Sangue preto - capítulo 1
Era uma senzala escura e imunda. Cheirava a fezes e comida podre. No chão, negros acorrentados em trio, pelas mãos e pelos pés, num elo que nas pontas conectava-se ao chão. As correntes ficavam estiradas de forma que não possibilitassem nenhum movimento: o máximo que se podia era ficar sentado, ao custo dos movimentos dos outros dois colegas com quem se dividia os laços de aço. Eu estava cansado e faminto.
Não sei com precisão quantos dias durou aquela viagem. No navio, eu estava amarrado com cipó numa posição pela qual abraçava minhas canelas. Um pedaço de bambu enfiado entre meus braços e minhas pernas impedia qualquer tipo de mobilidade. Junto comigo por volta de cem negros no mesmo conforto, enfileirados, de forma a aproveitar da melhor forma possível o espaço do porão da embarcação. Éramos escravos arrancados de nossas famílias.
Até alguns dias antes daquela viagem, eu iria me casar. Não um tipo de casamento como os brancos conheciam na época. Eu havia lutado contra Dumbaô, como se pronunciaria o nome do meu melhor amigo nessa língua, e ele morrera em minhas mãos como um bravo oponente, num costume de minha tribo que talvez causasse estranheza a cultura branca. Mas a tradição de lutar por uma esposa não era milenar, e, sim, uma medida tomada por nosso líder, meu pai, para resolver o problema da falta de mulheres em nossa tribo, fêmeas essas que, uma a uma, estavam sendo tomadas pelo homem branco, ainda crianças, para servir de empregadas ou prostitutas em suas sociedades altamente desenvolvidas. Ficar com Umaiame havia me custado preciosas amizades e alguns túmulos em nosso cemitério.
Na noite do casamento a maior festa que minha tribo já viu se consumou. Como filho do líder da tribo, a mim se passaria o comando do meu povo. Mas eles sabiam que naquela noite estaríamos embriagados com nossas raízes alucinógenas e que não insultaríamos nossos deuses derramando sangue numa cerimônia sagrada. Eles, caçadores de escravos, tinham ainda fogo e pólvora.
Quando os tiros e explosões começaram, meu povo não sabia de que lado eles vinham. Campeando de moitas e ocultos pelas trevas da noite, os brancos acertavam de longe meus irmãos. Atordoados, corríamos sem direção definida. Organizada pelas táticas de guerra de meu pai, nossa tribo havia resistido a outros ataques tempos atrás, mas o barulho da pólvora ensurdecia até nossos pensamentos.
Segurando Umaiame, adentrei a selva, correndo desesperado, ignorando os ferimentos nas pernas causados pela vegetação e pelo terreno pedregoso. Era impossível diferenciar a respiração rápida de minha esposa dos soluços amedrontados. Mas o estrondo de um tiro ressoou dentro do meu peito. Ainda correndo, vasculhei meu corpo com minha mão livre. Eu parecia inteiro. Subitamente minha corrida foi interrompida por Umaiame, que ancorava nossa escapada. Ao olhar para trás, notei que ela tombava. Eu não deveria ter parado. Não deveria ter chorado por ela. Ela morria e ia para a companhia de Nanã, que protegeria sua alma e a plantaria para que ela pudesse renascer como uma fruta vermelha. Por isso minha tribo não chorava os mortos. Mas uma profunda tristeza me abateu. Tentei em vão despertar Umaiame. Não deveria ser assim. Ela não deveria morrer ali. O tempo por mim desperdiçado aproximou nossos perseguidores. Quando ouvi os passos, já era tarde. Meu mundo veio abaixo com uma coronhada na nuca.
O que se passou após minha captura não é digno de nota. Logo me dei conta de que os brancos haviam matado somente mulheres, crianças e doentes. Eles procuravam aqueles que pudessem trabalhar na sua terra. Sua nova terra.
Dentro do navio que me traria ao Novo Mundo, meu povo foi misturado com outros com um único ponto em comum: a cor. Negros de todas as tonalidades, crenças e idiomas dividiam espaço no porão. Tive sorte, se é que assim posso chamar, e fui um dos poucos que sobreviveu à alimentação precária, aos maus tratos e às doenças contraídas durante a viagem. No desembarque perdi o contato com meus conterrâneos e já não tinha certeza se ainda vivia alguém da minha tribo.
Era algo próximo ao ano de 1630, até onde me lembro. É difícil ter certeza, por que ainda não entendia o sistema de contagem de tempo branco. Eu tinha por volta de vinte e cinco anos. Fui levado junto com outros escravos até uma propriedade rural há alguns quilômetros do litoral daquilo que se chamaria Brasil. Era o engenho do senhor Antônio Maria Coelho, neto bastardo de Duarte Coelho Pereira, português que no século que havia passado fora donatário da capitania de Pernambuco. Estávamos no período áureo da cana-de-açúcar.
Fui jogado na senzala que me acolheria como lar e acorrentado nu a outros dois escravos. Logo descobri que os dois vinham de uma mesma tribo, que, acredito, deveria ser próxima da minha, já que conversavam em um dialeto muito parecido com o meu. Estavam já há alguns meses naquele lugar. O mais novo era um jovem forte que deveria ostentar uma idade próxima da minha. O outro, um velho com no mínimo sessenta anos, tinha uma barba branca como osso raspado e olhar que apontava uma experiência secular.
– Por que os ventos de Oyá te trouxeram nesse caminho, meu filho? – disse o velho lentamente, numa expressão cansada e usando velhas palavras do meu idioma.
– Os brancos atacaram covardemente minha tribo durante meu casamento. Mataram meu pai e minha esposa e incendiaram nossas casas. – respondi sem poder olhá-lo nos olhos, por conta da posição em que estávamos acorrentados.
– A opressão branca continua. O que eles querem? Toda a terra para eles? Todos os homens da outra cor a seu dispor? – discursava o mais novo em voz alta, como se quisesse atingir a todos os escravos na senzala – E quando iremos devolver essa opressão?
– Quando Ogum achar que é tempo. – retrucou o velho sábio num tom de voz tranqüilizante.
