Os Olhos do Tigre

Os Olhos do Tigre

por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)

Andamos por um trecho pedregoso afastando com as mãos os galhos que teimavam açoitar nossas faces. De súbito Shun colocou a mão impedindo que nós andássemos, todos ficaram em silêncio esperando saber o motivo do nosso sábio guia, poucos instantes depois um enorme tigre passou entre umas árvores deixando-nos com a respiração trancada nos pulmões.

Shun não fala inglês, mas colocou o dedo na frente dos lábios indicando silêncio. Ficamos apreensivos observando o enorme felino encostar em uma árvore e passar suas garras em uma tentativa de afiá-las. O grupo inteiro observou a cena enquanto analisava o espécime. Pela pelagem era possível determinar que este já era velho demais. Seria ridículo abatê-lo.

Apenas tigres no vigor da idade são ótimos para o abate. Seus dentes viram joias, seu pênis afrodisíaco e sua pele um belíssimo tapete. Porém nós procurávamos outra peça importante: Os olhos.

Tudo começou em uma biblioteca inglesa, eu e Michael estávamos estudando sobre antigos rituais de magia quando nos deparamos com um tomo escondido atrás de outros livros. Eram encantamentos poderosos que destinavam o poder para realizar diversas façanhas, porém um deles chamou a atenção de meu amigo.

– Ivan, dê uma olhada nisso aqui – apontou Michael para um página amarelada com uma figura ao centro.

Aproximei meu rosto para perto do livro, a inscrição em latim contava sobre um velho demônio chinês capaz de transformar barro em jade.

– É um ritual para convocar e comandar um demônio – falei meio vacilante.

– Parece promissor – emendou Michael.

– O ritual em si não é difícil de se executar, o problema está na lista de itens que precisaríamos para executar.

– Como assim “precisaríamos”?

– “Precisaríamos” caso fossemos fazer tal ritual.

– E por que não?

Fizemos um longo silêncio enquanto nos olhávamos. Michael ainda não sabia do poder do demônio em transformar o barro e já estava topando em convocá-lo. Eu ainda estava incerto em fazer, haviam alguns trechos que eram ilegíveis e isso me assustava. Respirei fundo e enxerguei a expectativa nos olhos de Michael.

– Tudo bem. Podemos fazer. Porém será difícil encontrar este item aqui – falei apontando para o último ingrediente: Um par de olhos de tigre adulto

Juntou em nossa comitiva se juntou Kirk, ótimo atirador, Johan, o homem que patrocinou nossa espedição e Shun, um nativo local que contratamos como guia, algo imprescindível nas florestas chinesas.

Nós seguimos por um grupo de rochas com a Muralha da China como testemunha. Uma pequena caverna surgiu ladeada por um grupo de árvores. Shun agachou-se de súbito e todos nós seguimos seu gesto por impulso até percebemos que ele analisava uma pegada deixada no solo. Demorou-se um pouco estudando a impressão no chão e por fim apontou para dentro da caverna.

Kirk se adiantou com seu rifle nas mãos apontando para dentro da escuridão. O silêncio imperou por alguns instantes até que um enorme tigre saiu da caverna rosnando baixo e nos inundando de medo. Um barulho alto e o cheiro de pólvora denunciou o tiro. Kirk saiu da caverna arrastando o tigre. Hoje acamparíamos.

Com as barracas armadas e a fogueira alta, Kirk com a ajuda de Shun começaram a retirar a pele do tigre. Michael aproximou-se da cabeça do felino abatido e com a ajuda de um punhal arrancou os olhos da órbita. Algumas horas depois o tigre havia sido todo picado e suas partes embaladas para serem vendidas no mercado negro. Nem sua carne escapara e agora assava em nossa churrasqueira improvisada.

Michael estava com os olhos do tigre na mão como se os admirasse. Cheguei com um pote de vidro e o empurrei para perto de seus olhos. Ele hesitou um momento e os depositou no vasilhame.

A noite caiu e todos dormiram. Ao menos eu pensava que sim. Quando acordei vi Shun com o livro nas mão perto do fogo. Seus olhos arregalados pararam nos meus. Fiquei um momento em silêncio e nosso guia levantou-se e começou a correr desenfreadamente. Acordei a todos mas deram de ombros dizendo que a ida até a próxima cidade seria fácil.

Voltei a dormir e pude ver o demônio. Seus olhos amarelados contrastavam a pele vermelha e os cabelos negros feito piche. O corpo esquálido com as costelas quase furando sua pele parecia doentio. Da boca saltavam seus dentes pontiagudos e ameaçadores. Tal figura horrível me despertou do sono. Abri meus olhos e vi um enorme tigre rondando o acampamento. Arrastei meu corpo até o saco de dormir de Kirk, não o encontrei, porém seu rifle estava lá. Apontei para o centro da testa do animal e atirei.

O barulho acordou a todos. O felino no chão ensaguentado e o rifle fumegante em minhas mãos. Com todos acordados resolvemos levantar acampamento e procurar por nosso colega sumido. Johan tremia de medo com as possibilidades que surgiam. Será que um tigre vingativo teria pego nosso amigo? Ou o guia chinês?

Era melhor seguirmos pela floresta até a próxima cidade. A escuridão oprimia nossa coragem enquanto arbustos fustigavam nossos temores. Seguimos em silêncio pela mata fechada, Michael ia à frente, seguido por mim e por fim Johan. Johan? Quando nos vimos, Johan havia desaparecido. Virei-me, porém a mão de Michael me impediu de prosseguir.

– Onde você vai Ivan?

– Procurar Johan.

– Não – cortou secamente Michael – a chance de nos perdemos é enorme...

Sua explicação foi cortada pelo rugido forte de uma fera que acabara de saltar em nossa frente, atirei sem pensar e o felino caiu. Os olhos do tigre me olhavam com enquanto ele se debatia de agonia. Parecia haver emoções naqueles olhos.

Seguimos em frente mais rápido. Não pude ver uma erosão no terreno e acabei caindo e rolando uma ladeira batendo fortemente minha cabeça contra uma pedra. Não sei quanto tempo fiquei apagado, acordei com a sensação de ser observado. Outro tigre. Este descia a encosta pela qual caí, o rifle ainda estava ao meu lado, atirei a cabeça da fera que me pareceu surpresa pela minha atitude. O felino caiu pesadamente e rolou até onde eu estava.

Minha respiração ainda estava ofegante quando ouvi algumas palmas. Procurei a origem do som e encontrei o demônio em meio às arvores me observando.

– Ora, ora – começou o demônio com sua voz rouca – Como você é capaz de matar seus próprios amigos?

Tentei gritar mas apenas um rosnado saiu no lugar, olhei para mim mesmo e eu havia me transformado em um tigre. Queria gritar, queria chorar mas apenas conseguia rugir um miado feroz. Enquanto isso na minha frente o corpo do tigre abatido voltava a ser Michael.

Epílogo

Corri o máximo que pude. Depois de três horas alcancei a cidade, ao entrar no vilarejo as pessoas corriam e gritavam de medo. Fui recepcionado alguns homens armados e não consegui fugir. Minha pele, meus dentes e meus olhos seriam retirados e usados por outros gananciosos como eu.