Esgoto

Esgoto

por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)

O que estou prestes a contar poderá deixa-lo assustado ou com um temor dos dias vindouros, mas se faço tal maldade contigo é por puro medo de que esta história vá comigo para baixo da sepultura, em um silêncio infindável e macabro.

Não estudei muito, logo o melhor trabalho que consegui foi um piores já inventados. Sou limpador de fossas. É de minha alçada calçar pesadas luvas e botas de borracha, entrar em buracos fétidos abertos no chão, porém escondidos por tampas para a sociedade não ver sua própria desgraça. Uma vez dentro desse inferno mal-cheiroso, munido de apenas uma pá, cabe a mim retirar o acúmulo de dejeto humano e trespassar alguma massa podre e dura com um cabo de aço afim de despedaça-la em lascas menores, permitindo que a vazão da água possa voltar ao normal.

Sozinho como sou, a bebida sempre foi minha fiel companheira, ainda mais agora, depois do fato ocorrido, cujo qual não tardo em lhes explicar.

Eu havia tomado algumas doses de aguardente e subira a rua reclamando de minha sorte. Apesar de saber a localização do problema, poderia me guiar pelo mal cheiro facilmente. Quando cheguei pude ver o quão grave a situação estava.

Os dejetos já atingiam a borda do bueiro derramando-se pelo asfalto em uma massa fétida. Afastei o pesado lacre de metal e com a pá retirei o excesso, ficando quase a tarde inteira para tal serviço. O álcool me deixava zonzo e transpirando, o pior efeito é que calculei mal o nível do bueiro e entrei na hora errada. O negrume invadiu minhas botas plásticas. Xinguei alto, com raiva de mim mesmo.

Continuei retirando toda sorte de dejetos de dentro da fossa, até que enfim pude enxergar o cano entupido. Porém o que eu vi me estremece até hoje. Havia uma rolha feita de cobre polido e diversas gravuras entalada no cano. Puxei-a devagar e notei que uma corrente a segurava, usei toda a força contra a corrente e esta travou, em certo ponto dentro da tubulação, ressoando um barulho de engrenagem.

Não tive tempo de reagir quando uma tampa, exatamente debaixo dos meus pés, se abriu, me jogando para uma galeria abaixo. Cai pesadamente sobre o chão fedegoso mas logo me levantei assim que um resquício de lodo nojento atingiu meus lábios. Ainda tonto olhei em volta e vi um pequeno morro metálico, ao me aproximar notei que este continha as mesmas gravuras da rolha que eu puxei, porém em proporções maiores, já que este círculo deveria ter a circunferência de dois homens deitados.

Fiquei um tempo examinando os hieroglifos estampados na chapa de cobre. Eram pictogramas de homens sendo devorados por alguma criatura estranha. Não era possível discernir sua forma, pois não havia qualquer semelhança com algum animal real ou mitológico. Passei meus dedos sujos pelos sulcos do metal imaginando o que exatamente seria este círculo. Subi em cima do objeto e vi que este cedeu um bocado. Pelas bordas escapou um pouco de ar indicando que havia algo abaixo de mim.

Nesse momento devo adverti-lhes do grande problema que é a bebida na vida do homem. Seus pensamentos ficam torpes, sua destreza igual à de uma criança e com sua força mal pode-se levantar uma ripa de madeira. Graças ao excesso de aguardente que circulava no meu corpo, cometi o grande erro de dar um pulo com os dois pés sobre a chapa metálica. Pude ouvir o estampido ressoar em um eco temeroso nas profundezas daquela câmara.

Um grunhido inumano escalou até a câmara e ricocheteou nas paredes manchadas. Senti uma gota de suor frio descer pelas minhas costas ao mesmo tempo que meu rosto corava e meus dedos formigaram. Tentei correr, porém minhas trôpegas pernas me fizeram desabar no chão de cara em um dejeto que boiava. Um barulho forte de tijolos sendo estourados começou a surgir. A cada estampido o chão tremia. Poucos segundos depois um baque forte e a tampa que outrora eu examinara se mexeu.

Corri sem olhar para trás.

Em desabalada carreira passei batido por diversos túneis que poderiam me levar até uma saída. Meu raciocínio débil apenas me deixava seguir em frente tal qual uma galinha que foge duma raposa. Um barulho de metal sendo despedaçado me avisou que o que estava trancafiado acabara de se libertar, continuei fugindo enquanto as passadas fortes pareciam que me alcançariam em breve.

Devo dizer que dependi mais da minha sorte do que de uma eventual astúcia. Por puro acaso eu não vi uma tubulação que atravessava o chão à minha frente e acabei caindo pesadamente contra o piso, mal pude me virar e então eu deslumbrei meu predador.

Um ser enorme saído de algum pesadelo horrível. Seu corpo era esverdeado e escamoso, era maior que um elefante africano e mais robusto que um rinoceronte. Na sua fronte uma galhada terrível e afiada escondia sua bocarra medonha com diversos dentes pontiagudos. Ao invés de patas, um par de mãos e pés terminados em garras esbranquiçadas, não sei ao certo se tal monstro seria capaz de andar como um bípede, também não queria descobrir. Quando este passou reto por mim sem me ver ou sequer pisotear-me, senti-me uma pessoa extremamente sortuda. Acompanhei com os olhos seu trote até o final do corredor, quando a besta parou e passou a fungar o ar eu percebi que podia sentir meu cheiro. Levantei-me e corri para o outro lado, senti a fera virar-se na água.

Corri o mais rápido que minhas pernas permitiam-me. Consegui ficar lúcido por um momento e entrei em um corredor mais estreito que a criatura e cai cansado no chão. O ser horrendo parou em frente à entrada e tentou forçar sua passagem, porém esta era diminuta para seu corpanzil.

Fiquei duas horas com o monstro me olhando, esperando eu sair, grunhido de raiva por não conseguir entrar no buraco onde eu me enfiara. Depois de tanto tempo ele desistiu e acabou saindo. Tive medo de olhar se ele não teria fingido o desinteresse e havia armado uma arapuca para me pegar. Devo ter ficado uns dois dias naquele lugar fedorento, quando minha sede superou meus temores, saí de meu esconderijo e procurei uma saída.

Achei uma porta que dava para o lado de fora. Chovia muito e a água que passava por mim saía preta como piche, fiquei perambulando pelas ruas por alguns dias, sem dormir ou me alimentar. Encontraram-me desmaiado e uma boa alma levou-me até o hospital mais próximo. As enfermeiras disseram que eu passei todas as noites aos gritos, quando fui liberado comecei a viver de esmolas e dormir ao relento, sempre longe de tampas de bueiros ou passagens para os esgotos.

Hoje vivo com a companhia dos meus medos ocultos e da bebida que entorpece meus sentidos. Nada mais do que isso.