– Em Palmares o tempo chegou! E é pra lá que nossa gente deve ir! – respondeu o jovem, que foi seguido de uma gritaria de dentro da senzala.
Logo eu confirmaria que já há muito tempo a semente da revolta estava plantada naquele lugar.
Depois de um ano cuidando das plantações de cana, começava a me acostumar com meu novo modo de vida. Num dia trabalhava por volta de doze horas e com sorte me alimentava duas vezes. Já falava um português compreensível, mas com as particularidades criadas pelos negros. Não via mais do que a senzala e as plantações. No caminho entre esses dois pontos, contemplava de longe o casarão do meu senhor. Era a típica casa-grande dos coronéis da época, com uma estrutura pomposa e um alpendre que rodeava toda a propriedade. Tinha um amarelo morto como cor predominante e uma grande porta de madeira na frente, talhada com motivos religiosos. O senhor Antonio Maria tinha vários capatazes a seu dispor, que rodeavam a propriedade como seguranças pessoais da família.
Sobre os familiares do meu senhor, conhecia pouco. As poucas informações que tínhamos eram trazidas por quatro negras que cuidavam da casa-grande durante o dia. Antonio Maria era viúvo e tivera quatro filhos. O filho mais velho morrera em uma viagem a Portugal quando tinha apenas dez anos de idade, de doença desconhecida, que também matara a mãe, dona Mocinha de Albuquerque Coelho. O segundo filho era Jorge, jovem que ajudava o pai na administração do engenho e presença constante na senzala, onde vez ou outra raptava escravas ao cair do sol. Rita era a terceira filha, uma bela moça no auge de seus dezesseis anos. Não se sabia muito sobre o quarto filho, que, segundo as amas, vivia enclausurado num quarto por extremos cuidados que o pai tinha para com ele. Ao que parecia, era de intenção de Antonio Maria dar orientação religiosa aos três filhos, para que exercessem carreira dentro da Igreja, fato um tanto incomum na época, quando os grandes barões da cana-de-açúcar casavam seus filhos por interesses comerciais. As escravas que trabalhavam na casa diziam que após a morte da esposa e do filho, o senhor Antônio Maria agarrou-se veementemente às suas inclinações católicas.
A religião era algo realmente forte dentro do engenho. Fazia exatamente um ano que eu havia sido trazido à propriedade, quando Antonio Maria mandou batizar todos os negros do arraial. Mesmo sendo tal ato uma prática comum na colonização católica européia, a princípio o padre da capela local achou que aquilo seria uma heresia, por acreditar que os negros eram seres renunciados por Deus. Nada que uma pomposa doação para a paróquia não resolvesse. Um a um, todos os negros foram recebidos pelo padre para a efusão. Um adicional dessa celebração seria ganharmos novos nomes, inspirados nos mártires da Igreja Católica.
– Como é teu nome, escravo? – retrucou o padre, me olhando seriamente.
– I Cudjobá Kamuká. – respondi prontamente usando automaticamente forte sotaque do meu idioma.
– Santo Pai! Parece uma sinfonia proferida por Satanás! De agora em diante te chamarás Sebastião! – bradou o santo padre, jogando violentamente uma caneca de água sobre minha cabeça.
Assim eu ganhava um novo nome, que por decreto de nosso senhor deveria ser utilizado imediatamente. Nosso temor pelos castigos físicos nos fez rapidamente acatar nossas novas identificações.
Ganhar um novo nome teve suas vantagens. Nossa conversão em católicos fazia nosso senhor, vez ou outra, nos olhar com mais benevolência. Não que isso significasse menores punições. O peso do chicote ainda era o mesmo para aqueles que saíssem da linha. O maior benefício talvez tenha sido nos proporcionar certos momentos de lazer durante feriados religiosos. Em “dias de santo”, nossa jornada terminava mais cedo, e apesar de ainda aprisionados na senzala, éramos liberados das correntes. Recebíamos aguardente e arroz cozido, ingredientes para uma típica comemoração africana.
Em uma dessas festas entrei em contato com uma curiosa dança negra. Há quem dizia que era uma luta, mas não exatamente uma arte marcial sofisticada, como eu viria a conhecer tempos depois nos meus estudos sobre a cultura oriental. Eram passos rápidos, executados no meio de uma roda animada com palmas e cânticos, que misturavam palavras em português e ladainhas africanas. Talvez fosse erro mesmo chamar de dança o que acontecia no centro daquela roda. Os escravos lançavam chutes afiados uns nos outros, dois por vez. Na maioria das vezes os chutes eram esquivados pelo oponente, porém vez ou outra eles acertavam-se. Mas isso não era motivo de desavença entre aqueles dançarinos. No fim de sua vez, eles abraçavam-se rindo e dividiam um copo de aguardente, dando espaço a mais dois oponentes. Alguns séculos depois, tudo isso ganharia algum padrão e viria a ser chamada de “capoeira”. Apesar de toda essa balbúrdia, os negros eram espertos o suficiente para evitar que isso chamasse a atenção do nosso senhor. Uma escrava fazia vigília na porta da senzala para avisar de qualquer aproximação suspeita. Sabíamos que a gritaria em “línguas pagãs” poderia perturbar a imaginação fértil dos católicos, na época à sombra da Inquisição. Em pouco tempo eu também já era um exímio lutador daquele estilo, o que logo me daria certos privilégios.
Certa época, o engenho começou a passar por alguns furtos. Vários escravos foram castigados, até que se descobrisse que os assaltos eram obras de índios da região. Isso irritou bastante nosso senhor, que na fundação do seu engenho fizera vários acordos com indígenas para que não tivesse tais incômodos.
– Querem guerra, que se engasguem com guerra! – bradava Antonio Maria prometendo retaliação.
Numa noite, Antonio Maria chamou Raimundo, nome do velho sábio que eu havia conhecido na minha chegada à senzala, e o imbuiu da tarefa de escolher os dez escravos mais aptos para um confronto com os larápios. Eu e Francisco, o jovem que dividiu as correntes comigo e Raimundo, estávamos entre os escolhidos. Na madrugada seguinte invadiríamos a tribo para tomar as devidas satisfações.
