AS VEZES ELES NÃO MORREM

Povoado: Riverdale Mountain.

Localização: Região isolada entre Utah e Arizona.

População: 2,3 mil habitantes.

Religião: Mórmons radicais.

Alguns anos atrás....

Há muitos anos Jake agüentava em silêncio os preceitos da chamada Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (uma dissidência dos mórmons tradicionais), que entre outras coisas prega a vida em famílias poligâmicas, ou seja, os pais tem o dever de se casarem muitas vezes, quanto mais esposas eles tiverem, mais abençoados serão pela justiça divina. Apesar de ser homem e não ser diretamente afetado, sua principal revolta era com a forma como as mulheres da comunidade eram tratadas, pois normalmente eram obrigadas a casar aos quatorze anos de idade e sofriam toda ordem de abusos sexuais e agressões físicas que vez ou outra chegavam a causar alguns abortos.

Agora Jake tinha completado dezoito anos, era um homem e iria botar um fim naqueles absurdos. Ele conhecia os verdadeiros mandamentos do mormonismo, invariavelmente eram preceitos de fé, amor e retidão de caráter. Mas o que estava acontecendo ali... Isso havia ultrapassado todos os limites... Eles haviam distorcido os ensinamentos, aproveitaram o isolamento total e criaram suas próprias regras através de interpretações radicais e absurdas do Livro dos Mórmons.

A viagem não seria fácil, teria que transpor a pé uma região montanhosa seguida por um verdadeiro deserto, seria quase quatrocentas milhas de terreno inóspito e sol escaldante até chegar a Salt Lake City, lá ele iria fazer contato com o FBI e o mundo iria ficar sabendo dos verdadeiros horrores que estavam sendo praticados por aqueles líderes religiosos radicais.

Jake estava confiante, já vinha planejando sua fuga há vários meses, esperando pacientemente a época do ano correta para que o clima fosse o mais favorável possível.

Eram em torno de dezenove horas da noite, e como de costume o Bispo George Marshall (atual tutor de Jake) entrou sem bater em seu quarto.

- Boa noite meu caro rapaz, que nosso Pai Celestial ilumine seus caminhos agora que se tornou um homem.

- Boa noite senhor. – respondeu Jake escondendo a raiva que sentia daquele homem hipócrita.

- Fico feliz em lhe informar que na próxima semana você estará se casando com a filha dos O´Connor, a primeira de muitas esposas que virão.

- Mas senhor, Mary tem apenas doze anos. – balbuciou ele.

- Me causa surpresa este seu infeliz comentário meu rapaz, pois você sabe muito bem qual a missão das mulheres na nossa comunidade. Como se trata de uma data especial e é seu aniversário vou considerar que esta sua manifestação nunca ocorreu.

- Me desculpe se causei a impressão errada senhor, só quis dizer que achava que ela ainda era uma criança, ainda não tinha se transformado em uma mulher... Se é que o senhor me entende... – falou ele fazendo-se de constrangido.

- Sim meu rapaz, eu entendi o que você quis dizer... E se isto lhe deixa mais calmo, fique tranqüilo, pois a mãe dela me garantiu que ela já passou pela primeira menstruação, ou seja, você já vai receber uma mulher pronta para ter filhos imediatamente, se assim preferir.

- Sim senhor, agora fico mais tranqüilo. – disse Jake baixando o olhar para disfarçar a tristeza em sua face.

- Bom, agora que já nos entendemos, boa noite meu bom rapaz.

- Boa noite Senhor Bispo.

O display do relógio digital no velho criado mudo marcava 23:00Hs, Jake levantou-se abruptamente e puxou sua mochila de baixo da cama, vestiu rapidamente as calças jeans e um moletom azul por cima da camiseta branca calçou suas botinas pretas e por último colocou sua jaqueta de sarja camuflada. Silenciosamente abriu a janela do seu quarto e saltou para a noite escura. Era hora de iniciar sua jornada. Havia chegado a hora de partir.

Os cinco homens escondidos nas sombras observavam o jovem pular a janela e movimentar-se sorrateiramente em direção aos limites da cidade.

- O senhor tinha razão Bispo. Como sabia que o garoto estava tramando fugir? – perguntou um deles.

- A juventude é tola e previsível meu bom homem, ainda mais para olhos experientes como os meus.

