Viagem ao Âmago
Por Ramon Bacelar
Mil agulhas em fogo trespassaram seu ser, o castigando com a crueldade de um carrasco nazista. Acordou com a perna em fogo e com os olhos ainda turvados, acompanhou a trajetória diagonal e debilmente luminosa do candeeiro situado no centro da lona. Há meio metro da abertura da tenda, à espreita para um segundo ataque, uma cascavel-de-quatro-ventas chacoalhava seu guizo com a precisão de um relógio suíço e o encarava com uma intensidade de concentração que imediatamente lhe percorreu uma gélida sensação de vulnerabilidade e impotência, a consciência de que sua vida tinha sido em vão e de que seu fim, com seu magnetismo poderoso e invulnerável, batia à sua porta. Não teve dúvidas: olhava para a Face da Desgraça.
Gotas de suor clamaram por vida própria e numa profusão de convolutos movimentos espasmódicos, como se para deter a chegada da vida líquida, sua testa por fim cedeu a pressão úmida e nela brotaram com velocidade vertiginosa infinitas gotículas de suor que pareciam prenunciar seu futuro catastrófico.
Imóvel como um demônio petrificado, suspendeu a respiração e, num movimento semelhante ao de uma onça no ato do ataque, se jogou na abertura lateral da tenda e foi de cara ao chão enlameado
próximo a fogueira, cuja opaca luminosidade serviu para lhe dar um mínimo senso de direcionamento em meio ao lençol noturno que o vigiava e ameaçava por todos os lados.
Com olhos e ouvidos vigilantes, a passos largos e rápidos, foi em direção a estrada principal onde, com um pouco de sorte, chegaria ao posto médico em pouco tempo, mas há dez metros do asfalto sentiu seu caminhar destoar de suas intenções originais, sentiu seus nervos esmorecerem como em uma súbita queda de pressão arterial; suspendeu sua pesada calça de lona e um inchaço na batata da sua perna pertubou sua retina com ominosas insinuações: a toxina começara a agir e a Morte construía sua morada.
Girou o corpo pesado e esponjoso, olhou para o horizonte de breu e hereticamente comtemplando o mar de piche que descortinava acima de sua cabeça pensou: "escuridão atrai escuridão".
Não tinha saída: ia cortar caminho pela mata fechada.
Enquanto caminhava com seus passos-de-mula-manca, em meio ao gélido vento de navalha, recordou sua última noite com Conchita e de como, durante todos esses anos, gradualmente, as promessas de amor foram perdendo sua força: murchando como balões enfatigados, ressecando como paredes em ruína, emudecendo lentamente, deixando-se levar pelos ventos da mudança e por fim enterradas no Sepulcro do Silêncio.
-Não tenho nada a perder!-Vomitou Juanito num furioso acesso de auto-engano e auto-ilusão.
Em Coahuyana perderia Conchita, "aqui..."
Guiado debilmente pelo devaneio sonambúlico, só percebeu que adentrara a floresta fechada quando um estafado galho de um cipreste-mexicano pertubou sua harmonia fisionômica com um arranhão que desenhou em sua face as consequências de sua entrega quimérica.
Iluminado debilmente pela lua-cor-de-sebo, cambaleou em direção norte, em direção a esperança, em direção...
Sua nascente cicatriz começava a latejar e transformar-lhe o rosto amarelo-esbranquiçado em uma agonizante e ofegante redoma carmim de carne e osso. Sentiu seus passos mais pesados, arrastados, o inchaço piorara e nesse teatro absurdista sem platéia nem aplauso, a dor apontava suas agulhas e afiava suas navalhas para o "ato final".
Picadas agonizantes lhe pertubavam o corpo e espírito, sua perna agora latejava debilmente: suplicante coração em brasa à procura de um peito amigo!
Em posição acorcundada alcançou o sopé da colina e só teve forças para despencar no terreno enlameado:o veneno gargalhava.
