O Convento
O Convento
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
O pátio ecoa os passos vacilantes de Lázaro. As botas gastas encontram com o caminho de pedregulhos e entulho do que outrora foi uma belíssima construção gótica. Ao centro uma antiga fonte já destruída serve de patamar para que o arqueólogo possa ter uma visão melhor do local.
Encravada em meio a montanhas em meio ao território alemão está o convento de Moldegor. Datado do século XIV, destruído pela fúria da natureza, saques e dois incêndios, hoje encontra sua calma de séculos perturbada por esse intrépido homem. A última tentativa de reconstrução foi há mais de trezentos anos, quando um terremoto não explicado derrubou o convento. O bispo fechou todas as possibilidades de refazer tal lugar por achar que entidade maligna nele habitava impedindo que as obras de Deus ali fossem feitas.
Lázaro munido de seu paramento arqueológico, encontra nessa pilha de destroços a oportunidade para uma carreira em declínio, um casamento em cinzas e uma doença terminal. Morrer anônimo sem nunca ter feito grande descoberta é doloroso demais para ele. Seu carro do lado de fora carrega todo o material necessário, de pás e picaretas à lanternas e cordas. Incluindo um saco de dormir caso precise ficar no local.
Já dentro do pátio Lázaro começa seu trabalho. Com a ajuda de um pé-de-cabra abre portas já emperradas pelo tempo, porém pouca coisa sobrou dos roubos. Alguns cacos de porcelana são arrumados em trouxas de pano e seguirão para o laboratório para datação e possível reconhecimento,.alguns talheres de prata escondidos em um dos quartos da clausura prometem ser o grande achado. Nos cabos é possível ver gravuras de alguns gansos, provavelmente insígnia de família real. Para um primeiro dia, até que foi proveitoso.
A noite chega e com a ajuda de alguns lampiões Lázaro come sossegado sua comida requentada na fogueira improvisada do lado de fora. Com a iluminação precária da lua, o arqueólogo observa as nuances da arquitetura do antigo convento, suas linhas parecem querer se confundir junto com a noite. Com uma ajuda de um bloco de anotações, ele rabisca um mapa improvisado com os locais que já escavou. Amanhã tentará chegar na parte interna.
Com o sol pintando de laranja o gramado, Lázaro acorda para seu desjejum. Sob a luz do sol é possível ver que a construção é maior do que parece. Quando chega ao pátio para continuar seu trabalho se assusta com um bando de corvos pousados, ciscando pelo chão à procura dos frutos caídos das macieiras e figueiras que resistem no caos presente.
Lázaro nunca gostou de aves e não é agora que começará com amores por esses animais. Com cuidado tenta passar por elas e percebe que nem se incomodam com sua presença. Melhor assim. Um mapa mais cuidadoso é elaborado para ter certeza que nenhum cômodo será esquecido e quarto a quarto é desvendado, catalogado e fotografado. O espólio dessa incursão consiste em alguns pratos, copos e talheres.
Quando a noite negreja o céu, Lázaro vê uma pilha de pedras no pátio principal que esconde uma porta de uma área ainda não vasculhada. Amanhã terá mais trabalho.
O chá quente desce pela garganta e aquece contra o clima frio das montanhas. Lázaro entra com seu carro dentro do convento para facilitar o acesso às ferramentas assim que amanhece. Logo as pedras são destacadas de seus lugares. Os corvos bicam as frutas podres olhando o trabalho do arqueólogo, um pedaço de uma porta começa a aparecer. Carvalho bruto, maciço e todo gravado.
Quando enfim descoberta a porta apresenta uma enorme gravura de uma árvore com suas raízes acabando na soleira, o que impressiona é a riqueza de detalhes de cada ramo bem definido e a textura da casca. Um enorme ferrolho de ferro ostentando um cadeado grosso garante que a porta não será aberta com facilidade.
Com a ajuda de uma corrente e o engate do carro a porta é arrancada de seu lugar, levantando uma nuvem de poeira densa. Os corvos assustados com o barulho voam do pátio e cobrem os telhados do convento. O que era para ser um quarto de clausura, revela um buraco em sua parede. Moscas voam no local de um lado para outro. O cômodo é o único que não foi tocado por ladrões, uma pintura envolta em uma moldura dourada encontra abrigo em cima do batente da porta, ao lado uma cama simples de madeira com um rosário pendurado por pregos. Em cima de uma escrivaninha um livro. Lázaro pega com cuidado o tomo e logo reconhece. Uma Bíblia de Gutemberg.
Finalmente a descoberta que sua carreira merecia. Porém o buraco na parede pode levar a descobertas maiores e tesouros mais valiosos. Com a ajuda de um lampião movido à querose, Lázaro desce as escadas esculpidas na terra. O clima fica cada vez mais quente conforme ele desce, o ar rarefeito e as passagens apertadas aumentam a sensação de claustrofobia. Chega um momento que o corredor para de descer e segue com uma curva acentuada.
Lázaro consegue enxergar uma luz. Parece estranho, mas há realmente uma luminosidade vinda de algum lugar à frente. Conforme avança, o arqueólogo encontra uma grande câmara, iluminada por tochas. No centro uma pira com chamas altas. Curioso, Lázaro avança até o centro onde a enorme fogueira da pira arde aquecendo-o. Antes que conseguisse formar qualquer frase sente uma presença atrás de si. Gira rápido seus calcanhares e encontra uma mulher, vestida de freira, com seu hábito rasgado deixando suas coxas à mostra junto com um par de seios volumosos que parecem querer escapar da roupa.
– Ainda bem que você me salvou – diz ela.
A moça segura a mão trêmula de Lázaro que nada consegue falar, seus olhos vivos e cheios de desejo encontram-se com os do arqueólogo que sente um calor a lhe pulsar no coração. Seus lábios vermelhos se aproximam dos dele e não conseguem arrancar nenhuma reação a não ser fechar os olhos e esperar pelo beijo da moça. Porém o que vem é uma dentada em seu pescoço que arranca parte de sua pele.
Lázaro sente a dor profunda de ser mordido e afasta a freira com um empurrão, ela cai sobre o chão e encara seu agressor com um sorriso diabólico adornado por dois caninos lambuzados de sangue fresco. Ela emite um grito alto tal qual animal acuado e logo a câmara se enche de diversas freiras, todas com caninos expostos e sedentas pelo doce sabor rubro. Lázaro tenta fugir mas é interrompido por garras pesadas e cai no chão. Sua última visão são os dentes dilacerando sua carne e sua vida sendo sugada para sempre.
Epílogo
Jonas e Albert enfim alcançam o velho convento. Albert começa a separar seu equipamento enquanto Jonas verifica o pátio, dentro dele um velho jipe coberto de poeira com as chaves no contato e uma porta de madeira atada por uma corrente em seu engate. O quarto de clausura ainda está intacto com um Bíblia aberta sobre a cama. Jonas confere que é um Gutemberg. Na parede um buraco com uma corrente de ar indicando um túnel. Albert chega logo em seguida e coloca a mão no ombro do amigo arqueólogo. Os dois olham para o túnel e sorriem um para o outro. Hoje é o dia de sorte deles