Luostep

Instalei em meu computador o jogo que Marco me passou. Não que eu saiba bem a origem de onde ele baixou, mas, tanto faz pra mim. Eu fiquei curioso quando fiquei sabendo que Luostep foi banido poucos dias antes de seu lançamento. Mas me decepcionei quando liguei e vi que era outro game de monstrinhos colecionáveis.

Ora, eu não tenho paciência para jogos infantis, embora eu tenha ficado com curiosidade sobre o motivo de ter sido banido. Comecei a jogar e nomeei meu monstrinho de Nobody. Era um personagem como um cão ou lobo de pelos cinzas, com os pelos no abdômen na cor branca. Seus olhos eram azuis e super-deformados, maiores do que o necessário, pareciam inocentes.

No jogo você tinha que criá-lo, subi-lo de nível, e tudo aquilo que se espera de um game deste tipo, a mesma formula enjoativa de sempre do personagem controlado pelo jogador que quer ser o melhor e tudo mais deste cliché.

Joguei por quatro semanas, na ultima, já viciado, estava a cinco horas jogando direto, quando algo estranho aconteceu. Eu fui desligar, mas, Nobody pareceu... Implorar? Parecia que ele não queria que eu parasse. De qualquer maneira, desliguei.

Decidi visitar Marco. Quando estava de frente ao portão de sua casa, ouvi um grito. Imediatamente entrei para ver o que tinha acontecido. A mãe de Marco estava desmaiada, e a irmã chorava.

Olhei no quarto. Ele estava sentado no chão, abraçando as próprias pernas. Ao redor dele, e por todo o resto do quarto, dezenas de frases rabiscadas com uma letra totalmente irregular, ocupavam todas as paredes de seu quarto, escritas de todas as direções possíveis e sem deixar quase nenhum espaço em branco. Sem contar que seu computador estava em chamas, e o que em algum momento era uma cortina, era agora apenas um pano cheio de buracos causados pelo fogo, pendurado.

Quando tentei falar , ele estava com uma expressão de medo terrível. Ele ficou completamente catatônico, com sua boca aberta, babando, e seus olhos arregalados. Minha mente não conseguiu conscientemente captar todas as frases que ele escreveu, mesmo que ele tivesse repetido a maioria dezenas de vezes. As que consegui me lembrar depois, foram "I'm dying, hurry" (estou morrendo, se apresse), "Dead" (morto), "It's your fault"( é sua culpa), e, principalmente "I killed him" (eu o matei). Havia muito mais, mas, foi uma experiência tão surreal que se lembrar de qualquer outra coisa seria demais para mim.

Devido ao choque de tê-lo visto daquele jeito, fiquei alguns dias longe de minha vida normal, especialmente do meu computador, acompanhando de perto o caso clínico. Tanto os médicos não sabiam o que fazer, quanto ele parecia não reagir. Eles o levaram, limparam tudo, e deixaram-no internado. Algo com ele pareceu estranho. Por que ele faria isto? Ele parecia bem normal e feliz quando nos vimos pela ultima vez.

Dias depois, resolvi finalmente mexer em meu computador. Então, aconteceu algo em meu desktop. O meu papel de parede havia mudado para uma tela preta, e estava escrito em vermelho, "I'm still here" (Ainda estou aqui). Fiquei alguns segundos, olhando para aquele texto em vermelho, parecendo que alguém escreveu com os dedos a mensagem, usando tinta vermelha ("ou sangue" pensei também). Mas, resolvi deixar para lá, e relaxar, então, iniciei o jogo Luostep. Notei a musica mais lenta, e também que Nobody parecia muito, mas, muito diferente desde a ultima vez que eu joguei. Seu pelo estava bagunçado, e marcas de sangue coagulado aparecia em algumas partes de seu corpo. Seu olho, azul, parecia mais escuro. Porém continuei a jogar o jogo, e pouco a pouco ele pareceu melhor. Muito provavelmente, foi apenas minha impressão.

Quando eu voltei, no dia seguinte, liguei o PC e fui jogar Luostep. A musica estava mais lenta ainda que da ultima vez, quase melancólica. Nobody não estava machucado, mas, não se mexia. Seus olhos eram completamente negros desta vez.

Eu andava, mas ele não me seguia como de costume. Quando eu tentei entrar numa casa, meu personagem entrou, mas, a tela não mudou para onde ele foi. Nobody começou a tremer, então, vi seu corpo entrar em combustão, para depois explodir. Somente sua cabeça não ficou em chamas, mas saiu voando até sumir da tela. Na parte de dentro, ao invés da mensagem normal, o residente disse apenas "você não devia ter feito isto". Entrei no menu e fui checar seus status, estava a ilustração de uma caveira e uma mensagem escrita "DEAD". A musica estava tocando, mas, era como se estivesse invertida, tocando de trás para frente, e era uma tortura de se ouvir. Por um momento fiquei sem saber o que fazer, mas, comecei a explorar a cidade do jogo, sem Nobody, desta vez. A maioria das mensagens de texto que aparecia quando conversava com os outros personagens era "cursed".

Desliguei o PC imediatamente. Não conseguia entender. O que estava acontecendo? Claro, não salvei o jogo, então pensei em tentar fazer algo para que isto fosse evitado quando voltasse a jogar. Mas, naquela hora eu estava sem coragem de iniciar novamente.

