Inferno
Conto de minha autoria, retirado do livro Terra Devastada.
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Trechos retirados do diário de Renato Dias de Carvalho
Domingo, 19 de Abril
É a terceira noite dessa semana que desperto sobressaltado. Mesmo sem um motivo real, sinto como se algo muito errado estivesse prestes a acontecer. Sei que pode parecer paranóia minha, mas a última vez que me senti assim foi dias antes do acidente. Não gosto de pensar nisso...
Terça-feira, 28 de Abril
Hoje faz dez dias que cheguei à Serra do Navio, um município com poucos habitantes, perdido no meio da floresta amazônica. Nunca pensei que um dia colocaria os pés num fim de mundo como esse, mas se os poucos boatos que me contaram sobre o Amapá forem verdade, estou realmente pisando sobre uma mina de ouro.
Passar no concurso para a magistratura sempre foi meu sonho de estabilidade, mas não pensei que viria parar em um lugar assim, ainda mais como juiz substituto. O estranho é que, pra ser sincero, não sinto a menor falta de São Paulo. Viver naquele inferno nunca fez muito a minha cabeça. E depois que perdi a Laura, não tenho mais motivos pra pensar em voltar para o sul do país.
Sábado, 2 de Maio
Menos de 15 dias de trabalho e já estou desanimado. Como juiz substituto acabei acumulando várias funções que normalmente seriam distribuídas entre diversas varas. Além de Serra do Navio, minha área da atuação se estende à cidade de Pedra Branca do Amapari e ao município de Ferreira Gomes. Parece que terei bastante trabalho pela frente...
Quinta-feira, 7 de Maio
Estive enganado sobre a quantidade de trabalho, isso aqui é um marasmo sem fim. Os despachos são todos realizados em Serra, então raramente preciso sair daqui.
Estive pesquisando sobre a cidade e descobri alguns fatos interessantes. Décadas atrás, quando um grupo estrangeiro veio minerar manganês na região, construíram a cidade nos moldes das pequenas cidades americanas – casas sem muros externos, ruas largas e quadras pequenas. Depois que a empresa foi embora, restaram as construções, um hotel de médio porte, imensas escavações repletas de água contaminada e uma cidade deixada às traças.
No final da década de 2000, outras duas empresas multinacionais retornaram à região, buscando ouro e outros minerais. Durante mais 20 anos extraíram tudo o que puderam, embora tenham melhorado a economia daqui. Mas mais uma vez foram embora... Restou novamente uma cidade fantasma.
Segunda, 11 de Maio
Hoje, depois do trabalho, olhei pra tv e ela ficou olhando pra mim. O reflexo distorcido do meu rosto ficou me encarando, enquanto eu olhava para a tela de vidro empoeirado. Há dias que não a ligo, não faço a menor questão. O mundo podia acabar lá fora que eu seria o último a saber.
É irônico, antes quando eu tinha tv paga, vivia acompanhando séries e documentários. Mas ando deprimido demais pra me sentir motivado com qualquer coisa... A tv aberta sempre foi um lixo em outros estados, aqui não deve ser muito diferente.
Sexta-feira, 15 de Maio
Há dois dias não tenho notícias da capital e das cidades próximas. Parece que as chuvas na região dificultaram ainda mais a comunicação e os transportes, do que de costume. Se quer saber, eu não ligo. Menos trabalho, mais trabalho, pra mim não faz diferença.
Pior do que as chuvas é a neblina matinal. Por estarmos em uma serra no meio da floresta, todas as manhãs a cidade é coberta por uma neblina densa e fria. É difícil enxergar mais do que um metro à sua frente, logo nas primeiras horas do amanhecer. Provavelmente este é o lugar mais “frio” do Amapá.
Segunda-feira, 18 de Maio
Parabéns para mim! Um mês perdido na floresta sem contato com o mundo! Que maravilha de vida! Vou pegar meu salário e torrar todo com bebidas e mulheres... Cheguei a pensar em ir para algum boteco na cidade.
Ou quem sabe eu deva dar um pulo no hotel, encher a cara de Blue Label e ir pra cama com alguma turista... Se houver alguma por aqui...
Terça-feira, 19 de Maio
Meu aniversário de um mês não podia ter sido melhor: o hotel estava fechado. O vigia me explicou que os donos foram embora do estado às pressas por causa da tal doença que tanto se fala na tv. Graças à minha recente alienação, não faço ideia do que seja. Provavelmente outro surto de malária ou dengue.
