PADRE ROQUE
        
Quem já passou dos cinqüenta e ainda mora naquela cidade há de se lembrar do Padre Roque. Ele foi vigário na Paróquia de Santana, antes dela merecer a honra de sediar um bispado. Padre Roque era um vigário no velho estilo. Lembrava o Padre Cícero na aparência, mas não na conduta. Não costumava de dar trela para conversa de beata, nem incentivava a superstição. Quem conviveu com ele diz que se tratava de um homem prático que não era muito dado a sentimentalismos nem apoiava misticismos e mistificações, muito próprio da gente do interior, acostumada a ver sobre naturalidades em qualquer acontecimento que foge do lugar comum de todos os dias. Para ele pão era pão, queijo era queijo. Se misturados, davam, quando muito, um bom sanduiche, mas nada além disso. “O princípio da identidade das coisas”, dizia ele, “tem que ser preservado sempre. Se não, de qualquer sombra, esse povo faz uma assombração.”
Um tanto irascível por caráter, ele dava bronca nas beatas quando elas exageravam nas tradições e quando se esqueciam delas. Na Festa da Padroeira fazia questão de carregar o andor. Na Festa do Divino, encabeçava ele mesmo as novenas, indo de casa em casa realizar as rezas. Costumava visitar os paroquianos nas próprias casas e conhecia pelo nome a maioria deles.                  
Não era homem de sorrir à toa. Mas também não tinha medo de perder amigo para não perder a oportunidade de uma piada ou de um sarcasmo. Falar bobagem na frente dele todo mundo já sabia no que dava. Ele tirava um baita sarro com a maior cara de sério.
Quanto ao seu trabalho ele o fazia de forma muito competente. Não recusava ajuda nem sacramentos a quem quer que fosse e estava sempre inclinado mais a compreender do que julgar. Quem procurasse conselho ou assistência nunca se decepcionava. Ele ia aos mais remotos cantos da cidade, aos mais miseráveis casebres, e não havia tempestade, moléstia ou qualquer outro obstáculo que o impedisse de prestar seus ofícios religiosos e assistência social a quem deles precisasse. Embora mostrasse pouco dos seus sentimentos, era possível perceber na ternura daqueles olhos mansos e na expressão daquele rosto severo que a verdadeira bondade morava naquele coração.
 
Foi numa noite de tristeza e desespero que aquele menino o conheceu. Noite escura, de lua nova, molhada por uma chuva intermitente, monótona e miúda, que fazia aquela madrugada parecer ainda mais triste e fria.
Ele não tinha mais que dez anos então.  Sua mãe o acordou em meio à madrugada e mandou-o à procura de um padre, pois o seu irmão mais velho estava morrendo e queria confessar-se. O irmão era um sujeito de pouco mais de trinta anos, que havia sumido de casa fazia já uns dez anos e nunca mais dera notícia. Até o dia, cerca de um anos atrás, em que ele batera á porta do pequeno barraco em que moravam. Vinha magro, macilento, com uma barba de anos por fazer e cuspindo sangue pisado toda vez que tossia, como se tivesse levado uma surra que o havia rebentado todo por dentro. Soube então que ele havia contraído tuberculose e a vida dissoluta e descuidada que levara nos últimos cinco anos fez com que a infecção lhe acabasse sendo fatal.
O menino não conhecia aquele irmão, pois ele havia saído de casa antes de ele nascer. Apenas ouvira falar nele. Uma briga com a mãe o levara a fugir de casa, depois que ela lhe dera uma surra por alguma coisa muito grave que ele fizera. Saira dizendo que nunca mais voltaria.
Voltou doente e praticamente moribundo. Nas poucas vezes que ele conversou com o irmão caçula, ele falou da besteira que fizera e do arrependimento da vida torta que levara. Tinha medo de ser castigado na vida após a morte e vivia rezando.
Já há algum tempo esperavam por aquele desenlace, mas tinha que ser numa noite daquelas? “ Puta merda”, pensou a cabeça do moleque de dez anos. “Por que será que as pessoas e as crianças escolhem para morrer ou nascer sempre de madrugada?”   