Um violento clarão aperolado seguido de um estrondo infernal, anunciou a chegada da vida líquida e com a consciência recobrada, percebeu que o confortador pesadelo de sua vida onírica nada mais era que o débil reflexo e extensão de sua existência real: estava cercado por todos os lados, "dentro e fora".
Com extenuado esforço levantou-se, mas os músculos vacilaram; olhou para os lados, para baixo, para o céu, desta vez com olhar pesaroso e suplicante, o pescoço vacilou e o corpo foi de encontro ao chão, mais uma vez. Tum-tum..., tum-tum..., tum-tum..., direcionou sua retina abaixo da coxa, mas só enxergou um borrão escuro que pulsava como um Coração das Trevas e concluiu que não tinha condições de escalar a colina, iria contorná-la.
Com movimentos semelhantes aos da Face, rastejava debilmente pelo lamaçal em movimentos espasmódicos e grunhia como um cachorro enlouquecido; a chuva aumentava e a já parca iluminação lunar agora adquiria um tom mais opaco e amarelado que em contato com a chuva emprestava a paisagem noturna um aspecto enganadoramente sereno e irreal.
A dor agora parecia possuir todo seu ser e o dominava de tal maneira que mal sentia a perna; um calafrio percorreu seu corpo e penetrou em suas entranhas com a determinação de um ataque de corvos: ardia em febre.
Como uma brasa rastejante, continuou sua trajetória circular em direção ao auxílio de Alonzo. Alonzo, amigo de velha data, companheiro de alegrias e tragédias.
-Não vá- Relembrou Juanito os conselhos do amigo; mas em sua existência tormentosa não existia perdão e a palavra redenção não passava de mero vapor.
A chuva incessante se adensava e ganhava volume, o vento agora rasgava os seus tímpanos com lamentos ásperos e os odores florestais, antes doces e suaves, agora penetravam em sua narinas como substâncias ácidas e ácridas. Juanito continuava,
rastejava, persistia; o terreno se tornava mais áspero, pegajoso e íngreme. Juanito ardia e gritava, a febre o possuía e arremessava
seus sentidos a regiões escuras e inóspitas; sentia vagamente seu tato se esvair o transformando vagarosamente em uma entidade vazia e insubstancial (felicidade?), sua audição começou a vacilar e por um breve instante lhe penetrou nos ouvidos um ruído indistinto semelhante a um chocalho, parecia vir de trás... rastejava, ouvia...subia, subia...ouvia...zombantes gargalhadas tomaram lugar dos chocalhos, a dor ria, berrava, a febre retribuía com tremedeiras e calafrios e misturados a essa cacofonia do além, a umidade sonora lhe tocou os tímpanos e lhe chamou a atenção para sua cortina de água que parecia dividir a floresta: por um indecifrável motivo ele queria ir para o "outro lado". Irritantemente o ruído de chocalho persistia, agravava, olhou para trás e foi tomado pelo horror, pelo vislumbre de um rastejante corpo cilíndrico unido a sua cintura; não eram duas era "um", um corpo cilíndrico rastejante, uma alma agonizante e agora uma batida cardíaca, um outro Coraçao das Trevas pulsava fazendo coro com sua caricatura-de-perna-pulsante; a paisagem agonizante pulsava como um organismo vivo, tum-tum,tum-tum... tum-tum,tum-tum...um encarcerado grito de desespero agonizava, sua garganta reprimia, ele pressionava, pressionava, insistia e como uma represa arrebentada seu grito escapou, no mesmo instante que uma tromba d'água vindo do alto da colina o arrastou. Como um balão vazio, foi carregado pela força da vida líquida com arrebatadora violência e segundos antes dos sentidos vacilarem, teve consciência que descia rumo ao desconhecido, abaixo...abaixo... rumo ao âmago, rumo ao Coração das Trevas.
FIM
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) e publica contos no Recanto das Letras: http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com