No boteco as coisas não foram mais animadoras. Um bêbado, completamente fora de si, agarrou um dos clientes e desferiu uma mordida profunda no pescoço dele. Provavelmente se tratava de uma rixa pessoal.
Me pergunto o que tinha naquela cachaça...
O dono do boteco, sr. Miranda, ligou para a polícia na mesma hora, mas os homens demoraram quase uma hora pra chegar. Enquanto isso o bêbado tentou atacar uma mulher que estava em um orelhão próximo. O segurança do bar desferiu uma forte pancada na cabeça dele, que desmaiou no mesmo instante.
A polícia levou o pau d'água em cana, ainda desmaiado. E dois clientes levaram a vítima ferida para o hospital. Eu não fiz nada. Sei que tinha autoridade (e o dever) de interferir, mas preferi ficar na minha.
Diabos, não posso cuidar dos outros o tempo todo!
Quarta-feira, 20 de Maio
Odeio cães de rua! Ontem de madrugada alguns vira-latas desgraçados reviraram o lixo da frente de casa e espalharam sujeira na calçada. Além de latirem durante toda a noite, brigaram entre si e acredito que um deles se machucou feio. De manhã havia uma mistura de sangue, nacos de carne apodrecida e lixo espalhados por toda a parte.
Por sinal, aonde diabos anda o serviço de coleta de lixo...?
Quinta-feira, 21 de Maio
Fui praticamente trabalhar sozinho hoje. Na parte da manhã, apenas três funcionários do quadro de onze apareceram. Provavelmente faltaram por causa da doença que anda deixando muita gente de cama.
Durante a tarde, minha secretária, dona Teresa, deu as caras no fórum. Estava pálida como um fantasma e com olheiras terríveis. Me disse estar ardendo em febre, então a mandei para casa. Dei licença de quatro dias. Como aqui nunca acontece nada, acho que posso me virar bem com poucos auxiliares.
Depois que cheguei em casa, só por curiosidade liguei para o hospital municipal para perguntar sobre o estado do indivíduo que foi mordido, mas me disseram que não houve nenhuma ocorrência durante aquela noite. Estranho...
Sexta-feira, 22 de Maio
Ratos, ratos e mais ratos! Vi pelo menos 30 desde que sai de casa hoje. Não me admira que algum tipo de doença esteja se propagando pelo estado, as condições precárias de saneamento do local deixam muito a desejar. Mesmo assim, a quantidade enorme de ratos que vi pelas ruas me deixou impressionado...
A propósito, ninguém foi trabalhar hoje no fórum. Nem mesmo o vigia que cuida do prédio apareceu. Tentei ligar para minha secretária, mas as linhas telefônicas estavam fora do ar, provavelmente por causa das chuvas.
A cidade estava deserta e coberta pela neblina. Parece mesmo que todo mundo partiu da cidade ou se enfurnou em casa, por causa do surto de dengue – ou seja lá qual for a doença de que todos falam. Na melhor das hipóteses talvez devido a algum feriado local.
Que inferno! Se ao menos dona Teresa tivesse me avisado, eu não teria nem levantado da cama.
Sábado, 23 de Maio
Laura não saiu da minha cabeça hoje... Jurei pra mim mesmo que não ia mais pensar nela e no maldito acidente, mas hoje foi impossível. A cada dia que passo me sinto cada vez mais morto, e viver neste isolamento não tem ajudado.
Tentei dar uma volta a pé para me distrair, mas o dia estava nublado e escuro, igual ao meu estado de espírito. Andei por algumas quadras vazias e voltei pra casa, precisando de mais vodka do que antes. Na volta passei em frente à algumas poucas casas abandonadas...
Mas que diabos está acontecendo nessa cidade? Um dos vizinhos esqueceu a porta da frente aberta e, pela quantidade de folhas e poeira na entrada, me pareceu que a casa foi abandonada às pressas, há alguns dias. Na verdade, eu não havia me dado conta disso, mas a cidade anda mortalmente silenciosa.
Domingo, 24 de Maio
Meu Deus!!! O que foi que eu fiz?
Hoje de manhã um homem moribundo e maltrapilho tentou me atacar enquanto eu varria a calçada de casa. Empurrei ele para trás e o derrubei no chão. Mas ele se levantou cambaleando e veio pra cima de mim novamente. Cristo, como ele fedia!
