A Loba

A Loba

por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)

A neve cobre os telhados das casas, por sorte as ruas ficaram livres da imensidão branca. Por precaução Sebastian colocou correntes nos pneus de seu SUV, o aquecedor do carro ligado mal consegue espantar o frio do lado de fora, mas lua-de-mel é para ser romântica, logo Alice não desgrudou um só segundo sequer dos braços de seu marido.

O caminho longo de curvas fatais é feito com a calma de quem foi taxista por muito tempo em Nova Iorque e é habituado ao trânsito selvagem. A idéia de passar sua romântica viagem nupcial nas montanhas canadenses foi de Alice, nada como se aconchegar no ombro de seu amado em frente da uma lareira enquanto o gelo toma conta do lado de fora.

Conforme o carro serpenteia pela estrada, ao longe já é possível ver o chalé. Com suas paredes de madeira e fundação de tijolos, o ar é de uma casa simpática e confortável. O telhado é vermelho escuro e muito inclinado, mas o que impressiona mesmo é a paisagem em volta, com suas árvores coníferas branqueadas pela neve e montanhas ao longe, com seus cumes que se misturam aos céus como se fosse possível atingir um paraíso através delas.

Logo que Alice chega no chalé sua boca se entreabre com a suntuosidade do local, todos os móveis feitos de madeira escura dão um charme especial à casa que conta com ofurô, lareira e a varanda com vista para o lago que nessa época do ano fica congelado. Sebastian sente que afinal poderá descansar do dia-a-dia.

Ele desce pelas escadas acarpetadas e vê Alice sorrindo olhando para a lareira.

- Ok, entrendi. Vou buscar lenha – ele diz.

Com o tempo de namoro e noivado Sebastian aprendeu a ler todas as expressões dela, tornando a comunicação dos dois praticamente muda. Ele veste um casaco xadrez e calça suas luvas grossas.

- Ótimo! Agora você está parecendo um lenhador – ironiza Alice enquanto abre as malas.

O lado de fora do chalé está congelando. Uma névoa sai da boca de Sebastian toda vez que respira. Ao lado da casa há uma pilha de toras prontas para a lareira, assim como um machado com um tronco já derrubado. O homem dá uma respirada forte e imagina que parte da graça é derrubar uma árvore e corta-la com seu próprio esforço.

Ele encontra uma árvore não muito grossa e começa a corta-la com golpes fortes de machado. Quando o tronco da árvore toca o chão, ele percebe que algo passa rápido entre a vegetação rasteira e se esconde. Movido pela curiosidade, ele vai atrás do que se moveu e encontra um filhote de lobo. Branco como a neve, provavelmente um Lobo Polar, perdido de sua ninhada. Tão pequeno e inofensivo que mais parece um cachorro perdido.

Dentro do chalé Alice começa a arrumar o almoço quando a porta abre, Sebastian passa com um monte de toras nos braços.

- Querida, tem uma coisa para você no meu bolso.

Alice larga as panelas e enfia as mãos no casaco de Sebastian e encontra algo, quando puxa vê o filhote de lobo, lindo e dócil como qualquer cachorro domesticado.

- Ele é lindo! Mas não temos como leva-lo.

- É claro que não, trouxe apenas para você ver. Não queremos um animal selvagem junto com o nosso filho – ele pousa a mão na barriga dela.

- Não tenha tanta certeza “pai”. Acho que é menina!

Eles sorriem um para o outro enquanto o lobo permanece na mão dela.

Quando anoitece o filhote mostra toda a sua graça tentando destruir tudo pela frente. Brinca com meias, sapatos e demonstra apetite enorme pelo strogonoff de carne. Com a lua alta no céu, o filhote de lobo fica cada vez mais agitado, afinal a criatura tem hábitos noturnos. Solta um ganidos estridentes tal qual um Husky Siberiano quando pequeno.

Entre um gemido e outro, do lado de fora um uivo poderoso corta a noite.

Alice olha temerosa para Sebastian e concordam em silêncio que a mãe pode estar querendo seu filhote de volta.