Como num costume da tribo de meus colegas de guerra, iniciou-se na senzala naquela noite um ritual de preparação para o combate do dia seguinte. Os escravos começaram a se organizar numa roda no meio da senzala. A percussão da capoeira estava lá, mas muito mais compassada. No centro, Raimundo, sentado num tamborete de madeira, fumando um cachimbo de cheiro forte. Subitamente a percussão começou a ganhar velocidade, e as batidas ficaram mais intensas, quase ditando o ritmo do coração dos presentes. As mulheres mais velhas cantavam em voz alta, algumas chorando, versos que eu não conseguia traduzir. Elas se dirigiam a Raimundo. Nunca havia visto nada parecido na minha tribo. Tínhamos nossos costumes que evocavam o sobrenatural, mas nada semelhante. O clima ia ficando denso, e um aperto inexplicável tomava conta do meu peito. Estava com medo. Não demorou a que o velho Raimundo tremesse dos pés a cabeça. Seus olhos se reviravam e dos cantos da sua boca uma espuma esbranquiçada brotava. Francisco segurava seus ombros, para que o velho não se desequilibrasse. Alguns minutos depois, Raimundo estava imóvel.
– Unêgoquissiprepariproquevem... – Raimundo falava rápido, de um jeito quase incompreensível, de olhos revirados como se estivesse possuído – vaibatê nu brancu, vai? U brancu é raçarruim.... mas dá de comer... Baiani vailánumvai? – e caía numa risada amedrontadora.
– Eu to aqui, meu Preto Velho, pra te escutar – disse Francisco, ao ver seu nome africano sendo pronunciado em meio à tempestade de palavras.
– Baiani vaichegarláevaifazer... numvai Baiani? Agora sioutronumvai... Baiani deixa... deixa Baiani...
– Baiani deixa, Preto Velho... – não sei se Francisco estava entendendo o que o incorporado Raimundo dizia, mas ele concordava serenamente, já de joelhos a sua frente.
– Tem mais guerrêro aqui... Cudjobá taqui? – disse Raimundo, balançando a cabeça de um lado a outro como se estivesse buscando alguma coisa.
Raimundo havia proferido meu nome africano. No início não sabia se respondia aquele chamado. Ainda tentava digerir aquela situação, pensando se isso não ofendia minhas próprias crenças. Francisco já havia me falado, certa vez, sobre esse tipo de possessão por espíritos antigos, sobre as orientações que eles recebiam deles. Talvez o homem branco ignorasse o que não conhecia. Negros e índios sempre foram tomados por ignorantes dentro de suas crenças, crenças essas que explicavam coisas que os brancos certamente não entendem até hoje. Mesmo depois de muitos estudos, vejo que nós chegamos bem mais perto de Deus com nossa cultura de ignorantes do que o branco, que preferiu ser temente a ele e prostrar-se na sua “bendita ignorância”. Não seria, então, o branco o ignorante?
– Cudjobá numvem? Tutemtudo só num tem medo, Cudjobá... vemperto.
Acabei por me achegar em Raimundo, que, ao notar minha aproximação, começou novamente a ter espasmos, ainda mais fortes que os do início da sessão.
– Cudjobá vailonge... Nummorremascorrequemorrertuquer... Branquin mal! Branquin mal! – Raimundo começava a gritar, enquanto Francisco e duas negras o seguravam. O velho começou a repetir a mesma palavra, fácil de distinguir – Sanguisanguisanguisanguisanguisangui...
Se antes aquilo tudo já havia mexido com meus brios, agora eu suava frio e respirava com dificuldade. Eu tinha ouvido “sangue”? Não entendia o que ele queria dizer com aquilo. Foi quando Raimundo caiu desmaiado aos meus pés. Enquanto tentava acordar o ancião, Francisco me olhou com uma expressão de desconfiança.
Não preguei os olhos por um minuto naquela noite. Algo estava terrivelmente errado. Rezei para todas as minhas divindades até adormecer. Meu sono foi povoado por uma série de pesadelos. Via Umaiame correndo, fugindo de um grande lobo. Ela chorava e gritava meu nome. De algum lugar eu tentava estirar meus braços para alcançá-la, mas não conseguia, por que, enquanto ela corria do lobo, ela também acabava por se afastar de mim mesmo. O sonho cortava subitamente para a senzala, onde Raimundo chorava, gritando possuído. Seus olhos vertiam um sangue denso e ele me perguntava se eu queria morrer. Acordei com o barulho dos outros escravos preparando-se para a jornada.
Antes do nascer do sol, Antônio Maria, dez negros e cinco capatazes já estavam embrenhados na mata. A tribo que visitaríamos era a dos fulniôs. Depois de uma caminhada de mais de uma hora, estávamos em território indígena. De longe avistamos às ocas, feitas de palha pintada de urucum rubro e jenipapo negro, num posicionamento que lembrava bastante a minha tribo. A área gritava silêncio, e nenhum movimento nativo parecia próximo. Concluímos que ainda dormiam. A um gesto de Antonio Maria, um dos capatazes avançou rapidamente sobre as ocas, derramando um líquido sobre elas. Logo, ele foi acompanhado pelos outros capatazes. Os outros negros acompanharam o movimento, e começaram a encharcar as ocas com o que seria algum tipo de combustível. Em princípio, fiquei parado. Não queria fazer aquilo. Era como eu tivera perdido tudo. Via ali a minha própria aldeia sendo incendiada. Fiquei apenas observando, quando um capataz roçou uma faca nas minhas costas:
– Vamo, nêgo, queimar tudo.
Em alguns minutos toda a aldeia estava banhada em combustível. Antonio Maria ordenou então a um dos capatazes que ateasse fogo nas ocas. O comandado logo o fez, mas quando a primeira oca iniciou a queimada, o capataz foi atingido com uma flecha no meio do peito. O tiro vinha do matagal, do lado posterior ao da nossa entrada. Da mesma direção, uma enxurrada de índios brotou de dentro da selva numa gritaria infernal.