- Com todo respeito Bispo, mas Jake não é bobo e parece saber o que esta fazendo, notaram que ele tomou a trilha oeste? Este caminho é impossível ser feito de carro, teremos que ir atrás dele a cavalo ou até mesmo a pé, acho melhor irmos logo ou ele poderá escapar.

- “Você não pode ir a lugar algum sem que Deus possa lhe encontrar”. – disse o Bispo Marshall citando o Livro dos Mórmons - Calma meu bom homem, tudo a seu tempo. Vamos lhe dar falsas esperanças, deixa-lo pensar que conseguirá. Depois receberá uma lição para nunca mais esquecer. Ele servirá de exemplo. Ninguém me desafia. NINGUÉM. – completou ele calmamente.

- Quais são suas ordens Bispo?

- Chamem os rastreadores. Selem os cavalos e preparem os cães. Vamos caçar.

- Os cães Bispo? São perigosos e treinados para matar. Caso eles se soltem podem acabar com a vida do garoto.

O Bispo virou para o homem com ódio no olhar e lhe acertou um tapa violento no rosto. Enquanto o homem se refazia ele falou calmamente:

- Nunca questione minhas ordens irmão. – e erguendo as mãos para o alto tal como um profeta bradou - “O que quer que Deus requeira é certo, não importa o que seja, embora não vejamos a razão disto até muito depois que os eventos tenham acontecido”.

Jake era muito forte e tinha uma resistência incomum. Tão logo alcançou o limite da cidade e adentrou a floresta, havia iniciado uma corrida num ritmo forte. Sabia que não tinha mais volta e precisava se distanciar o mais rápido possível, sabia que se tivesse sorte teria umas seis horas de vantagem. Mas se alguém desse por sua falta antes disso, teria somente o tempo deles se organizarem e partirem em sua busca, por isso qualquer minuto contava. Jake iniciou tomando a trilha oeste, que era conhecida pelos membros da comunidade, após umas duas horas de caminhada, em uma curva, abandonou a trilha e embrenhou-se em direção sul na densa vegetação.

Bastou ouvir o tropel dos cavalos para Jake saber que algo havia dado muito errado no seu plano, ele contava com uma boa dianteira, era praticamente sua única chance de escapar. Desesperado, embrenhou-se na mata fechada na esperança que a pé não conseguissem segui-lo. Mas não imaginava que a crueldade do Bispo não tivesse limites. Tomado pela fúria ao ver que teriam que abandonar os cavalos e corriam o risco de perdê-lo, Marshall deu a ordem fatídica e decretou a sentença do pobre garoto:

- Soltem os cães. Este maldito herege não vai escapar – gritou o Bispo a plenos pulmões, e completou – “Que a fúria do Senhor seja lançada sobre aqueles que o desafiam”.

Em completo desespero, Jake sentiu o primeiro cão avançar sobre suas pernas, mesmo sentindo a dor lancinante da mordida do imenso rottweiler negro conseguiu manter-se em pé. O segundo cão investiu e abocanhou seu braço direito que estava levantado numa débil tentativa de se defender. Quando sofreu o impacto do último cão, foi arremessado violentamente de encontro ao chão em meio a um turbilhão de presas que lhe agrediam impiedosamente e estraçalhavam seu corpo.

Quando os homens chegaram e afastaram os cães, Jake estava reduzido a uma massa disforme de sangue e carne, seu corpo completamente irreconhecível. Ao se abaixar, um dos seguidores do Bispo verificou que milagrosamente Jake ainda respirava e ao questionar sobre o que deveria fazer, ouviu a hipócrita ordem de Marshall:

- Deixe-o onde esta. Que Deus ou o Diabo decidam sobre o seu destino – e assim retornaram para o povoado abandonando Jake as portas da morte.

As lembranças começaram a retornar lentamente: primeiro o sentimento de desespero, depois a dor e finalmente a escuridão. Jake olhou ao redor e apesar da densa neblina que envolvia a vegetação, notou que estava deitado exatamente no mesmo ponto em que havia sido atacado. Não sentia dor e ao levantar-se experimentou uma estranha sensação de leveza. Sem entender o que estava acontecendo sofreu um grande choque ao olhar para onde estava deitado, pois seu corpo continuava imóvel e destroçado aos seus pés. Ficou alguns momentos imóvel, enquanto sua mente tentava entender o inexplicável. Então, é assim que tudo termina, refletiu ele. Ainda estava perdido em seus pensamentos quando ouviu uma voz sussurrante:

- Olá, garoto. – Jake virou-se num sobressalto e viu a sinistra figura sentada próxima a uma grande árvore, usava uma roupa escura que lembrava um monge e tinha um capuz sobre a cabeça que deixava seu rosto parcialmente a mostra, sua face era simplesmente impossível descrever, pois apesar de lembrar um homem, seus dentes lembravam os grandes felinos selvagens – Não tenha medo, eu vim em paz – completou a criatura.

