Pâmela e o Demônio
Era meia noite e meia, Pâmela deitada em seu quarto, a fome teimava em chegar, monotonia de final de quinta-feira, nada planejado para o final de semana.
Sua mãe a chama para jantar, ela nem responde e pensa: “comer! De novo?”. Entediada fica ali entretida com o seu nada, sua vida de poucas coisas, muito estudo e muito trabalho, mais cedo havia se aborrecido demais com as meninas da escola, se sentiu menor, com os deboches das patricinhas esnobes.
Resolveu não jantar, coisas de mulher, melhor não comer, evitaria umas calorias e cultivaria a vontade de fazer algo por si mesma, o passatempo escolhido para aquela hora era o de costume, internet.
Sentou-se em frente ao seu PC e começou a ler autores anônimos, e sempre teimava em ler um deles, havia algo de misterioso naquelas letras, algo que a fazia sempre voltar e voltar, um toque de sombria beleza em textos nem sempre fáceis de entender, quem seria esse autor?
Deveria ser mais um miserável solitário que se tranca no quarto e libera seu demônio criativo. Alguém que se exorciza em suas letras.
Desejou saber quem era tal escritor, escreveu para ele, mas sem sucesso, além de esquisito é pouco sociável, mas ao escrever ela não notou que uma estranha figura a observava na janela, um homem bonito com olhos incisivos e uma fala pausada, cabelos impecavelmente penteados e lambidos, parecia um mafioso em um terno negro, ele bateu à janela e disse:
- Pâmela abra para mim.
Ela quase morreu do coração, gritou desesperadamente e quando olhou novamente o homem não estava lá, foi ali que bateram à porta de seu quarto, certamente sua mãe ou seu pai, abriu correndo esperando abraçar seu pai, mas o susto foi imenso, ali estava o homem misterioso.
Pâmela gritou, arremessou nele uma cadeira, ele ria muito, pegou uma vassoura e pôs-se a bater no homem, dizendo:
- Sai daqui, socorro, sai, maldito, socorro...
Ele apenas riu filhadaputamente, sem se importar com o surto de moça.
Já cansada de tanto gritar, ela se calou e ficou no quanto do quarto, armada com a vassoura e um spray de pimenta já vazio, pois o tinha descarregado todo no estranho.
O silêncio rompido apenas com o arfar desesperado de sua respiração perdurou alguns minutos, o homem, pegou a cadeira e se sentou, cruzou as pernas e olhou fixamente para Pâmela. Até que ele por fim disse:
- Você é bem esquisita menina, foi você quem quis me conhecer.
Ela sem entender nada respondeu:
- Seu louco, o que você fez com meus pais? Eles deveriam ter vindo ver o que tinha acontecido comigo. O que você quer de mim? Dinheiro? Não tenho? Me violentar? Pode crer que eu arranco seu negócio fora seu desgraçado.
- Hahaha, docíssima Pâmela, eu não quero nada disso, apenas aceitei seu convite para lhe conhecer.
- E desde quando eu te convidei? Eu nunca lhe vi na vida seu louco.
- Você me convidou para ser seu amigo à uma hora e quarenta e três minutos mais precisamente.
- O quê? Você está falando do e-mail que mandei? Eu não queria lhe conhecer, eu apenas queria...
- Então você deveria escolher melhor suas palavras mocinha, você me disse “adoro o que você escreve e seria uma honra lhe conhecer melhor”, pois bem eu aqui estou lhe fazendo essa honra, mas você está aí surtada e se fazendo de idiota.
- Mas como você sabe onde eu moro? Você deve ser um tarado da internet, deve andar me espionando, e os meus pais? Paiiii, mãeeee!!! O que você fez com eles.
- Olha para de show ta legal, vem cá ver eles, eles estão bem, só parei o tempo um pouco e te tirei dele para poder falar contigo sem ser interrompido.
A frase foi interrompida por uma copiosa gargalhada dela, ela ria tanto que escorriam lágrimas.
- Já sei, é uma pegadinha, você deve ser de um desses programas ridículos, e agora o que é que vem? Vai sair um Zé Mané do meu armário com uma câmera rindo né?
