Feira de Antiguidades

Nádia odiava quando algum jornalista começava sua matéria no canteiro central dizendo “estamos na Avenida Paulista, a mais paulista das avenidas”. Estava no seu segundo ano de jornalismo e já compreendia que esse chavão era pura falta de imaginação. Hoje no metrô a caminho da famigerada quase disse em voz alta a bendita frase. Seus cabelos tingidos de vermelhos em madeixas brilhantes a beijar seus ombros e de vez em quando esconder seus olhos castanhos. O visual desleixado de calça jeans rasgada nos joelhos e camisa xadrez larga nem mais chama atenção na movimenta metrópole cheio de figuras estranhas em seu constante formigamento pelas calçadas.

O destino é certo. No domingo a feira de antiguidades no vão do MASP é o lugar para se achar acessórios retrôs e pensar em histórias malucas de objetos cotidianos que um dia já foram queridos ou permaneceram esquecidos em alguma gaveta. Cerca de trinta barracas padronizadas de cor azul escuro enfileiradas com os mais diversos artigos de época

Mal chega na feira, Nádia abre um sorriso encantador. Seus olhos rápidos passam pelas barracas até achar um camafeu, não tão certa quanto ao material ela pegou com delicadeza enquanto examinava os detalhes. Um busto de uma mulher de cabelos cacheados e efígie séria.

Natália está triste. Há três dias seu marido lhe esbofeteou dominado pelo álcool e macheza. A área ao redor de seus olhos logo ganhou cor escura com bordas amareladas. Doía só de pesar os dedos. Quando tomava banho a água atingia com força seu rosto para lembrá-la o quão covarde era. Deveria ter sumido faz tempo, fugido que fosse, para casa de sua mãe ou até que fixasse moradia embaixo de qualquer ponte seria mais digno que apanhar sem reagir.

Mas era preciso de coragem.

Quando pequena apanhara do pai, do padre, do tio, do avô... Qualquer autoridade masculina que se achava digna de batê-la o fazia. Ficava dias trancada em seu quarto relembrando dos hematomas toda vez que adquiria um novo. Aquilo aos poucos envenenava seu humor, não era mais capaz de sorrir de graças e não sentia vontade de viver.

Em sua mão o camafeu de madrepérola, o último presente que seu marido lhe dera quando chegara em casa depois de sua última agressão. Ela chorou quando o recebeu e ele tomou as lágrimas como alegria, ela o abraçou forte com suas mãos a apertar-lhe as costas. Ele sorria por ter conseguido o perdão da esposa. Ela com os olhos encharcados não parava de olhar para o copo de uísque onde colocara o veneno que agora jazia vazio sobre a mesa. Ele morreu em seu braços convulsionando.

Um senhor que passava esbarrou em Nádia e acabou por a acordando de seus pensamentos. Recém desperta ,de seus sonhos acordados, seguiu por entre as barracas e encontrou algo interessante. Além de abridores de cartas feitos de marfim e espelhos adornados de latão, uma coleção de bengalas de todas cores e formas. Algumas de madeira escura, outras de puro metal. Em uma delas uma empunhadura de águia metálica e madeira de ipê envernizada. Outra muito simples tinha uma biqueira de ferro já amassada pelo uso.

Manuel não largava sua expressão de raiva resignada. Nada estava bom. Só saía de sua cama pela manhã com a ajuda de sua bengala e caminhava com esforço até a sacada para tomar um pouco de sol. Edgar dizia que esse era o único momento de sossego de seu trabalho

Edgar se formara em enfermagem e esteve em muitos hospitais, foi um amigo que conseguira para ele um emprego em uma agência que prestava cuidados na residência do paciente. No começo pareceu algo muito bom, mas lidar com Manuel era aprender a viver no inferno.

Reclamava o tempo todo e quando não gostava da comida gostava de jogar o prato contra seu peito. O dinheiro era bom e desafogou as dívidas que tinha, mas as os maus tratos advindos de seu paciente faziam-no pensar duas vezes antes de continuar com o trabalho.