- Estou morto? – gaguejou o rapaz.

- Ainda não, estou aqui para lhe dar uma coisa que a poucos é concedida – falou o estranho com um ar muito calmo na voz.

- E o que seria?

- Uma escolha. Não é tão simples assim, mas digamos que fiz uma pequena pausa no tempo. Você pode voltar para o seu corpo e deixar o curso seguir, ou, você pode seguir comigo.

- Mas como vou saber o que é o certo a fazer?

- Não existe o certo e o errado, existem escolhas e ponto final.

- Você é um anjo?

- Digamos que de certa forma sim – falou entre risos irônicos – mas tudo que prometo é vingança. Agora escute o seu coração e decida.

- Eu.. eu.. eu vou com você.

- Fico feliz em ouvir isso garoto, pois a partir de agora serei seu mestre e você meu discípulo. Agora vamos, pois você tem uma longa jornada pela frente e muitas coisas a aprender...

Riverdale Mountain, tempos atuais...

Foi sem aviso que a inacreditável tempestade caiu sobre a cidade, em poucas horas a neve bloqueou todas as saídas da cidade. A temperatura atingiu vários graus abaixo de zero, as pessoas se isolaram em suas casas ou na imensa igreja matriz. Permanecer mais do que alguns minutos na rua era o mesmo que desafiar as leis da sobrevivência.

Mesmo antes das mortes começarem o Bispo Marshall já afirmava que o Armageddon havia chegado. A cada dia os homens morriam como moscas, enquanto não se tinha notícia que nenhuma mulher havia perecido. O Bispo, cada vez mais enlouquecido, alegava que somente os homens estavam sendo escolhidos para entrarem no reino dos céus, enquanto que as mulheres ficariam na terra para continuarem a pagar seus pecados.

Os homens morriam das mais variadas formas, mas inicialmente sempre de causas naturais. Pouco tempo depois, começaram a aparecer misteriosamente assassinados, muitos com seus corpos destroçados, outros com suas faces irreconhecíveis pelo aspecto de terror que demonstravam em seu rigor mortis. Mais alguns dias, começaram a aparecer relatos de pessoas que juravam ter visto sinistras figuras encapuzadas rondando as casas em meio à tempestade.

Não demorou muito para restarem poucos homens, na verdade apenas o Bispo e cinco dos seus mais fiéis seguidores que a esta altura viviam isolados na igreja. As mulheres, em pânico, há muitos meses já não tinham o menor contato com os homens e mantinham-se escondidas na segurança de suas casas.

Fazia muito tempo que o Bispo os via rondando a igreja, tentando achar um meio de entrar na casa de Deus. – Aqui estamos protegidos – bradava ele para seu reduzido e assustado rebanho.

Foi numa noite como qualquer outra. Eles simplesmente entraram. Dez figuras encapuzadas, caminhando lentamente e sem dizer uma palavra foram dizimando todos os homens presentes.

Quando restava somente o Bispo, as criaturas se reuniram próximo ao altar observando enquanto um deles ia de encontro a Marshall:

- Chegou a hora de enfrentar seu juízo final Bispo – sussurrou o estranho ser enquanto retirava seu capuz.

Tomado pelo pavor Marshall reconheceu os traços de Jake em meio aqueles traços felinos e estranhamente bonitos, lutando para se controlar conseguiu balbuciar uma pergunta:

- Jake? Em que espécie de demônio você se transformou?

- Não me transformei em nenhum demônio Bispo, mas sim em um Anjo Vingador a serviço de Deus para punir os falsos profetas – sussurrou ele enquanto envolvia para sempre o bispo maldito na escuridão de seu manto tendo os primeiros raios de sol como testemunha.

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Maddox
Enviado por Maddox em 19/01/2011
Código do texto: T2739520
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