- Não é pegadinha nenhuma, eu sou o escritor Louis, na verdade eu sou o Diabo, mas pode me chamar de Louis, tenho muitos nomes, cão, capeta, unhudo, chifrudo, mas prefiro Louis, eu era chamado também de Edir, mas tenho um idiota em seu mundo abrindo uma concorrência aqui e eu desisti desse nome, embora registrado em meu nome, por uma questão de deixar claro quem é cada empresa.
Pâmela ria aos soluços, não acreditava em nada que dizia aquele bonito homem que dizia sandices.
- Me deixa ver se entendi você é o escritor que eu mandei um e-mail querendo conhecer, então diante desse convite você veio até minha casa, parou o tempo, invadiu meu quarto, se chama Edir, mas prefere Louis, é isso? Hahaha, você é uma piada, some daqui seu demente!
- Olha eu não costumo ter paciência, nem com moças bonitas como você, mas vou lhe abrir uma exceção, afinal pode ser divertido, vem aqui na sala.
Venceu seu temor e foi até a sala, seu pai estava estático, petrificado e a televisão congelada também, sua mãe ali parada como pedra na cozinha servindo o jantar, olhou para a rua e viu cães parados como estátuas, transeuntes, carros e tudo mais parado, o miserável havia mesmo parado o tempo.
- Que loucura é essa?
- Já disse, sou o Capeta.
- E o que você quer de mim, não to afim de vender minha alma, não tenho tanta sede de grana assim, eu até vou á igreja de vez em quando.
- Eu já disse apenas vim te conhecer, o que você quer saber mais de mim.
Parada olhando, ela disse:
- Prove que você é o diabo, você é bonito demais para ser o demônio.
- Olha aqui quantas pessoas você conhece que podem parar o tempo?
- Sei lá o que você é, de repente você é outra coisa e não o demônio.
Ela ia terminando de dizer e olhou novamente ao homem, ma este não era mais humano, era uma criatura imensa, com mais de dois metros de altura, chifres enormes e curvados, olhos vermelhos, uma pele viscosa e vermelha, disse com voz gutural.
- E agora pareço o capeta?
Ela se jogou no chão, tremendo.
- Tudo bem, tudo bem, volta na pegada de Johnny Depp, por favor.
- Johnny Depp? Gostei, mas me acho mais bonito, afinal fui eu quem deu o sucesso a ele. Agora me diz o que queria ao me conhecer?
- Sei lá conhecemos pessoas por acharmos que valem à pena serem nossos amigos, amigos não fazem mal aos amigos, não os de verdade pelo menos, mas você é a expressão do mal, não pode ser um cara legal.
- Mas eu sou um cara legal, eu escrevo, eu sonho em ser um poeta conhecido, sou um artista, uma expressão viva.
- Você vai me desculpar, mas acho que isso não é verdade, você fica levando almas ao inferno para castigá-las, isso não é legal.
- Mas eu só levo os malvados, eu gosto das pessoas boas, elas são minha, minha, minha inspiração, pode-se assim dizer.
- Sei, sei, mas você é também o pai da mentira Capeta, deve estar mentindo para mim, você deve enrolar a mulherada com essa conversa fiada e essa cara de personagem do Quentin Tarantino que dá gosto de ver. Mas já que você quer ser mesmo meu amigo, me conta aí, qual a maior sacanagem que você já fez?
- Os advogados, a sim, o sistema judiciário e os advogados, é minha Capela Sistina, minha Vênus de Millo, minha Monalisa, eu os vejo espalhar sua cretinice pelo mundo afora defendendo criminosos, políticos, até o Collor eles conseguiram fazer se safar, fala sério, advogados são obras mestras do diabo.
- Tem razão é de tirar o chapéu em termos de vilania descarada, mas o congresso não é obra sua?
- Olha eu levo os louros por isso, mas não espalha não, eu não tenho nada a ver com isso, isso é coisa de vocês mesmos que são idiotas e elegem todo tipo de cretino para ser deputado, eu deixo pensarem que sou eu para manter minha moral elevada, sabe como é.
- Sei sim, vocês homens são todos iguais, sejam santos ou capetas, a vaidade em primeiro lugar.
