Boxeador
Boxeador
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
Não há mais a gritaria da multidão, o ringue vazio ecoa a solidão dos deprimidos e derrotados. Souza enrola a bandagem na mão e deixa firme no pulso, por um momento fica pensativo enquanto toca o dente solto com a língua, presente dado por seu adversário na última luta, junto com o olho inchado e uma ferida que custa se cicatrizar: a derrota. Maldição que lhe sangra internamente toda vez que sua cabeça toca a lona.
A idade avança a passos largos e sua experiência é maior, mas a força, tão importante no boxe, já não é a mesma. As cinco últimas lutas foram derrotas. Souza já está cansado de apanhar. Pendura as luvas já gastas sobre os ombros e segue para fora ginásio, do lado de fora a lua cheia ilumina a estrada vazia e melancólica, uma rua não asfaltada que segue com má iluminação por muitos quilômetros. O bairro já abrigara fábricas, escolas e casas, hoje um monte de imóveis abandonados, um bar suspeito e o ginásio são as únicas coisas presentes na região.
Souza segue cabisbaixo pelo chão de terra até achar o cruzamento. Um poste com a lâmpada queimada serve de encosto, o boxeador senta no chão com o negrume a lhe cobrir e lá fica desejoso de tempos melhores.
Na escuridão da noite, com a lua como testemunha, Souza permanece quieto, sentado no chão de terra tentando não se lembrar de como é sua vida. Até que ele aparece. Um homem alto com terno bem alinhado, não é possível ver seu rosto e nem de onde veio, quando percebeu ele já estava na sua frente, parado, com as mãos estendidas em sua direção. O boxeador não sabia bem o que ele queria, então percebeu que eram as luvas que o estranho almejava. As entregou. Havia algo de estranho no sujeito, uma arrepio involuntário que sismava lhe percorrer a coluna, o avisava que algo errado havia com sua companhia noturna.
O homem segurou as luvas com as palmas para cima como se sentisse o peso delas, ficou calado enquanto as calçava e tentou uns socos no ar. “Você luta?” perguntou Souza, mas o outro nada respondeu. O silêncio era quase físico, uma parede entre os dois intransponível. A noite não permitia ver quem ele era, suas feições ficaram perdidas na escuridão, sabia-se apenas que tinha terno, a camisa era vermelho escuro e um chapéu estava no topo da cabeça, fora isso nada mais. O sujeito tirou as luvas e as devolveu para Souza. “Deseja ser um campeão?” enfim falou o homem com uma voz forte que minava a coragem dos homens, o boxeador conseguiu apenas afirmar com a cabeça. O homem nada mais disse, se virou em direção à estrada poeirenta e sumiu na noite deixando Souza sozinho novamente.
O sol deu sua benção pela manhã e encontrou Souza ainda desperto na encruzilhada. Não tivera vontade de ir para casa e dormir, passou a noite inteira meditando sobre sua miserável vida naquele lugar inóspito. Aos poucos os carros começaram a passar e com eles os trabalhadores seguindo para seus ofícios.
Souza se levanta de sua morosidade e segue de volta ao ginásio, alguns lutadores já treinam nos pesados sacos de areia, Gabriel, seu treinador, já está no centro do ringue orientando um sparring.
Assim que o Souza chega perto do ringue, o treinador para o que está fazendo. “Você está com uma cara péssima Souza!” diz o treinador o medindo. “Ainda não dormi.”. Gabriel balança a cabeça negativamente e diz para o boxeador dormir um pouco no vestiário, afinal hoje à noite é a repescagem, se falhar o contrato acaba e Souza terá que voltar a ser estivador.
A cena é de pura depressão, deitado nos ladrilhos frios do vestiário, ao lado de uma meia suja deixada para trás e utilizando as próprias luvas de travesseiro, Souza consegue enfim dormir um sono difícil e perturbado. Ao acordar não consegue se lembrar do que acontecera, a multidão se aglomerando indica que daqui a pouco será sua luta, talvez a última de sua vida.
Os braços pesados encontram o corrimão em direção ao centro da arena, o ringue iluminado e aos poucos os apostadores chegam e conferem a situação de Souza, preferem apostar no adversário.
