Atropelamento
Larissa chega em casa suando frio. Sua mão trêmula deposita as chaves do carro sobre o balcão da cozinha. Ao terminar ela se deixa cair de joelhos e então senta no chão ladrilhado e frio do imóvel, com o rosto entre as mãos se põe a chorar. As lágrimas descem enquanto ela imagina a grande besteira que fizera a poucos minutos atrás.
Estava tranquila em seu carro ouvindo música alta e falando ao celular quando este caiu no assoalho do veículo. Uma pessoa responsável teria o encostado no meio-fio, mas Larissa se agachou para pegar o aparelho. Enquanto alcança o aparelho, um barulho de grito, mal ela se levanta e se depara com uma criança com os braços estendidos à frente do carro. O freio foi acionado mas não parou rápido o suficiente. A lataria se chocou contra o corpo magricela do garoto. Logicamente o carro venceu o embate e o corpo menino foi jogado para longe do impacto.
Caso não bastasse o primeiro erro de Larissa, ela resolveu fugir do acidente, engatou rápido a primeira e saiu o mais rápido que pode. Enquanto o carro se afastava do local, a consciência da mulher começava a pesar. O rosto do garoto... Aqueles olhos castanhos brotados de uma pele alva que também contrastava com os cabelos escuros e curtos, olhando para o carro que se aproximava... Essa visão não se afastava de sua mente no caminho para casa.
Agora no chão da cozinha, o rosto ainda se fazia visível toda vez que ela fechava seus olhos. Como pudera ser tão mesquinha? Enquanto ela pensava em si mesma e fugia da enrascada na qual se metera, o garoto poderia receber socorros e até, quem sabe, sobreviver.
Arrastando-se tal qual uma enferma, Larissa chegou no quarto e desabou na cama cobrindo-se com um grosso cobertor. Chorou um pouco antes de dormir, porém o sono a venceu.
Acordou algumas horas depois com o barulho da porta do quarto batendo. Assustada, ficou sentada com o coração palpitando enquanto se lembrava aos poucos dos últimos ocorridos. A cortina da janela dançava conforme o vento colidia, em um bailar hipnótico. Larissa levantou-se e fechou a janela. Pelo vidro foi possível enxergar o reflexo do garoto atrás dela. A mulher virou-se rápido, mas não havia ninguém. A adrenalina já disparava em suas veias, quando o som tenebroso de porta mal lubrificada se abrindo começou a surgir. A porta do quarto abria-se lentamente, como se houvesse alguém a empurrando. Uma gota de suor desceu pelas costas de Larissa. Subitamente a porta fechou-se novamente fazendo um enorme estrondo.
Apesar do susto, a mulher correu e trancou-se dentro do quarto. Voltou para a cama de costas para a parede, deixando a entrada e a janela em sua visão ao mesmo tempo. Com o controle remoto ligou a TV para esquecer do garoto. Era uma alucinação. Tinha certeza, não poderia ser real.
Estava passando o jornal. Mortes e tragédias em todas as partes do globo. Chegou no intervalo e começou uma propaganda de carro. O veículo passava por curvas sinuosas enquanto o locutor dizia todas as vantagens da compra, a câmera se aproximou para a melhor visualização dos detalhes, ao passar pelo motorista... Era ela mesma! A mulher se espantou ao ver seu rosto no televisor dirigindo aquele carro em uma versão sinistra de Dorian Gray. Ao se aproximar da tela, em uma tentativa de enxergar-se, a Larissa da TV olhou para a Larissa real e sorriu, de súbito virou o volante e saiu da tela invadindo o quarto.
Larissa deu um grito e se protegeu com o cobertor como se este lhe desse alguma segurança. Nada aconteceu. Olhou de novo para o televisor e este apresentava uma propaganda de azeite. Ainda assustada, desligou o aparelho. O silêncio invadiu o quarto e todos os sons mais banais pareceram temíveis. A respiração da mulher tornou-se ofegante quando o a chave presa na porta começou a tremer. Larissa não conseguia falar ou reagir. Ficou apenas olhando o objeto tremer por alguns
segundos e então parou.
A chave se virou lentamente e destrancou a porta.
A mulher sentiu medo. Clamou aos céus por alguma ajuda, mas já não se achava digna de ter prece atendida, afinal era uma assassina agora. Não teve coragem de olhar para a porta diretamente. Fixou o olho na televisão e observou a porta, pelo reflexo, se abrir. Atrás dela o garoto atropelado. Pingando sangue e com uma fratura exposta na perna. Um talho na cabeça deixava parte de seu cérebro exposto tornando-o uma criatura assombrosa. Larissa criou coragem e voltou o olhar para a porta e nada encontrou.
Não havia ninguém no batente, porém o reflexo mostrava o garoto macabro. A mulher não sabia o que fazer, olhava de um lado ao outro aterrorizada pela situação insólita. O menino olhou para ela. O coração queria sair-lhe pela garganta e seus membros tremiam. O morto andou até a cama e subiu nesta até ficar de frente com Larissa. Não havia nada naquele quarto, apenas no reflexo o menino se fazia visto, aos poucos isso corroeu sua sanidade.
Naquela cena refletida, a criança enfiou sua mão pequenina pela garganta da mulher e de lá arrancou um órgão viscoso e vermelho. Apesar de Larissa estar intacta, a cena lhe chocou. Ela pulou da cama e pôs-se a correr de forma desesperada, porém não conseguiu passar do primeiro degrau da escada, tropeçou e acabou rolando até o final se chocando de forma dura contra o chão. O sangue se espalhou avisando o final de sua vida e começo de um tormento eterno.