- Vaidade! Esse é meu, eu que inventei, é meu pecado preferido, mas quem te disse que sou homem?
- E não é? Meu Deus onde é que vamos parar até o capeta aderiu ao movimento, bem que dizem que não tem mais homem no mundo, mas no inferno também, eu to perdida, porque se no inferno tu é gay, imagina o céu onde todo mundo parece ser fresco por natureza.
- Que é que é isso menina, ta me estranhando?
- To não, você quem disse Capeta.
- Eu não sou um homem nem uma mulher.
- Calma Capeta, isso é comum nos dias de hoje eu já entendi.
Irritado o Capeta se transformou em uma mulher deslumbrante, de vestido colado, vermelho e salto alto, uma mulher estonteante de tão bonita.
- Nossa capeta! Arrasou hein, até eu que sou mulher me sinto atraída por você.
- É isso que estou tentando te dizer, eu sou assumo a forma da tentação carnal mais apropriada à pessoa, se você fosse homem ou lésbica eu apareceria assim, como você é mulher eu apareço assim – disse isso e voltou a sua forma de homem sedutor.
- Humm, entendi, e eu pensando mal da sua pessoa.
- Mas pode pensar mal, aliás, deve, eu sou ruim, eu sou malvado, uma catástrofe.
- É eu entendi o que mais você sabe fazer de legal?
- Eu posso te levar conhecer o inferno você quer conhecer? Só conhecer não precisa ficar se não quiser.
- Hum, sem compromisso, bom eu quero.
Dito isso Pâmela sentiu chamas ao seu redor que lhe cobriram de cima abaixo, não queimavam mas aqueciam e muito, não via nada estava no meio de uma fogueira, que aos poucos foi baixando, se viu no meio de uma multidão que reclamava, era uma fila em forma de sanfona, onde se amontoavam milhares de pessoas, na sua mão apareceu um papelzinho com o número 666.666, parecia uma senha, as pessoas reclamavam do calor, de fome, de que iam perder seu almoço na fila esperando, que iam perder a hora dos filhos na escola, foi quando reparou que um mostrador marcava as mudanças das senhas, estava no número 3, “meu Deus” pensou, “ainda faltam 666.663 para chegar a minha vez”, foi nessa hora que um velhinho cheirando naftalina lhe abordou reclamando do valor da sua pensão, da demora da fila, começou a falar mal do governo, do pastor da igreja do vizinho dele, da mulher dele, como se isso não bastasse o velho tinha hálito de esgoto.
- Capeta!!! – gritou ela desesperada.
- O que foi? – virou-se o senhor da frente dela que já nem era mais um senhor e sim o capeta disfarçado.
- O que foi? O que foi pergunto eu, que merda é essa?
- Isso é um dos meus infernos preferidos, uma fila de banco, aqui todo mundo está à séculos do caixa, está com tempo contado e sempre se sentindo desesperado por precisar muito estar aqui e não querer estar, me inspirei nas filas do banco do Brasil no 5° dia útil de cada mês, não é legal?
- Nossa, muito legal, tanto quanto uma dor de dente, você é mesmo mal hein.
- Obrigado querida, a gente faz o que pode para ser profissional naquilo que faz.
- Vamos a outro inferno, esse é um requinte, você vai adorar.
- Vê lá hein capeta.
As chamas voltaram a cobrir Pâmela e o sumirem ela estava muda e sem poder se mexer, sentada em uma cadeira de cabeleireiro, uma bicha que falava pelos cotovelos ia falando com ela e cortando seu cabelo, dizendo que a moda era cabelos surreais, até que ela terminou e disse:
- Está Divinaaaaa...
- Arghhhhhhhhhhhh!!! – nessa hora a mudez sumiu, ela estava completamente sem cabelos, suas roupas novinhas e de grife manchadas de tintura de cabelo. A voz havia voltado.
- O que foi que-ri-da, você está linda de morrer!
- Eu vou te matar você depenou meus cabelos.
- Depenei não sua galinha choca mal agradecida, vou começar a cortar.