Sebastian pega o pequeno lobo e abre com cuidado a porta. Há poucos metros está a loba. Não precisa ser nenhum zoólogo para perceber que a Loba está pronta para o ataque. Seus pelos claros estão eriçados, os caninos amostra quase roubam a atenção para a falta de um olho do animal, provavelmente perdido em um briga. O rapaz deixa o filhote com cuidado no chão, fecha a porta e corre para a janela, junto de Alice, para ver o reencontro.

O filhote vêm pulando em direção à mãe, quando chega perto de seu focinho ela o derruba para que fique de barriga para cima e começa a cheira-lo. Alice se comove com a cena e solta suspiro fundo.

A loba cheira por um tempo e enfim morde a barriga do filhote tingindo de vermelho a neve. Alice aperta a mão de Sebastian. O animal, com a boca pingando de sangue olha uma última vez em direção à janela, a moça fecha a cortina como se pudesse afastar aquele olhar feroz.

A noite é permeada com pesadelos de lobos ferozes para o casal. Quando aparece o sol tímido pela manhã os dois ostentam olheiras fundas. Sebastian sai para pegar a lenha, desta vez não se aventurará de cortar uma árvore, ainda mais sabendo que há lobos por perto. Por precaução carrega uma espingarda consigo.

Tudo deserto no país do gelo. Apenas alguns pássaros que parecem que não se espantam com o frio e lebres correm de vez em quando pela neve assustando pela velocidade que o fazem.

A noite aparece mais uma vez e traz consigo o Foundue e o vinho. A lareira queima alto trazendo o conforto para os corações apaixonados. Subitamente um uivo corta o ar. O casal sente medo. Sebastian se levanta de seu ninho de conforto e segue até a janela, ergue um pedaço da cortina e desnuda o vidro, do outro lado a loba passa rodeando a casa tal qual animal preso em uma jaula, enraivecido por sua situação.

Sebastian pega sua espingarda, mas nem consegue girar a maçaneta pois Alice está entre ele e a porta.

- Querido – começa ela – não faça isso.

Com a mão ela afasta a arma. Eles não olham mais para fora pelo resto da noite

Último dia da estadia, amanhã quando o sol nascer eles já estarão na estrada. Com a chegada do crepúsculo, os medos voltam. Alice está arrumando as roupas nas malas quando percebe que está muito silencioso no térreo da casa. Ela grita pelo nome de Sebastian e não obtém resposta. Munida de coragem, desce pelas escadas barulhentas e logo consegue enxergar a porta de entrada aberta. Seu coração dispara com as possibilidades. Temendo pelo pior ela alcança o ferro da lareira e o empunha como se fosse arma e segue em direção da saída. Um vento gélido entra na sala e congela de medo Alice. Porém ela tem que continuar.

As pegadas na neve são deixadas para trás enquanto ela circunda a casa em busca do que pode ter acontecido. Logo ela encontra o que temia, a espingarda de Sebastian jaz no chão. Está nevando forte encobrindo qualquer pista para onde ele possa ter ido. Um uivo. Forte e diabólico atravessa a espinha de Alice. Ela se vira em direção ao som e vê uma sombra entre as árvores.

Alice corre. Seus pulmões querem estourar e a pulsação sanguínea quer romper as veias em busca da saída. Seus olhos embaçados pelas lágrimas não conseguem ver um galho que bloqueia a passagem e logo a moça cai no chão fazendo com que o ferro que carregava voasse para longe. Quando levanta a cabeça pode ver o corpo de Sebastian com as vísceras expostas e em cima da imensidão vermelha a loba se alimentando. Seu amado.

Alice só consegue ver e sentir o vermelho da vingança. A moça irrompe em fúria e ataca com as mãos nuas a loba. Tentando arrancar a pele do animal com unhas… e dentes. Ao final da briga não se pode mais diferenciar quem é o animal irracional e qual não é. Alice, debruçada sobre o corpo da loba, com os lábios cheios de sangue, desferindo dentadas no animal já morto.