Armados com arcos e machados de pedra primitivos, os índios corriam em nossa direção. Os capatazes tinham facas e nós tínhamos pedaços de pau nas mãos. Foi um combate sanguinolento no meio do incêndio que tomava a aldeia, e, apesar de estarmos em desvantagem numérica, nós éramos mais fortes e mais habilidosos. Eu derrubava facilmente dois índios com uma golpe só. Aquilo me fazia sentir mal. Estava lutando por minha vida, mas ao mesmo tempo defendendo o opressor. No meio de tudo, senti a falta de Francisco e alguns dos negros que estavam conosco. Cheguei a cogitar que haviam escapado no meio da confusão. Não demorou que restassem poucos índios de pé. Muitos deles haviam se embrenhado em fuga no matagal. Francisco vinha de dentro da relva, alegando que havia perseguido um grupo, mas que os fugitivos haviam se dispersado próximo a um açude.
De longe, Antonio Maria apenas observava protegido por um capataz à sua frente e uma grande árvore nas suas costas. Mas de cima da árvore, um indígena preparava-se para um bote sobre meu senhor. Nunca entendi por que me importei com aquilo e corri em direção a Antônio Maria. O índio pulou e agarrou-se ao senhorio. Antes que o oponente pudesse enfiar uma machadinha na garganta de Antônio Maria, pulei sobre ele enfiando o pedaço de pau que tinha em minhas mãos no meio do seu peito. O oponente caiu desfalecido, levando também o senhor do engenho ao chão. Antonio Maria respirava rápido, recuperando-se do susto. Jogou o corpo do índio ensangüentado de lado e deu a mão para que eu pudesse levantá-lo. Ele olhou fixo em meus olhos enquanto o erguia para depois virar-se para o capataz que deveria tê-lo protegido.
– Inútil, quase que venho a óbito! – disse enquanto se limpava, para depois se voltar a mim novamente – Quanto a tu, que a graça divina te proteja no céu, por que em terra, a partir de agora, és um protegido de Antônio Maria.
Um tipo esquisito de satisfação tomou conta de mim naquele momento. Francisco me olhava mais uma vez desconfiado.
O confronto havia terminado. Enquanto o sol nascia, caminhávamos para o engenho. Ao chegarmos, os negros foram encaminhados para a moenda, para seus trabalhos rotineiros, com exceção de mim. Antonio Maria chamara-me até a sala da casa-grande. Quando entrei, dei de cara com a grandiosidade que era ser um senhor de engenho na época. A pomposa sala de estar do meu senhor tinha um piso de madeira lustrado, que era quase como andar sobre espelhos. Móveis grandiosos e um sofá acolchoado com tecido em veludo vermelho escuro impunham-se no centro. Enfeites religiosos é que não faltavam: eram crucifixos e imagens para todos os gostos, de ouro, prata, mármore, pedra e madeira. Uma escrava lavava os pés de Antonio Maria, que estava sentado ao sofá conversando com um capataz.
– És um valoroso soldado! – disse quando notou minha aproximação – E é de guerreiros dessa maestria que preciso para que protejam minha prole. De agora em diante serás segurança de minhas propriedades. Que achas?
– O que meu senhor quiser – não poderia ser outra minha resposta.
Meu serviço na casa-grande era claro: vigiar os pertences de Antônio Maria e ajudar os capatazes a capturar escravos fugitivos. Eu saia do posto de escravo, inclusive não dormindo mais na senzala, e era elevado a capataz. Minha nova casa era junto dos meus colegas de trabalho. Mas achar que aquilo traria algum conforto à minha vida era pura ilusão. Dividia quarto com o capataz que fracassara na defesa do senhor de engenho, que me olhava com desdém sempre que nos cruzávamos. Os outros capatazes não ficavam para trás e não concordavam com um negro entre mamelucos. Como se não bastasse isso, meus ex-companheiros de senzala me condenavam por eu fazer parte das caçadas aos negros fugitivos.
Restava a mim uma vida solitária, resignada aos serviços, principalmente, no interior da casa-grande. Em alguns meses já estava a par das rotinas da casa e dos familiares do meu senhor. Jorge, por exemplo, trabalhava duro com o pai no engenho. Era um garoto com os hormônios à flor da pele, como se costuma dizer, e não aceitava que teria que se tornar padre, como queria Antônio Maria. Entraria no seminário em alguns dias, o que vez ou outra o revoltava e provocava grandes discussões à mesa. Já Rita parecia aceitar melhor a vida religiosa. Tinha uma beleza provocadora, que sabia usar despudoradamente. Freqüentemente se oferecia aos capatazes, que, mesmo tentados, sabiam que poderiam estar assinando seu contrato de morte e evitavam maiores intimidades. Mesmo dentro da casa-grande, pouco sabia a respeito do filho mais novo. As histórias da senzala realmente não eram exageradas. Lúcio, como era chamado, vivia enclausurado no seu quarto. Por motivo que eu desconhecia, ele não comia a mesa com o pai e os irmãos. Sua face era um mistério, e poucas vezes eu vira a porta do seu cômodo se abrir, exceto para a entrada de seu pai ou um de seus irmãos, que se revezavam nos seus cuidados. Quaisquer outras pessoas não tinham autorização para entrar ali. Tanto em seu quarto como nos demais da casa, imagens, crucifixos e todo tipo de acessório religioso preenchiam as portas e as paredes. Ficava imaginando se Antônio Maria não teria atribuído à religião, ou a falta dela, a morte de sua esposa e de seu primogênito. Sobre essa história, inclusive, alguns boatos corriam na casa.
O primeiro a se dizer era que esse tema era proibido na casa-grande. A última escrava que havia apenas pronunciado o nome de Lúcio à mesa havia sido chicoteada no tronco durante toda uma noite. Em rodas de conversa na cozinha, escutava as escravas sussurrando a história da família. Há poucos meses o senhor de engenho e seus familiares haviam chegado de uma viagem a Portugal que havia durado mais de dez anos. Durante esse tempo, a família vivera em Lisboa, e Antônio Maria apenas esporadicamente viajava ao Brasil, para se assegurar de que tudo estava em ordem em seu engenho.
