que acabasse!

- Pai nosso que estás no céu... - começou a oração, enquanto ajeitava o laço no pescoço.

Orou tudo o que conhecia, tremia, temia...

- Tenha piedade de minha alma, meu Senhor... - pediu por fim, a voz implorativa.

Com os gritos a mil em sua cabeça, pulou do banco e sentiu todo o seu corpo debater enquanto que o ar fugia de si, o olhar perdido anunciava seu fim. O sino tocou como que por ironia, o Sol começava a surgir no horizonte, o corpo pendurado no quintal das galinhas chamou a atenção dos fiéis que foram assistir a primeira missa.

- Meus Deus! - a beata exclamou ao que viu o padre pendurado pelo pescoço.

O tumulto era grande no quintal e quem via não acreditava.

- Que Deus tenha piedade dele! - um homem ali falou.

Gustavo que estava ao lado deles sorriu de canto e disse:

- Ele não terá, Ele não liga. - falou sarcástico, sorrindo.

Todos olharam assustados para os olhos subitamente escuros daquele loirinho angelical.

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Obrigada por terem lido e desculpe os erros.

Beijos.

Camylla
Enviado por Camylla em 08/09/2012
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