Seus cabelos tinham crescido de novo e ela estava novamente muda, a bicha que não calava a boca, ia tagarelando de novo e desgraçando o cabelo dela novamente, fez isso por umas quinze vezes e nessas quinze vezes ela surtou e o cabelo cresceu, até que ela em meio ao seu nervosismo por causa do cabelo conseguiu lembrar do que estava havendo e quando a voz voltou para ela surtar ela disse:
- Capeta, já chega.
Nisso a bicha não era mais bicha e sim o próprio demo.
- Cara como é que tu fazes isso?
- Sou o pai da mentira, sou especialista em ilusões e falsetes minha cara.
- Meu amigo unhudo, essa é de lascar, tem uma versão para homem?
- Tem sim, mas não funciona com a maioria, eu estou bolando uma que funcione parecido mas envolvendo um ambiente de bar e um jogo de futebol, mas ainda está no rascunho.
- Hum, interessante, bom agora me devolve para meu mundo de verdade.
- Ah, logo agora que eu ia te mostra o broxol.
- Broxol, o que é que é isso?
- Vamos lá...
As chamas encobriram Pâmela de novo e ela se viu nua em uma cama, louca, quente e repleta de desejo como se isso fosse a coisa mais essencial de sua vida, ao lado dela um homem lindo aos prantos, dizendo:
- Isso nunca me aconteceu antes.
- Meu Deus do céu, me tira daqui capeta!!!
O homem virou o capeta que enfurecido disse:
- Primeiro você deixe bem claro quem você quer que te tire daqui eu ou Deus, se você fica falando, meu Deus, meu Deus, meu Deus, daqui a pouco vem um bando de anjos desqualificados aqui sem perguntar nada, chegam descendo o cacete em mim e na minha galera do mal, se quer parar a brincadeira é só dizer.
Mas nem bem disse isso e uma legião de anjos fardados de fardas douradas invadiu o recinto dizendo:
- Mas que porra é essa rapá, desce a borracha neles galera.
Foi capeta zunindo para todo lado, os anjos deram tanta porrada que Pâmela custou entender que eram anjos aqueles agentes que mais pareciam do BOPE.
Por fim um deles a pegou pelo colo e disse:
- Positivo Capitão Gabriel, peguei a vítima podemos descer o morro.
- Me larga eu to com eles.
- Ta com eles! Você ta tirando a gente sua patricinha? Você chama o socorro e diz que é trote, tu vai ser fichada no purgatório menina, algema ela soldado Miguel.
- Calma, calma gente, disse o capeta que começava a se levantar do chão, ela é minha amiga, eu a trouxe aqui para uma experiência extra temporal. Ela se enganou e ficou dizendo Deus aqui dentro.
- Isso procede menina?
- Sim Capitão, é isso mesmo.
- Cuidado com esses maus elementos menina eles são do mal, todo mundo aqui é fichado, vamos embora cambada, e outra seu capeta, não vou aliviar o arrego dessa semana valeu.
- Valeu no sábado ta na mão, demorei pagar porque andei gastando demais em umas almas aí que nem valeram a pena.
E saíram todos, o capeta muito enfezado saiu apaziguando os outros demônios que tinham apanhado, afinal todos queriam arrancar o couro de Pâmela.
- Já chega, vou te devolver a tua vida.
- Mas já! Agora que eu estava me divertindo.
O capeta estralou os dedos e as chamas cobriram ambos, e ele disse em meio ao fogo.
- Foi legal te conhecer.
Pâmela começou a sentir seu rosto molhado e uma mão a lhe mexer.
- Acorde minha filha.
- Capeta, Capeta! Onde ele está?
Ela estava em sua escrivaninha em frente ao computador, com o e-mail por enviar ao escritor desconhecido, o rosto molhado de baba, nossa ela tinha mesmo dormido pesado pensou a mãe.
- Vamos comer filha.
- Eu tive um sonho inacreditável de tão real mãe.
- Eu digo que você deve parar de ler contos de terror minha filha, deixa de bobeira vamos jantar.
E saíram do quarto, sem notar na janela os olhos vermelhos que a fitavam indo.
Por fim a figura saiu da janela e andou solitário rindo em direção ao meio da rua.
FIM