Seria uma viagem a passeio que duraria alguns meses, não fosse uma repentina doença rara que acometeria Pedro, filho mais velho de Antônio Maria, na época ainda uma criança. Tendo consciência de que na Europa disporia de melhores recursos médicos, a família inteira decidiu ficar para que Pedro se tratasse. As escravas contam que durante a doença de Pedro, sua mãe, Dona Mocinha, descobrira que estava grávida. Pedro morreria algum tempo depois, próximo da data em que seu irmão Lúcio nasceria. Ao que parece Dona Mocinha teria morrido durante o parto, em decorrência da mesma doença de Pedro e do desgosto de perder seu primeiro filho, o que teria mexido profundamente com Antônio Maria. Mesmo com as duas dolorosas mortes, o senhor de engenho e os três filhos restantes continuaram no Velho Continente até Lúcio completar dez anos.
A volta definitiva de Antônio Maria ao Brasil também rendia histórias, no mínimo, exóticas. Lúcio havia sido trazido até o engenho dentro de uma de carruagem sem janelas, e ninguém viu sua transposição para o quarto em que estava. Às vezes me questionava se o filho mais novo do senhor do engenho realmente existia, ou ainda se o meu senhor apenas havia depositado a culpa das duas perdas que tivera no filho caçula, aprisionando-o como castigo. Isso eu saberia em breve.
Certa madrugada, a lua cheia imponente ilustrava o céu. Eu fazia minha ronda dentro da casa-grande como vigia. Como todas as outras vezes, flagrei Jorge abandonando seu quarto para o tradicional assédio às negras na senzala. O sono de Rita também era inquieto. Vestida apenas de uma camisola longa quase transparente com detalhes bordados, a filha do senhor começava a me provocar da porta do quarto de Lúcio. Suas madeixas claras caíam sobre seus dois pequenos e curvilíneos seios, dos quais vazavam as pontas escuras dos seus mamilos pela roupa de dormir. Entediada com a escala no quarto do irmão mais novo, ela entrava e saia do cômodo repetitivamente. Meus brios masculinos começavam a me perturbar. Desde a captura na África eu estava privado do contato com mulheres. Em verdade, nenhuma mulher havia me interessado como Umaiame havia feito. Com Rita não era diferente, pois a sua cor branca – afinal toda aquela opressão também nos fazia um tanto preconceituosos – e seu jeito oferecido não perfilavam meu tipo de esposa àquela época.
– Sebastião, tem uma ratazana no meu quarto... Tira essa nojenta daqui! – ordenava a senhorinha.
Nada eu podia fazer mais a não ser obedecê-la. Eu sabia que o rato ali era eu, entrando direto na ratoeira do destino.
Parado dentro do quarto, assisti Rita se despindo. Mesmo com apenas dezesseis anos, seu corpo estava quase completamente formado. Podia talvez alcançar os dois extremos de sua cintura com uma mão, de tão fina que era sua silhueta. Seus movimentos eram lentos e sedutores. Minha respiração acelerou quando ela se aproximou de mim, desatando o cordão que segurava minha calça.
– Na próxima semana vou-me embora do engenho com meu irmão. Não verei um só macho durante longos anos. Não é um desperdício? – Rita tocava-se – Também é um desperdício um negro como tu. – disse a moça dando uma volta em torno de mim, que continuava paralisado, evitando o confronto com os olhos da menina – Disseram que tu eras príncipe na África. Agora entendo toda a tua majestade... – foram as últimas palavras de Rita, antes que eu a jogasse na cama e caísse por cima dela.
Não podia mais suportar aquele joguete da senhorinha. A abstinência a que eu havia me prostrado fez com que eu desse a ela o mais selvagem sexo. Rita não era virgem. Na certa, algum capataz mais corajoso do que eu já tinha se aventurado nas curvas do seu corpo. Ou mais de um. Ela sem dúvida sabia o que estava fazendo ali.
Entretido nos braços de Rita, não percebi que, subitamente, seu irmão mais velho invadia o quarto. Descamisado e ofegante, Jorge tinha em seus braços uma negra seminua desacordada e coberta de sangue.
– Rita, o que fazes que não vigias Lúcio... – Jorge subitamente interrompeu sua fala ao me ver por cima de sua irmã – Nêgo vagabundo, como ousa... – Jorge soltou a escrava, que desabou no chão, e me arrancou da cama, me jogando no canto do quarto.
Rita parecia assustada, mas apenas observou, sem protestar em minha defesa. Lúcio agarrou a irmã pelo braço e puxou-a para fora do quarto.
– Logo papai saberá como castigá-la por tamanho pecado, mas por agora tu me ajudas a conter Lúcio... Ele está pior do que o normal. Quanto a tu, negro – voltou-se para mim – terás também tua punição.
Ao proferir essas últimas palavras, Lúcio bateu a porta do quarto de Rita com força, e o barulho que se ouviu a seguir pareceu ser da chave na fechadura. Eu estava trancafiado. Corri para a janela, que, além da porta, era a única abertura do quarto. Estava no andar de cima do casarão de Antônio Maria a, pelo menos, cinco metros do chão. De lá, no entanto, me chamou a atenção a grande lua cheia que despontava naquela noite, um prefácio do que estava por vir. Pude ver ainda mais ao olhar para o térreo.
Espreitando sob as sombras, reconheci um vulto, entre vários outros, armado com um pedaço de bambu. Do lado de fora, o negro Francisco preparava a revolta que há tempos tramara. Depois que comecei a morar com os capatazes, havia perdido o contato com a senzala, mas sabia que o motim logo se realizaria. Além dos escravos, vi pessoas não tão fortes e de peles menos escuras. Eram índios. Francisco provavelmente havia feito uma aliança com os nativos, que buscavam vingança. Um massacre tramado para um dia de lua cheia.
Senti meu sangue ferver. Eu precisava fazer alguma coisa. Procuraria avisar ao meu senhor? Juntava-me aos negros lutando por minha liberdade? Prostrava-me no quarto e esperava os eventos desencadearem-se? Na certa não seria esta última opção, afinal eu nunca fora de deixar o destino transcorrer a revelia sem antes tentar forçar um desvio.
