O Trem, a Menina e a Morte
O Trem, a Menina e a Morte
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
Este conto foi enviado para a seleção de Cursed City, para saber mais acesse o hotsite do cenário: http://editora.estronho.com.br/index.php/cursed-city
O Trem, a Menina e a Morte
Com suas botas puídas pelo uso e o rosto cheio de areia, Mike Rotten, conhecido assaltante de Cursed City, segue correndo pelo deserto em direção ao cânion que delimita a cidade. Maldita cidade.
Dessa vez ele foi longe demais.
Mike não é um ladrão de bancos. Vive de pequenos furtos e de enganações. O pouco que ganha mal dá para pagar suas dívidas com o jogo, que são inúmeras e aumentam a cada dia que passa. Talvez o grande problema do velho tolo é o poker, esse maldito carteado que com a combinação do uísque transforma homens em animais e mulheres em prostitutas.
Da última vez ele perdera todas as suas posses (um cavalo e uma muda de roupa), completamente falido e com sua garganta desesperada por um gole de alguma bebida resolveu assaltar a loja de penhores do velho Will, uma dos poucos estabelecimentos da cidade.
Com um pano vermelho a lhe cobrir o rosto e uma velha arma engatilhada, ele entrou no estabelecimento com um saco de farinha a sua frente pedindo oferecendo uma troca justa, o dinheiro ou a vida. Will olhou para sua filha, a pequena Clara e com medo que algo pudesse acontecer com a menina, tirou todo o dinheiro e depositou no saco.
Porém o destino é mal e em Cursed City é pior ainda.
Clara, com toda a valentia de seus 9 anos, pulou na frente de Mike e tentou arrancar de sua mão a arma, o bandido com sua constituição física medíocre lutou com a menina pela posse da arma. Will do outro lado do balcão apenas ficou com a mão sobre a cabeça com medo que pior fosse acontecer.
E aconteceu...
Um disparo acidental varou o crânio da menina deixando-a estendida no chão ornamentada por uma poça de sangue. Quando Mike vislumbrou o que fizera, sentiu a o peso do martelo da justiça e corda da forca a lhe apertar o pescoço. Virou-se para correr, porém topou com uma gorda senhora e acabou caindo no chão. O lenço que lhe garantia o anonimato desprendeu de seu rosto. Will o reconheceu de imediato. Seu rosto queimou em fúria, mas antes de conseguir colocar as mãos no assassino, este pulou pela janela com os braços na frente do rosto e o estabelecimento e ganhou a rua correndo para salvar a sua vida.
Com os braços sangrando e sua garganta seca, Mike no deserto, foragido da justiça dos homens, para um pouco para descansar. Senta em uma rocha e observa Cursed City ao longe. Com a mão o bandido realiza um gesto obsceno e dá uma longa risada. Quem disse que não era possível fugir da cidade?
O fora-da-lei arranca os cacos de vidro presos em seus braços desde que destrui a janela com seu corpo. O sangue jorra livre manchando sua camisa carcomida pelo tempo. Mike se endireita e olha ao redor e encontra uma bomba manual de poço. Ele sorri. A sorte parece ter voltado a estar do seu lado. O homem bombeia um bocado de lama e por fim a água começa a sair limpa.
Mike lava seus braços e tinge de rubro o chão arenoso do deserto. A água em contato com sua pele arde, porém é bem melhor que uma infecção futura. Quando o fora-da-lei ergue seu rosto visualiza e velha estação de Cursed City. Reformada! Talvez ele tivesse tanto tempo enfurnado na bebida e no poker, que nem percebeu que a ferrovia voltou para tão difamada cidade. As últimas notícias que ouvira dizia que qualquer engenheiro da ferrovia encontrava uma morte horrível.
Era sua chance de fugir.
Com o chapéu enterrado na cabeça para não ser reconhecido ele caminhou até a estação, sentou em um dos bancos novos, ainda cheirando à tinta, e aguardou. Seu plano era pegar o trem sem pagar, porém nem guardas haviam para coibir tal ação. Na verdade não tinha ninguém na estação, os guichês estavam vazios, as plataformas sem passageiros. Talvez ainda não estivesse funcionando a maldita estação.
Quando pensou em sair, o apito do trem que se aproxima soou alto informando de sua chegada. Mike se assustou, pois nem conseguira vir o trem se aproximando. Com certeza era seu dia de sorte. O carro abriu suas portas e o fora-da-lei entrou.
Não muito longe dali, um comerciante com sua carroça e um bom número de mercadorias observa o homem parado na estação desativada.
- Johny, dá um olhada naquele cara ali.
- “Tô” vendo.
- Será que ele não vê que a estação está abandonada?
- Sei lá. Esse pessoal da cidade é tudo maluco.
...
As paredes do carro ganharam um carpete vermelho e o chão madeira escura. Ninguém está aqui também. Nem o habitual cobrador que passa nos vagões estava lá. O trem fechou as portas e partiu em direção ao deserto.
Ainda assustado, Mike sentou-se em uma poltrona e pousou os pés sobre a mesa. Com certeza era um trem de luxo. Ficou um tempo sentado e começou a pensar onde estariam os outros passageiros. Levantou de seu conforto e foi até o próximo carro, pela escotilha enxergou algo várias pessoas rindo e bebendo sentadas à mesa. Os passageiros bem vestidos bebericavam de seus copos, as mulheres com longos vestidos de gala e os homens com seus impecáveis fraques e cartolas.