As bandagens fixam firmes nos punhos e logo a luva se encaixa na mão. Souza se lembra da época que contava com escudeiro para ajudá-lo a calçar suas armas. Do ginásio é possível ouvir o adversário sendo anunciado, um tal de Marcos, dez anos mais jovem e pura vitalidade. Souza o observa do lado de fora antes de ser anunciado. O locutor o chama e quando este passa pelo corredor de arquibancadas é vaiado. O fim nunca estivera tão perto como agora. O gosto de morte estava na boca.
Já no ringue os dois ouvem as instruções, Souza nem tem coragem de olhar para Marcos que o encara fixamente, os dois seguem para seus respectivos corners e aguardam o soar do gongo que traz os uivos de êxtase da multidão. Quando este enfim ressoa, os dois lutadores seguem o show, primeiro se estudam tentando socos curtos e sem impacto, Marcos agita o braço em um cruzado, porém o inimaginável acontece, com um soco apenas Souza derruba o boxeador inconsciente no chão de tal forma que nem ele mesmo acredita, ficando boquiaberto olhando o rapaz duro no ringue. A multidão explode em gritos, os apostadores jogam seus bonés no chão. Ele não sabe como, mas ganhou de nocaute.
E assim foi o campeonato inteiro, um após outro caindo pesadamente na lona, demorando não mais que um round para serem nocauteados. A confiança aos poucos recuperava-se no peito de Souza e seu brilho de juventude parece ter se apossado novamente do velho corpo. Indiscutivelmente ele foi campeão novamente, levou para casa um enorme troféu brilhante com um lutador no topo rodeado de louros. Seu nome gravado na base não deixava dúvidas, o contrato permanecia e agora o dinheiro corria feito rio bravo.
Então veio o campeonato regional, depois o estadual e por último então o nacional. Ganhou todos, de forma miraculosa ganhou todas as lutas, porém sentia um vazio cada vez maior, no fundo sabia que aquele sujeito, naquela noite, que pegara suas luvas tinha feito algo com ele. O treino não rendia, o sono não satisfazia e a forma não se adequara, mesmo assim os lutadores caíam na lona frente à seus socos impiedosos. Ganhara até novo apelido, agora era o “Souza Mão de Marreta”.
O convite para o mundial apareceu logo, com uma boa bolada apostada em Souza. Ele aceitou rápido, mas seu coração doía com algo. Naquela noite, quando todos foram dormir e o sono não vinha, ele foi até o antigo ginásio, passou pelas portas fechadas e caminhou no escuro até o cruzamento. Sentou no mesmo lugar de outrora, com suas luvas nas mãos. Então sua suspeita se confirmou, ele apareceu novamente. Seu rosto não se podia ver. Parou na frente de Souza com as mãos nos bolsos do paletó, esperando que boxeador o falasse. “O que você fez comigo?” foi a pergunta, “Você sabe” era a resposta que ele não queria aceitar. “Desfaça, desisti, não quero mais ser campeão de nada! Prefiro minha alma livre como estivador do que essa prisão sem grades como campeão.”, ouviu apenas um “Tarde demais” da figura que desapareceu entre os braços da escuridão.
Primeira luta do mundial. Cartazes com a foto de Souza e as mais diversas declarações, elogios e apoios. O adversário, um mexicano campeão em sua pátria, com suas luvas verdes, fazia seu aquecimento enquanto aguardava pela vinda da sensação em forma de boxeador, tão logo o locutor o anunciou, apareceu o “Mão de Marreta”, com sua atitude estranha de manter a cabeça baixa como se sentisse vergonha de algo. O gongo soou alto e os dois se encontraram no centro do ringue.
Bastou um soco e Souza caiu no chão.
O juiz deu a vitória por nocaute enquanto os paramédicos invadiam a arena, logo um grupo de pessoas se amontoavam em trono do outrora campeão, um burburinho chegou na arquibancada que logo fez alguns chorarem. Souza estava morto.
Na arquibancada, um homem de terno e sem rosto se levanta e some no meio da multidão
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