Apesar de todos os maus tratos a que minha raça era submetida na senzala, meu pai sempre me ensinou sobre benevolência, sobre como evitar o derramamento de sangue. A violência podia ser o modo branco de resolver os problemas, mas certamente não era o nosso. Pensei então numa solução razoável. Prepararia a fuga da família Coelho e alertaria os capatazes antes do início da pendenga, afinal os índios já haviam libertado os negros, prêmio mais que justo aos meus irmãos de cor.
Com um guarda-chuva encontrado no quarto de Rita, forcei uma brecha na porta até arrombá-la. Eu tinha de ser rápido. Francisco devia estar posicionando seus asseclas para executar um ataque antes do nascer do sol, no momento em que o sono dos capatazes e do meu senhor fosse mais intenso.
Eu precisava avisar a Jorge sobre o ataque e incentivá-lo a fugir. A porta do quarto de Lúcio estava entreaberta. Ao invadir aquele quarto, nunca antes adentrado por mim, tive uma série de sensações. O quarto era escuro e tinha um fedor de carne podre misturado com algum perfume floral, que provavelmente foi utilizado para amenizar o cheiro insuportável que ali despontava. Nas paredes, algumas fotos da família, quase soterradas com poeira. Numa estante, pilhas de livros velhos. A única janela do quarto estava lacrada com talas de madeira. No meio, à luz de um candelabro sujo e enferrujado, estavam Jorge e Rita. Só depois pude ver, mais a frente deles, Lúcio. Era apenas um garoto, mas tinha um aspecto animalesco. Estava acorrentado pelo pescoço numa cruz enorme de madeira, completamente inquieto, como um animal raivoso querendo se libertar de sua coleira. Usava uma enorme bata branca suja de sangue e aos seus pés jazia uma escrava com ferimentos nos pulsos e no coração. Tinha uma face demoníaca e olhos ardentes. Seus dentes eram afiados como os de um lobo selvagem.
Naquele momento, algumas coisas ficavam mais claras para mim. Eram justamente nas luas cheias que Jorge raptava escravas na senzala. Embriagadas por Jorge com vinho, elas não se recordavam do que havia acontecido quando retornavam a senzala. Algumas negras nem mesmo retornavam, mas o que se dizia na casa era que tinham sido alforriadas ou mesmo fugido durante a noite. Pelo visto, não era bem assim.
– Negro maldito! Quem deu permissão para adentrar o sagrado quarto de nosso irmão? – gritou Jorge.
– Eu... Eu... Precisava avisar ao senhorzinho... Um ataque... – ainda estava pasmo com aquela cena e mal podia escolher as palavras.
– Eu vou é te dar um jeito, negro, para aprender a não te intrometer em assuntos da família Coelho! – disse Jorge, puxando uma espátula de um canto escuro do quarto.
Antes que Jorge se aproximasse de mim, a porta do quarto de Lúcio foi arregaçada, mostrando Francisco com um facão na mão e o colarinho do ainda sonolento Antônio Maria na outra.
– Calminha, sinhozinho, que hoje num é dia de sangue nêgo caí no chão. – bradou Francisco, fechando a porta do quarto.
Um minuto de silêncio se fez no quarto, ouvindo-se apenas, de instante em instante, os grunhidos de Lúcio.
– Vamo, Tião... Passa pro lado... – enquanto falava comigo, Francisco se deu conta de Lúcio e da negra ensangüentada no chão – Que criatura é essa? Esse é o “fio” do senhor de engenho? “Matano” nossa gente... Esse “disgraçado” é o “primero” que vai morrer aqui!
– Não! Deixas o menino em paz! Já não vês o quanto ele sofre? – implorou Antônio Maria – Teus assuntos aqui são comigo! Não sou eu teu opressor?
Francisco gargalhou. Ele se deliciava com aquele momento. Ainda dentro do quarto de Lúcio, pela porta aberta, eu via a correria dentro da casa de Antônio Maria. Os negros e os índios provavelmente já haviam tomado toda a casa.
– “Vamo”, sinhô, “vamo”... Vê de pertinho teu “fio-bicho”... – ainda dominando Antônio Maria, Francisco se aproximava de Lúcio, que tinha parado de grunhir.
Jorge e Rita se afastaram do seu irmão caçula, posicionando-se atrás da enorme cruz que o prendia. Estranhamente, Lúcio começava a ganhar um aspecto mais humano. De cabeça baixa, o garoto ofegava cada vez mais devagar, até estabilizar sua respiração.
– Isso, negro, vem aqui me matar e me livrar dessa maldição. – Lúcio falava agora civilizadamente. Na sua expressão, um sorriso curto.
– Criatura do mal... – Francisco levantava o facão e preparava-se para perfurar Lúcio – Chega aqui teu fim!
Antes que o facão encontrasse o menino, Jorge, usando a espátula que havia pegado para me atacar, desferiu um golpe certeiro contra a base da corrente que prendia Lúcio a cruz. Instintivamente, ao ouvir o estrondo que o libertava, o garoto, já retransformado em monstro, pulou sobre Francisco rasgando sua garganta com as unhas numa força surpreendente. Mal o negro caiu no chão, Lúcio avançou sobre seu peito, como um animal esfomeado. Francisco gritou e tentou afastar-se dos dentes de Lúcio, sem sucesso. O negro se debateu por alguns segundos, até perder sua consciência. Eu ainda estava estupefato com aquilo tudo e, quando pensei em afastar o garoto de Francisco, Jorge pulou a minha frente com a espátula, fazendo sinal para que eu não me movesse. Antônio Maria, Jorge e Rita preparavam-se para abandonar o quarto, quando Lúcio se voltou para eles.
– Não, pai, nem pense em sair no momento alto da festa...
– Por favor, filho, as coisas podem ser diferentes agora... – implorava Antônio Maria.
– Mais de dez anos estive preso! Esperas que eu aceite suas apologias assim?
Eu não sabia se tinha ouvido bem. Lúcio se disse preso a mais de dez anos? Mal tive tempo para refletir sobre aquilo, quando o menino continuou:
– Nunca tive tanta fome na minha vida... E hoje tenho tanto alimento no meu quarto...