Mike olhou para suas veste esfarrapadas e realizou que todos perceberiam que seu lugar não era ali. Desconsolado, no caminho de volta para seu assento, ele vê um belíssimo fraque pendurado em um cabide próximo à porta. O fora-da-lei vestiu-se à rigor com direito de a cartola e luvas brancas. Confiante com seus novos trajes, Mike adentrou no carro.
O cheiro de tabaco invadiu suas narinas, logo um garçom lhe ofereceu uísque, que foi aceito de bom grado. Com o copo na mão ele sentiu algo no bolso de seu fraque, encontrou um belíssimo charuto que ao colocar na boca logo apareceu outro garçom com um fósforo a lhe acender o fumo.
Bebida, charuto, Mike sorriu.
Bastaram seus lábios demonstrarem uma ínfima felicidade e um silêncio inundou o carro, todos os passageiros pararam o que faziam e voltaram o olhar para o novo convidado. Este paralisou com a reação dos passageiros e emudeceu. Um senhor grisalho com uma alta cartola se aproximou, sua face enrugada pela idade parecia triste, suas mãos abriram os botões de seu fraque em seguida abriu sua camisa revelando uma marca de bala que atingira seu coração.
Mike deixou o charuto cair no chão.
- Como o senhor tem a capacidade de rir quando agora a pouco foi responsável por um assassinato?
- Mas como...
Antes de conseguir perguntar, os convidados deram espaço, no fundo do corredor, Clara com um tiro no em seu crânio e com as roupas ainda ensaguentadas, segura uma rosa branca. Ela segue devagar com passos tranquilos. Para em frente ao seu executor e entrega a flor.
Mike pega a rosa.
- Essa rosa simboliza a minha morte, agora estamos ligados pelo seu crime, para o final de sua vida nosso alma será uma só. Aqui nesse carro, neste trem, todos foram assassinados, como eu, contemple sua obra.
A respiração de Mike fica acelerada, seu coração tenta fugir de seu peito, ele fecha os olhos e joga a rosa no chão, tampa seus ouvidos com suas mãos e espera que tudo desapareça.
Quando cria coragem para olhar, descobre que tudo passou de uma ilusão, ele está parado em cima da linha do trem coberta por areia e nunca sequer usada. Mike deita no chão tentando se recompor, de onde está enxerga o poço de onde tirou a água com uma placa encoberta por um pedaço rasgado de pano que o vento leva revelando uma placa de aviso quanto a contaminação.
É isso. Mike tem sorte de ter sobrevivido a um envenenamento e delirou por um tempo por causa de seu erro. O fora-da-lei ri por causa de sua bobagem. Porém ainda tem o problema de ser um foragido, o crepúsculo toma conta dos céus indicando a insegurança de se viajar a noite. Ainda sobra o conforto da estação desativada.
O sono aparece, porém é inquieto. Mike sonha com o assassinados e estes comem sua carne ainda viva enquanto ele se debate tentando em vão se desvencilhar dos mortos. O fora-da-lei acorda de seus pesadelos sentando no que outrora era sua cama. Sua respiração ofegante exala uma nuvem de medo. Ao tentar se levantar encontra ao seu lado uma rosa. Branca feito neve e em sua ponta sangue.
O assassino sentiu suas pernas tremerem. Uma gota de suor desceu na linha da coluna arrepiando os pelos da nuca. Isso não pode ser verdade. Mike arrastou-se de costas como se fugisse de algum monstro ou algo parecido. Quando encostou-se contra a parede, ficou respirando ofegante olhando para a alvura da rosa.
Quando criou coragem correu em direção a porta e a abriu com violência, revelando algo pior. Do lado de fora dezenas de seres etéreos, com suas cores variando do púrpura ao esverdeado, fantasmas ostentando marcas e cicatrizes responsáveis por sua morte. Parados em frente da velha estação, olhando para a única alma viva no local.
Mike fecha a porta como se isso pudesse impedir a entrada dos fantasmas e corre para os fundos da estação, porém ao passar por um dos corredores enxerga uma janela com vários espíritos. Definitivamente eles cercaram a casa. Desesperado, Mike sobre as escadas pulando sempre um degrau, porém as condições da madeira fizeram com que esta rachasse. O pé do assassino atravessou o buraco recém formado e rasgou sua calça e pele. Logo o sangue gotejou manchando a escada de rubro. A vitalidade desperdiçada atraiu a atenção dos espíritos, sedentos por vingança, que invadiram a velha estação.
Mike viu a aproximação dos malditos e arrancou sua perna do buraco rasgando ainda mais sua carne, seguiu mancando até a parte superior do imóvel, os fantasmas já dominavam todo o saguão inferior restando apenas como saída as janelas.
Ele respirou fundo. A dor na perna foi esquecida. Sua única chance de sair era pulando até o chão e tentar correr de volta para a cidade amaldiçoada. Mike subiu no parapeito e encarou o deserto. Os fantasmas entraram na sala. Com os pés vacilantes, ele se escondeu ao lado da janela e espetou seu dedo em alguma planta. Olhou para ver o que era e contemplou uma enorme roseira que subia as paredes da estação. Todas as flores de cor carmim e uma única rosa branca, justo aquela cujo espinho espetara sua mão. Suas pernas ficaram bambas e não mais responderam.
Mike caiu. Seu corpo branca segurando a rosa demorou para ser encontrado, mas nunca foi removido. Não houve velório, não houve enterro. Apenas sua carcaça servindo de alimento para os animais do deserto.