Não obstante, a presença da morte não nos dá ocasião para patuscadas. Por isso ele pulou da cama como se alguém lhe tivesse jogado uma baciada de água fria na cara. Levantou-se, ainda tonto de sono, lavou o rosto, pôs sobre as costas uma capa de plástico e olhou com desespero para a rua baça, escondida pela névoa e úmida pela chuva, sem saber se a sua angústia era por ter que sair para a rua naquela hora adiantada da noite ou pelo drama que se desenrolava ali, a poucos metros, no pequeno quartinho onde um sujeito que ele mal conhecia, mas que era o seu irmão, estava dando os seus últimos suspiros.
― Deve ser três ou quatro horas da madrugada ― ele perguntou para a mãe.― Onde, a esta hora vou achar um padre?
― Numa igreja. Onde mais, seu tonto? ― foi a resposta.
Então saiu feito alma penada á procura de uma igreja, rezando para que nela pudesse encontrar um padre. Foi primeiro na Igreja do Carmo, que era a que ficava mais perto. Bateu como um louco na porta da frente. Nada. Tentou então achar alguma porta nos lados ou nos fundos. Nada. O fundo dava para um enorme pátio, onde havia um pequeno portão. Bateu palmas, gritou, socou a porta com desespero. Ninguém respondeu. Correu então para a Igreja de São Benedito, onde repetiu tudo que havia feito no Carmo. Gritou, bateu, chamou com o desespero de uma alma perseguida por uma legião de demônios. Ninguém respondeu. Parecia que os homens de Deus haviam resolvido se ausentar do universo justamente naquela hora. E ele era a única pessoa que sobrara nele. E aquela chuva fria e monótona caindo, aquele vento gelado que a castigar-lhe as faces e congelar-lhe as orelhas! Um piparote e elas se quebrariam como se fossem feitas de gelo!
Numa última tentativa correu até à Matriz de Santana. A velha igreja estava em obras, aliás. Ela sempre lhe pareceu estar em obras.  Desde que se achara por gente, nunca vira aquele igreja sem sinal de obra nela. “Igrejas são como o mundo” dissera um tio dele. “ Sempre estão em construção. Nunca terminam. Quando acabar a obra, acaba o mundo.”
Bateu na porta da frente da igreja. Ninguém atendeu. Deu a volta, foi até a lateral e parou em baixo da janela do primeiro andar. Ele imaginava que alguém talvez estivesse dormindo lá. Bateu palmas, chamou, gritou. Nenhuma resposta. Viu então um monte de areia, tijolos e pedra britada amontoados na calçada. Começou a jogar pedras na janela do primeiro andar. Após a quarta pedrada viu uma luz ser acesa dentro do quarto. Depois uma cabeça branca apareceu na janela e disse qualquer coisa que ele juraria ser um palavrão.  
― O que foi, moleque? ― Porque está jogando pedra na minha janela? 
―É o meu irmão, padre. Ele está morrendo e a minha mãe me mandou buscar um padre para confessar ele. Aí eu fui na Igreja do Carmo e não achei ninguém. Na São Benedito também e aí eu vim aqui chamar alguém que possa... Ele não lembrava a palavra que sua mãe tinha dito.
― Ei, pára. Já entendi. Seu irmão está precisando de extrema - unção.
− Isso aí.
− Espera um pouco que eu já vou.
E a cabeça branca desapareceu dentro do quarto. Alguns minutos depois, com um velho guarda - chuva e um par de botas de borracha, o velho padre e o menino estávam literalmente correndo pelas ruas da cidade adormecida e encharcada, em direção ao barraco onde ele morava.
 Mas o irmão não conseguira esperar a chegada do padre. M
orreu sem receber o sacramento, mas o velho pároco encomendou a sua alma com as cerimônias de praxe. Teve latinório e tudo. O menino ficou com medo e perguntou ao padre se as almas que desencarnam sem receber, ainda em vida, esse sacramento, ficam mesmo vagando pelo mundo como a  mãe disse que ficavam. Estava se sentindo culpado pelo tempo que levou para achar o padre. Essa pergunta tinha um motivo. Alguns dias antes, de brincadeira, ele tinha feito um trato com o irmão.  Combinaram que quem morresse primeiro devia voltar para dizer ao outro como era o mundo do outro lado. Ele não tinha muita consciência do que dissera. Para ele era apenas uma pilhéria e ele não sabia da verdadeira condição de saúde do irmão. E agora estava com muito medo que ele viesse mesmo cumprir o acordo.   
− Não seja bobo, menino− respondeu bravo, o velho padre. – Isso não é hora de ficar brincando com essas coisas. E depois deu uma baita bronca na mãe dele por ter falado para uma criança uma coisa dessas. – A únicas almas penadas que existem é de gente que ainda está viva, mas leva uma vida tão torta que não sabe que já morreu− disse ele.
Não soube se o padre tinha razão, mas o seu irmão nunca apareceu para lhe dizer como é o mundo do outro lado. E nas raras vezes que sonhou com ele a única coisa que ele se lembrava era dele ter dito que as penas que ele tinha a pagar ele já pagara quando estava vivo. E que a morte foi o seu alvará de soltura.
Quanto ao padre lembrava-se bem de ele ter dito que se chamava Roque. E ele sempre soube que o Padre Roque tinha sido um padre bastante famoso e querido na cidade. Só que quando isso aconteceu o Padre Roque já tinha morrido ha mais de dez anos.     

 
 
 
 



João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 28/12/2011
Reeditado em 28/12/2011
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