Lúcio caminhava lentamente em direção ao pai. Espantava-me sua mudança de comportamento. Aquele, que antes era uma espécie de selvagem, se livrava das vestes sujas e arrumava o cabelo cuidadosamente com as mãos. Jorge ainda apontava a espátula para mim. Nesse momento, um cheiro forte de fumaça invadiu o quarto. A casa estava sendo queimada.
– Huuum... Acho que teremos carne mal passada para o café da manhã de hoje, papai – a eloqüência de Lúcio ao pronunciar cada palavra me espantava. O garoto falava como um adulto. Que espécie de demônio havia se apoderado daquele corpo? Naquele momento ouvimos pancadas na porta seguidas por gritos.
– Vâmo, Francisco! A casa “tá” quase toda queimada...
– Ainda “taí”, Francisco?
Eram outros invasores da casa, que na certa deram por falta do escravo líder. Dois negros e um índio forçaram a porta para entrar. Não demorou que a maçaneta fosse quebrada. Na primeira brecha da porta, Lúcio pulou com a boca no pescoço do índio e com a mão no pescoço de um dos negros. Sua força, tanto com a boca quanto a mão, era descomunal, quase destroçando os pescoços dos dois. O outro negro espantou-se com a cena e partiu em disparada, gritando coisas como “Satanás” e “coisa ruim”.
Lúcio saiu de cima dos corpos e olhou novamente para dentro do quarto. Em meio à confusão na porta, Jorge tentava, com a espátula, arrombar a janela no fundo do quarto, que antes estava vedada com madeira e pregos. Mal consegui enxergar, quando o garoto correu numa velocidade incrível para cima do irmão, agarrando seus ombros com as duas mãos. O primogênito de Antonio Maria não teve tempo nem de perceber o golpe do irmão mais novo arrancando carne de suas costas violentamente. O senhor do engenho e sua filha pularam sobre Lúcio, que se soltou de Jorge e com suas garras marcou o rosto de Antonio Maria e rasgou um dos seios de Rita. Os dois caíram desmaiados no chão, juntando-se ao corpo agonizante de Jorge.
– Ao sangue do pai retorna o sangue dos filhos... – riu-se sozinho Lúcio.
Do outro lado do quarto, recuperando-me psicologicamente de toda aquela chacina, percebi que não podia fazer nada mais pelo meu senhor. Olhei para a saída do quarto, e corri com todo o vigor que ainda tinha, com a esperança de encontrar vivo algum jagunço na casa-grande. Quando trespassei a porta, senti um alívio profundo, como se tivesse saído do próprio inferno na Terra. Os corredores da casa estavam em chamas, tive dificuldade para descer as escadas e chegar à sala, quando notei que a entrada principal estava interrompida por móveis queimados. Vislumbrei uma janela. Porém, antes que a alcançasse, uma mão pequena puxou meu braço com uma incrível força.
– Deixando a festa antes do final, negro? – Lúcio me segurava com força.
Tentei, em vão, me livrar do braço do garoto, e, mesmo com toda a minha força física, alguma força sobrenatural tornava aquele garoto mais forte que eu.
Lúcio me jogou numa parede da sala, onde se encontrava um enorme retrato pintado de Antônio Maria. A moldura do quadro feriu minhas costas. Caí quase de joelhos no chão. O garoto se aproximou.
– Alguém tem que contar sobre o legado da família Coelho... – voltou-se seriamente para mim – Negro, acredite, tu tiraste a grande sorte e sobreviverás – antes que Lúcio terminasse de falar, caí desmaiado com o rosto sobre o chão, por efeito de uma dor lancinante.
Sentia uma pontada nas minhas costas. Antes de apagar por completo, verifiquei com uma das mãos que um pedaço da moldura havia se fincado acima da minha cintura. Eu sangrava muito. Minha visão embaçava, e depois de notar Lúcio aproximando-se, caí num sono profundo. Sonhei que Umaiame chorava sobre um cadáver. Aproximei-me dela e disse que ficaríamos juntos. Ela não olhava para mim, não me notava. Quando vi o corpo pelo qual ela chorava, percebi que se tratava de mim mesmo. Eu continuava gritando que agora iria para perto dela, que estaríamos juntos no jardim da morte, mas ela só chorava. Quando consegui ver sua face, observei que, como no sonho com Raimundo, seus olhos derramavam sangue. Naquele momento, uma dor enorme tomou conta do meu peito. Senti-me sugado. Mais dor. Sede. Muita sede. Uma luz forte. Uma intensa escuridão. Dor. Fome. Muita fome.
– Eu era só um garoto de dez anos quando viajei à Europa com meus pais – em meio aos delírios, ouvi a voz de Lúcio conversando serenamente comigo – minha mãe era uma das mulheres mais lindas que já existiram e meu pai um austero rico senhor. Quando chegamos a Lisboa, nossa família chamava a atenção dos burgueses europeus. Eu me chamava Pedro. Nunca gostei desse nome. Era o primogênito de Antônio Maria, que na época gozava de uma das maiores plantações de cana do império. Seria tudo meu, se não fosse aquela criatura de branco. Aquela linda criatura de branco. A lua estava cheia quando ela sussurrou no meu ouvido, na saída do teatro. Segurando as mãos dos meus pais, eu disse que ela havia falado comigo. Eles riram, falaram algo sobre um companheiro imaginário. Estávamos no restaurante mais rico da cidade. Meus irmãos mais novos, Jorge e Rita, dormiam em casa. Era quase meia noite quando saí do restaurante com outra criança. Eu disse aos meus pais que ia até a rua brincar, mas na verdade estava sendo chamado por aquela bela dama.
Estava tão grogue, que detalhes como Lúcio dizer que se chamara Pedro e que era o filho mais velho de Antônio Maria não me chamaram atenção. Eu começava a abrir os olhos. Na minha frente estava Lúcio, no meio das chamas da casa-grande, segurando em uma mão a cabeça decepada de Antônio Maria.