O dia seguinte foi estranho. Virei na cama de noite, e acordei com a cabeça para fora dela. Tratei de levantar, mas, percebi meu corpo doía como se eu tivesse travado uma luta com um especialista em jiu-jítsu, que tivesse torcido todos os tendões do meu corpo. Minha mente estava perturbada. Sonhei com algo terrível, mas, meu cérebro se recusava a me contar o que era, não importava o quanto eu forçasse ele a falar.

A noite resolvi ver se o meu amigo no computador desistia de se matar quando reiniciasse o jogo. Estava chegando a minha casa, feliz de não tomar a chuva que parecia estar por vir. Nem sequer liguei a luz em meu quarto, já fui iniciando o computador.

Enquanto letras se formavam num fundo preto no monitor, tomei um susto com o toque do meu celular (Bach - Tocata e Fuga para Órgão, algo divino, mas que naquele momento por pouco fez meu coração fazer uma visita ao céu de minha boca). Era minha irmã, querendo falar um monte de coisas que não me interessava àquela hora. Encerrei o assunto o mais rápido que pude, e cliquei no ícone do jogo. Meu personagem estava andando sozinho, sem Nobody seguindo, mas, quando olhei os status de Nobody, estava tudo exatamente igual a ultima vez. Explorei um pouco a cidade, percebi que não tinha nenhum personagem em lugar algum. Quando entrei na loja de itens, porém, a tela ficou preta. Apareceu uma caixa de dialogo, escrito"Nobody lives..." que ficou parada, por vários minutos. O jogo não respondia mais aos meus comandos. Travou naquela tela. Desisti de jogar e fui desligar, quando algo aconteceu. Um grito assustador, que quase me deixou surdo, e a cabeça de Nobody, seus olhos negros, exceto dois pontos cor de rubi no meio, ocupando toda a tela. Seus dentes estavam a mostra, e pareciam bem ameaçadores. O computador reiniciou sozinho, deixando meu quarto completamente escuro por alguns segundos.

Logo que apareceu algo na tela, ao invés de todo aquele texto sobre o computador procurar o HD e os drives, estava escrito. "I'm dying, hurry..."(estou morrendo, se apresse).

Não pensei duas vezes. Isto estava parecendo um filme de terror maluco, onde o protagonista percebe o perigo e mesmo assim vai andando direto até ele, como um completo idiota. Arranquei o HD de meu computador, levei ao quintal, coloquei fogo nele, parti os pedaços restantes usando uma marreta, coloquei tudo num saco plástico, e sai de casa, para jogar fora na lixeira mais distante possível. Meus vizinhos ou minha família teriam-me achado louco se tivessem visto, mas, estava sozinho em casa, e meus vizinhos estavam brigando como querendo que a lua soubesse de seus problemas.

Quando achei uma caçamba cheia de entulhos, joguei o saco com os restos mortais de meu HD nele ( Adeus, filmes B de terror, adeus, 20 Gigabytes de musica, adeus, Nobody, vá apavorar o sonho de outra pessoa, eu juro que se eu pego o hacker maldito que criou um jogo que muda todas as configurações do computador de quem o joga pra ficar pregando peças deste jeito, eu vou enterrá-lo tão fundo no meu quintal que vai precisar de um terremoto de magnitude 10 para descobrirem o corpo) e fui pra casa.

Acordei tarde, comprei um HD novo, e tudo voltou ao normal...por algumas horas. Recebi uma mensagem de celular. Uma mensagem de Marco? Quando a li, estava escrito "I'm dying, hurry".

Liguei na mesma hora no numero. Quem atendeu foi sua irmã. Ela ficou muda por um tempo, e depois começou a chorar.

Ele tinha morrido. Ataque cardíaco. Ela estava desesperada. Segundo os médicos, aquela noite, depois de muito tempo sem nenhuma reação a estímulos externos, seus olhos se abriram como se estivesse assustado com algo. Seus batimentos, que estavam normais, aceleraram. E, depois de alguns minutos, com os médicos tentando intervir, sem sucesso, o coração parou.

Fui ao seu enterro. E amaldiçoei aquele jogo maldito. Durante muito tempo procurei algo sobre sua origem, mas não encontrei nada. Era como se ele nunca tivesse sido criado. Ou, como se alguém quisesse muito que ninguém o conhecesse, e apagou tudo sobre o jogo na rede.

Um ano após a morte de Marco, estávamos sua irmã e eu deixando flores em seu túmulo. Ela não faz ideia do que seu irmão passou, onde ele descobriu o jogo. Não eram tão íntimos assim. Tentei questioná-la, varias e varias vezes, e nunca me foi de ajuda. Deixei-a em sua casa e fui para a minha.

Entrei em meu quarto, e, ao acender a luz, gritei. A cabeça de Marco estava em minha cama. Ela estava intacta, de alguma maneira. Uma cabeça, com orelhas pontudas de cachorro, iguais as de Nobody. A musica tema de Luostep tocou no celular. Na tela do celular, estava escrito, em vermelho: "Nobody lives..."

Psycho Vincent
Enviado por Psycho Vincent em 19/07/2011
Reeditado em 31/07/2020
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