Gritei para que ele se afastasse e parasse com aquilo, mas a única resposta que houvi foi um gemido abafado de dor. Pensei que estivesse bêbado ou que fosse louco, mas a forma como ele se movia dava a entender que estava sentindo dores terríveis. Seus olhos estavam injetados e havia sangue coagulado em sua boca e nas unhas.
Quando ele veio para cima de novo, mandei que recuasse, mas ele insistiu. Então acertei ele na cabeça com toda minha força, usando o cabo da vassoura. Só que a pancada foi tão forte que afundou seu crânio...
Meu deus... Meu deus!!! Eu matei aquele homem!
Tentei ligar para a polícia e para a ambulância, mas nenhuma linha telefônica da cidade está com sinal. Levei o corpo para a emergência, mas o hospital municipal estava fechado.
Eu não podia fazer nada. Deus sabe que não fiz por querer. Provavelmente ele era um indigente, drogado e sem família... Vou enterrá-lo no quintal de casa. Ninguém vai ficar sabendo de nada...
Segunda-feira, 25 de Maio
Mortos! Estão todos mortos! Por isso a cidade está vazia!
Saí com o carro e dei uma volta rápida pela área do hotel, procurando alguém com quem conversar, mas o que encontrei vai assombrar meus pesadelos para sempre. No gramado da entrada e dentro do saguão haviam corpos, dezenas deles. Alguns estavam em estado avançado de decomposição, todos com sinal de mordidas e ferimentos horríveis. Tentei me convencer de que fosse um ataque de algum animal selvagem da região, mas eu estava muito, muito errado...
Perto do bar, na saída para a área da piscina, encontrei duas pessoas, ou algo que pareciam pessoas. Um deles estava vestido como policial, por isso chamei sua atenção. Mas ambos não responderam. Quando me viram, começaram a cambalear e se mover na minha direção. Notei que os dois estavam sujos de sangue e com várias feridas abertas espalhadas pelo corpo.
Demorei tempo demais pra perceber que estavam mortos... Mortos-vivos...
Por pouco não fui cercado, pois vários dos corpos no saguão se levantaram e vieram na minha direção. Corri até o carro e fui para a casa o mais rápido que pude. No trajeto me deparei com pelo menos mais duas dezenas de cadáveres ambulantes...
Desgraça...
Terça-feira, 26 de Maio
Hoje de madrugada ouvi gritos vindos da rua. Me soaram distantes, talvez vindo de umas duas ou três quadras daqui. Eram gritos masculinos de desespero, depois vieram os de dor. E então cessaram. O silêncio sepulcral da cidade faz com que eu possa ouvir quase tudo o que se passa lá fora.
Se Serra do Navio fosse uma cidade maior e mais populosa, certamente a infestação teria sido terrível e violenta. Mas graças ao seu porte tudo foi diferente... Por isso a situação demorou tanto para se denunciar.
Me pergunto sobre o que se passa no resto do estado, mas agora é tarde para ligar a tv... A energia elétrica foi cortada há dias...
Quarta-feira, 27 de Maio
Eles estão lá fora. Posso ouvi-los gemendo e se lamuriando. Acho que continuam sentindo dor, mas olhando com atenção é possível notar que não lhes resta nada de humanidade. São monstros apodrecidos comedores de carne, nada mais.
Essa era a doença ou o que quer que tenha sido a causa desse inferno. No meu descaso e falta de interesse por tudo, acabei me alienando e não me preparei com antecedência. Minha única arma é um velho revólver calibre .38, e meu suprimento de comida está quase no fim.
O carro está estacionado do outro lado da rua, mas já estou quase sem combustível. Minhas opções estão acabando...
Quinta-feira, 28 de Maio
Muitos! Eles são muitos! Não sei como me encontraram e nem de onde vieram, mas em pouco tempo uma multidão de mortos se juntou ao redor de casa. Pra piorar, a falta de muros no terreno me deixou sem uma retaguarda. Tive que reforçar a saída dos fundos da casa, que são corrediças e de blindex... Maldito estilo americano!
O cheiro de comida estragada na geladeira se mistura com o fedor apodrecido deles, e os gemidos incessantes misturados com o zumbir das moscas estão me dando nos nervos.
Agora é tudo uma questão de tempo...
Sexta-feira, 29 de Maio
Se a terra se tornou o verdadeiro inferno, não há lugar pior para onde eu possa ir, não é mesmo?
Laura, meu amor, espero que você compreenda a minha situação e minha decisão desesperada. Onde quer que você esteja, saiba que eu te amo e que estou indo de encontro à você.
Ainda tenho duas balas... Mas apenas uma vai ser o suficiente...