– Aquela dama me visitou algumas noites. A cada visita, eu mudava profundamente. A fome aumentava. A primeira morte que fiz foi a de Sansão, o cachorro que criávamos. Quando o vi, vivo na minha frente, pude sentir o calor de seu corpo. Meus pais achavam que um animal selvagem o havia atacado – Lúcio esboçou um breve sorriso – Eu não conseguia me manter acordado à luz do dia, evitava qualquer tipo de luz, por que ela feria meus olhos. Quando meu pai tentou me forçar a sair do quarto numa manhã, eu o agredi. Ele quis revidar, mas minha mãe não deixou. Naquela noite, ela dormiu no meu quarto para me proteger dele. Serenamente repousando ao meu lado, senti cada pulsação dela. Suas veias eram estradas por onde corriam luzes coloridas, iluminando seu corpo branco. Eu sentia muito frio, e apenas seu corpo poderia me aquecer. Eu queria estar dentro dela novamente. Eu queria o seu coração. – Lúcio interrompeu-se bruscamente – Foi a minha segunda morte. – no meio daquela face demoníaca, vi um brilho de tristeza em seus olhos – Meu pai me condenou. Meus irmãos eram tão novos que não entenderam o que havia acontecido. Foram dez anos em Portugal, sendo analisado por médicos, cientistas e religiosos de todas as estirpes. Vivia acorrentado. Trancafiado. Era alimentado com sangue de animais de rua. Até hoje não sei por que meu pai nunca me abandonou – Lúcio mexia de um lado a outro a cabeça do seu pai, que tinha os olhos terrivelmente virados – talvez por que se lembrasse de como minha mãe tentou me proteger e da vida que ela deu por mim. Voltamos a casa-grande. Meu pai acobertou os fatos, fantasiando sobre a morte precoce de seu herdeiro e sua esposa e o nascimento de um filho caçula que ele nunca teve. De que outra forma ele explicaria que seu filho mais velho tinha vinte anos, mas possuía o corpo de uma criança? Nessa terra permaneci privado da liberdade. Tive como companhia apenas velhos livros, muitos deles abordando sobre a minha condição. Li todos tentando compreender minha natureza. Mas ainda não sei nada. Agora posso ganhar o mundo e descobrir por mim mesmo. E você ganhou uma nova chance, negro. – disse, olhando para mim seriamente – Aconselho a procurar por tua nova essência assim como eu o farei.
Naquele momento passei as mãos pelas minhas costas, e notei que nem a moldura do quadro e nem o ferimento estavam mais lá. Quando olhei para frente novamente, Lúcio havia desaparecido entre as sombras. As chamas aumentavam. Eu tinha de sair dali. Fraquejando, corri novamente até a janela e pulei para fora da casa. Arrastei-me até o meio da mata. Não havia mais ninguém nos arredores da casa-grande. Talvez todos os jagunços estivessem mortos e todos os escravos tivessem fugido. Mais uma vez eu estava só.
Fraco, dei os primeiros passos ainda de pé, mas logo comecei a me arrastar no meio da vegetação ao redor da casa de engenho. Eu não sabia para onde estava indo, só queria encontrar alguém que pudesse me ajudar. Eu sentia fome. Minha pele ardia, num intenso calor. O dia estava amanhecendo, e por algum motivo aquilo se tornava ameaçador para mim. A cada minuto que passava, mesmo ainda sem a luz do sol, o calor tornava-se infernal. Instintivamente, parei em cima de uma porção de terra úmida sem vegetação e comecei a cavar. O tempo passava, o calor aumentava, e comecei a entrar no buraco enquanto ainda o cavava. Em menos de uma hora, a cova já tinha quase o meu tamanho. Joguei-me nela e comecei a enterrar-me. Já estava quase completamente soterrado, quando puxei as últimas porções de terra que restavam para cobrir meu rosto e meu braço. Mesmo com quase um palmo de solo sob minha face, estranhamente não senti necessidade de respirar. O amanhecer ia se aproximando, e, mesmo debaixo da terra úmida, meu corpo começou a esquentar, como se eu estivesse em uma fogueira. Imaginei que iria morrer. A luz do início da manhã atravessava o solo barrento, quase me cegando. Desmaiei de dor.
Acordei com um barulho. A luz do sol não existia mais. Eu havia dormido durante todo o dia dentro daquela cova que eu mesmo cavei. Desenterrei-me e percebi que dois animais grandes campeavam próximo de mim. A fome que sentira antes de desmaiar ainda era forte. Meus sentidos captavam com clareza o cheiro dos bichos e seus corações batendo. Preparei-me para emboscá-los. Espantei-me quando pensei comigo mesmo sobre o quão rapidamente recuperei-me para me alimentar. A fome me guiava, quase me enlouquecendo.
Estava muito escuro. Mesmo assim, eu conseguia discernir os obstáculos da selva à minha frente com facilidade. Não podia ver com precisão minhas presas, mas sabia que podia atacá-los. Pulei sobre os dois com minhas mãos certeiras em seus pescoços. Perfurei a jugular de um deles com meus dentes. O sangue caiu por dentro da minha garganta, liberando uma incrível sensação de bem estar. Foi quando ouvi algo:
– Socorro! Alguém nos ajude!
Era um grito humano. Uma mulher. Eu havia atacado dois seres humanos. Não conseguia ordenar a mim mesmo para que os soltasse. Continuei me alimentando daquele líquido quente, até sentir que ele ficava mais escasso. A outra caça tentava livrar-se de mim. Era um jovem branco. Mesmo com toda a sua força, era impossível para ele mover um dedo meu que fosse. Quase como num instinto para que ele não se soltasse, apertei com mais força seu pescoço, que se esfarelou entre na minha mão, como se eu apertasse uma barra de sabão. Tendo acabado o sangue da outra vítima, pulei sobre o peito do jovem rapaz, sugando toda a essência da vida que ainda lhe restava para dentro de mim.
Eu havia acabado com duas vidas humanas. Mas por quê? O que havia mudado em mim desde o encontro com Lúcio? Em que tipo de animal exatamente eu me transformara? Saciado, caí num choro efusivo e parti sem rumo, correndo para o meio do matagal.