Aposta do Diabo

Aposta do Diabo

por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)

As palavras que aqui escrevo ficarão para a posterioridade como o retrato de uma realidade até então improvável. Sou professor de história e certa vez discuti com um amigo meu, que chamarei de John pois não desejo revelar sua identidade, a improvável existência do diabo. Este meu amigo declarou com todas as palavras e argumentos que o demônio era sim real, citando trechos bíblicos e acontecimentos dados dentro de salões evangélicos e terreiros de umbanda.

Nossa acalorada discussão seguiu noite adentro regada por cerveja barata e cigarros de gosto duvidoso. Até certa hora que decidimos que faríamos uma aposta. Aceitei de imediato assim como ele, se comprometendo em conseguir as provas necessárias.

A vida seguiu com sua rotina inexorável. Encontrei meu amigo apostador no centro da cidade uma semana depois de nossa discussão. Antecipei-me de cobrar-lhe o dinheiro correspondente à aposta, ele apenas disse que estava lendo alguns livros e logo mais eu é que lhe deveria. É claro que isso só poderia ser uma brincadeira, afinal eu não tinha o intento de realmente cobrar tão pouco dinheiro por causa de uma aposta tola.

A primavera passou e logo o inverno trouxe toda a sua melancolia. John não aparecia mais no bar, talvez com medo que eu o cobrasse, eu o vi certa vez saindo de um sebo na cidade com alguns livros debaixo do braço, tentei cumprimentá-lo, porém ele pareceu não me ver e seguiu. Pálido e com os ossos saltando das mãos, me preocupei com a saúde do meu velho amigo.

Quando voltei para casa fiquei pensando se não seria melhor ir à sua residência desfazer esta aposta ridícula e tudo voltar ao normal de novo. Com a lua como testemunha, segui pelas ruas de pedra até chegar na casa de John, um velho sobrado feito de tijolos acinzentados. As janelas estavam fechadas e não era possível ver qualquer sinal de que havia alguém dentro. Toquei a campainha e fiquei esperando uma resposta. Nada. Reparei no portão aberto e segui em frente.

A grama crescia alta no jardim e suas tão queridas rosas estavam murchas. Logo vislumbrei a casa de Fred, um antigo vira-lata que John adotou, me agachei para acariciar o cão e vi que este estava encostado contra a parede ao fundo de sua casinha, ganindo baixo, como se tivesse medo de algo. Tentei colocar minha mão nele porém esse ganiu alto demonstrando um pavor desnecessário.

Pela magreza do cachorro, logo concluí que não comia faz tempo, sua tigela de água também estava seca há muito. Um estrondo me chama a atenção. A porta da frente acabara de bater com o vento indicando que estava aberta a pouco. Precipitei pelo jardim até a entrada e abri lentamente a porta fazendo-a ranger feito uma roca.

Dentro do imóvel a escuridão havia tomado posse de tudo lançando seus tentáculos pelos cantos. Percebi que a luz havia sido desligando da quando mexi no interruptor. Em um dos cantos a gaiola do papagaio com um pano por cima. Um pouco hesitante, segui até a escada e parei ao lado da gaiola, puxei com calma o pano que a cobria e apenas vislumbrei um punhado de penas soltas no forro.

Não sei o que passou pela minha cabeça no momento, mas resolvi não gritar pelo nome de John, tateando pela casa escura cheguei à escada que dava acesso aos quartos, conforme subia os degraus um cheiro nauseabundo tomava conta de meu olfato, identifiquei alguns ratos mortos no corredor pegos por ratoeiras espalhadas pelo chão. Tudo tinha um aspecto de abandonado, a poeira tinha feito uma fina camada por sobre todos os móveis e a falta de pegadas indicava que meu amigo não vinha nesse andar há um bom tempo.

Desci de volta ao saguão de entrada ainda receoso sobre o que acontecera com John. Onde ele poderia ter ido? U,m rangido baixo chegou aos meus ouvidos indicando uma porta entreaberta se movendo pelas correntes de ar. Andei alguns metros até achar a entrada para o porão se mexendo e chiando ao sabor do vento.

De cima era possível ver uma luz fraca ao fundo da escada que conduz até o porão. Meu coração apertou um pouco com a possibilidade de descer, mas eu já havia chegado até aqui e iria até o fim.

Conforme descia os degraus abaixo estalavam com meu peso, cheguei em um salão grande iluminado por velas, ao centro uma cortina branca fazendo um quadrado ocultando algo que só era possível ver pela sombra e mesmo assim não consegui identificar.

Nos arredores umas dezenas de livros e anotações, olhei de soslaio e algo prendeu minha atenção. Era uma gravura de um demônio sobre crânios. Os outros tomos também falavam do mesmo assunto, bem provável que John tentava de alguma forma provar para mim. Algo murmurou meu nome, de imediato meus pelos eriçaram e minha cabeça voltou-se para para o centro do porão.

Percebi que a sombra se mexia, só poderia ser John. Andei com cuidado até a cortina e puxei devagar, demorou alguns segundos para eu conseguir absorver o que eu via, depois disso senti uma náusea tão forte que minhas pernas adormeceram e o vômito chegou com seu gosto acre em minha garganta.

Relato o que vi não por prazer sádico. Era possível ver as antigas feições de John, porém estas chegaram em ângulos improváveis e de forma distorcida. Parece que ele fosse feito de borracha e tinha sido todo esticado, sua pele apresentava uma cor mosqueada e era possível ver seus ossos marcando sua pele, seus dentes amarelados estavam pretos e seus olhos sem íris lembravam de um cego. O cheiro insuportável não me deixava entrar naquele cubículo.

Até então John olhava para o nada, repentinamente voltou seus olhos medonhos até meu rosto. Senti um ar gelado me percorrer o corpo no mesmo instante. A criatura que John se transformara abriu sua bocarra hedionda e murmurou: “ O diabo existe... Agora ele habita dentro de mim”.

Tinha sido o bastante para minha pessoa. Fugi desesperadamente do porão tropeçando na escuridão da casa até a saída. Do lado de fora percebi um galão de gasolina. O mal não poderia mais existir.

Dois meses depois do ocorrido e Fred ainda não consegue sair na rua sem urinar de medo. Felizmente agora o cão já come normalmente e ensaia um abanar de rabo quando chego. Toda vez que passeio com o pobre cachorro este não consegue passar na mesma calçada da casa queimada de John, entendo o que ele sente e compreendo que só o tempo apagará seus temores... Se apagar...