PORTÕES
Escondido atrás da igreja ele observava a chuva cair em redemoinhos pelos portões, escorrendo através das grades, enquanto esperava.
Na noite tremeluzente, a procissão, com seus antigos fiéis, seguidores cegos, passava na estrada a beira de sua velha casa que ficava nos fundos da igreja. Eles não entrariam, ele sabia que ninguém além de Lorena entraria na casa. Mas escondido ali, ele já não era mais um homem, desde que se deixou dominar por sua ignorância, desde o dia em que os militares invadiram aquela pequena igreja acusando o pastor, brasileiro, de esconder os colonos alemães e italianos, ele descobriu que não eram colonos que o governo procurava.
Algo mais atormentava as autoridades daquele vilarejo em construção, e não era apenas a guerra, era algo que surgia pelos portões, algo que talvez o pastor soubesse, já que sua casa, sua igreja ficavam a beira do cemitério.
Assim que a procissão passou, ele viu uma mulher e uma criança correndo pela grama com um guarda-chuva velho, em direção à casa ao lado da igreja, foi no mesmo momento em que ele se sentiu sufocado por cada instinto seu, talvez avivado pelas lembranças de sua antiga vida, ou talvez porque outro abria os portões, aproximando-se. As grades rangeram num som estridente, ao ouvi-las, Lorena parou no gramado que dividia a propriedade da estrada de chão.
A jovem de cabelos negros e muito cacheados, temeu que pudesse ser mais uma vez aqueles homens cuja pessoas de sua cor não lhe agradavam, mas quando olhou as gotas de chuva caindo feito estrelas, e a imagem que as nuvens escondiam, seu coração apertou sufocado no peito.
Ela segurou mais firme a mão de seu filho, Lucas se agarrou às saias da mãe e choramingou baixinho. Os dois correram quase tropeçando nos próprios pés, quando os cães começaram a ladrar intensamente.
Ainda escondido e apreensivo, Pedro olhou para os portões do cemitério que se abriam devagar, enquanto sua pele se arrepiava, achou que seu coração fosse saltar do peito, e seus olhos queimarem, ele sabia o que poderia estar abrindo os portões, ele ainda não fora forte o suficiente para lidar com aquilo, mas agora que via a mulher e o filho a beira dos portões que se abriram ele não pode mais controlar-se, mas antes o demônio tivesse terminado de possuir seu corpo ele ouviu outro rugido e os cães grunhirem de medo, quando a fera saiu dos portões correndo até o gramado.
Num lapso, Pedro já não era mais o pastor refugiado e sim a besta que atormentava o vilarejo nas noites difusas.
Suas patas enormes bateram no chão em frente a outra fera que agora ameaçava sua prole. Lucas e Lorena gritaram agarrados um ao outro ao se verem cercados por duas enormes criaturas que se batiam, mordiam, uivavam, arranhavam-se, até que uma, ela não sabia dizer qual, se a que surgiu por detrás da igreja ou a que saíra dos portões, fugiu chorando feito um filhote, enquanto a outra caiu no chão, ferida, mas ainda forte para uivar.
Quando segurou Lucas para entrarem, parou diante da fera que se desfazia.
Um homem nu, frágil e corrompido sangrava a beira da morte. Ela olhou de novo, soltou o filho no chão e abraçou pela ultima vez o marido perdido.