Fazia um mês que assistia Manuel e nunca ouvira um obrigado. Tomou a decisão de pedir as contas assim que levasse seu almoço. Porém chegou no quarto e o viu vazio. Seguiu até cama e se abaixou para ver se ele não havia caído da cama e talvez rolado. Com passos macios, Manuel saiu da varanda apoiado com a bengala. Edgar não ouviu o homem chegando e tampouco pode reagir quando a bengala desceu rápido na sua cabeça o derrubando com um só golpe.

Uma poça de sangue escorreu da boca do enfermeiro formando uma poça viscosa enquanto Manuel deitado em sua cama dormia com o defunto a lhe faze companhia

“Sinistro”, pensou Nádia devolvendo o objeto ao seu lugar. Um senhor passou por ela apoiada em sua bengala e instintivamente ela levantou as mãos como tentasse se proteger, depois de ter percebido seu gesto fingiu que arrumava seu cabelo um pouco envergonhada do que fizera.

Resolveu seguir em frente.

Muitos brinquedos antigos, peças de xadrez feitas esculpidas no mármore e telefones de épocas que ela nem tinha nascido ainda. Livros estrangeiros de edições raras tão gastos que parecem ter sido lido um milhão de vezes. Passou por uma banca com câmeras de fotografias restauradas, pergunta se funcionam para ouvir da vendedora que sim, difícil seria comprar filmes para elas.

Logo ao lado uma banquinha vendendo canetas tinteiros.

Uma delas com o corpo de ouro ainda seu estojo original chamou-lhe a atenção. Tinha detalhes vermelhos e um nome gravado: Aurélio.

A cachaça desceu doída pela garganta. Queria ele gostar de vinhos feito seu pai, mas seu gosto era mesmo da caninha. Não contava dinheiro para os gastos com a bebida. Quando pegava o dinheiro de sua aposentadoria separava uma parte para o almoço no botequim e logo entregava para o proprietário com medo de gastá-lo. Era a garantia que comeria no mês.

Com o restante seguia até as adegas de qual gostava e comprava suas preciosas garrafas. Envelhecidas em barril de carvalho, recém destiladas ou com ervas aromáticas, não importava como eram. Todas tinham um lugar especial em seu fígado.

Quando já perto do final do mês, eram as vagabundas que o satisfaziam. Custavam algumas moedas apenas, envazadas em garrafas de plástico em formato de barril de gosto duvidoso.

Começara a beber cedo, com 12 anos se orgulhava de tomar um copo de pinga e sequer fazer cara feia. Aos 21 uma dose todos os dias e agora apenas quando pela manhã tomava um copo logo no café é que parava de tremer sua mão.

Sua pele engrossada pela bebida e olhos vazios perdidos na folha de papel faziam dele um retrato débil do que um dia foi. Sua altivez perdida na infância nem demonstrava que um dia existiu. A mão trêmula abriu com calma a caixa desnudando a caneta dourada que descansava no interior de camurça vermelha.

Aos poucos os riscos concentrados tingiam o papel com linhas tortas e emocionadas. Nunca tinha se casado, tampouco teve filhos. Não se destacara em seu emprego ou teve hobby. Não era exemplo para ninguém e os vizinhos não falavam com ele. Sua única companhia são as garrafas enquanto estiverem cheias.

Na última linha escreveu que talvez a única pessoa a ler essas palavras seja o primeiro policial a lhe encontrar, nem o delegado se interessaria pelo relato. Assim pulou da sua janela como destino final.

Nádia sentiu um arrepio em sua espinha. Deixou a caneta em seu lugar sorrindo. Pegou o metrô de volta para sua casa para escrever tudo aquilo que viu e sentiu, mesmo que nunca tivesse ocorrido as histórias existiam em sua imaginação.