Palco da Vida

Palco da vida

por Pedro Moreno (http://criptadesangue.blogspot.com)

Acordo o mesmo horário de costume. Não abro as cortinas há pelo menos um mês, mas mesmo assim sei que já há sol lá fora. Evito ao máximo olhar para essas ruas sujas que enfeiam a minha cidade. Contorno uma caixa de pizza vazia pousada no chão. Ultimamente tenho pedido apenas comida delivery.

Só uma coisa me faz sair: Teatro. Meu nome artístico é Sarita Veloso. Bem diferente do que diz meu RG. Um Maria da Conceição bem sonoro e feio, como poderia eu fazer sucesso com um nome desses? Nas antigas reuniões familiares, quando eu ainda ia à tais eventos, eu era Maria, uma pessoa comum e sem-graça. Mas quando piso naquele tablado e vejo a plateia... Eles não clamam por Maria, eles querem Sarita. Poderosa, sensual, diria até, incrível.

Ainda nua eu abro a geladeira e vejo o vazio. Continuo abrindo o eletrodoméstico todas as manhãs mais por tradição do que por necessidade. Visto-me sem pressa, admirando cada detalhe do meu corpo perfeito. Pego meus óculos escuros e enrolo um lenço de seda parisiense em volta dos meus cabelos. Ao sair já me sinto em um palco. Desfilando para essa plebe ignara que nunca poderá ser como eu.

Contemplo a mediocridade da natureza humana. São feios, pobres e sujos. Deambulando sem rumo pelas ruas, à procura de sexo e dinheiro. Se as duas coisas vierem na mesma caixa com um belo papel de presente, melhor ainda. Enquanto eu faço do asfalto o meu palco, as pessoas comuns andam envergadas com olhar de “tenham piedade de mim”. Onde foi parar a classe dessa massa? Nas bancas, revistas sobre “artistas” e “famosos” populam as estantes. São vagabundas que ganharam fama nacional por exibirem seus corpos desformes, atores juvenis que encantam garotinhas feias, políticos corruptos ganhando fama às custas de deslizes de outros políticos corruptos. A vida é uma grande encenação que esses idiotas não conseguem entender.

Do alto de minha elegância chego à frente do teatro. Suas colunas clássicas contrastam com os edifícios acinzentados ao redor. Enquanto os prédios parecem sem vida, o teatro é um monumento ao bom gosto. Acima da porta um pedaço de mármore com gravuras de anjos, que de tão perfeitos parecem até reais. O escultor que fez esta obra é um verdadeiro artista, não esse monte de babacas que participam de reality shows. Essa é a diferença. Estes anjos ficarão marcados para a eternidade, mesmo destruídos, as pessoas lembraram deles.

Destruição.

Enquanto aguardo o vigia me notar, me imagino obliterando todas essas pseudo celebridades. Seria divertido e algo benéfico para a sociedade.

O vigia ainda não abriu o portão. Fico olhando para seu jeito desengonçado de segurar o jornal enquanto lê algum artigo desinteressante, provavelmente sobre futebol ou outra frivolidade. Ele agarra o jornal e o traz para frente do rosto, seus lábios se movimentam indicando uma dificuldade descomunal para conseguir ler. Estou ficando claramente irritada, mas não vou descer no nível dele. Espero ele me notar e enfim abrir a porcaria da porta.

Um sonoro clique e a porta está destravada. Pior é pensar que ele ainda não me notou, abriu a porta para dar passagem à uma faxineira que saiu para fumar. Passo por ela e recebo um empurrão com o ombro. A idiota nem me viu. Fiquei um tempo olhando para aquele ser infeliz acendendo seu cigarro. Decidi não ligar.

Confiro no relógio do teatro que horas são. Dentro de duas horas a peça começará. Vou silenciosa até o camarim para me aprontar. Em frente ao espelho no qual me maquilo diversas flores, coloridas, lindas e perfumadas enfeitam minha mesa. Sento na cadeira e vejo meu rosto no espelho, tal qual uma flor saindo desses maravilhosos ramalhetes. Isso é reconhecimento. Meus fãs me adoram. Só não entendo porque um deles teima em me mandar cravos. Deveria aprender com os outros. Vejo um lindíssimo buquê de Antúrios e Rosas. O bilhete me confessa quem as mandou. “Para a maior das atrizes. Paula”. Essa sim tem bom gosto.

Ouço os passos dos outros atores chegando. Conquistei há muito tempo um camarim próprio. Não preciso mais me misturar com novatos. Afinal sou a personagem principal e os demais apenas me auxiliam no grande drama que apresento.

Repasso o texto em silêncio. Quando ouço o diretor chamando todos para o palco eu me levanto e confiro a roupa. Perfeita. Vou devagar até a entrada. Sinto um formigamento gostoso nos meus dedos. Quando enxergo a belíssima cortina vermelha de veludo tenho um arrepio. Do outro lado, os outros atores se ajeitam e esperam com rostos ansiosos o começo da peça. Alguns até choram de emoção. O diretor da peça dá um passo à frentede todos e entra no palco em um movimento não combinado.

Ele é aplaudido, porém ergue as mãos pedindo silêncio. Não sei o que ele fará, mas ainda assim espero.

— Hoje os aplausos não são para mim – diz o diretor olhando fixo para a plateia – quero falar um pouco sobre Sarita Veloso.

Quando ouço meu nome eu enrubesço. O diretor olha para onde eu estou mas não parece me enxergar, eu aceno, mas ele já havia virado o rosto de novo para a plateia ansiosa por seu discurso.

— Essa mulher. Talvez uma das maiores atrizes do Brasil. Encheu de orgulho nossos camarins. Foram diversas apresentações, uma melhor do que a outra. Seu talento é inestimável, assim como seu futuro se mostrou brilhante.

Enxugo as lágrimas com um lenço tentando não borrar a maquiagem. Ele está fazendo uma homenagem para mim!

— Só de estar no palco, ela provoca suspiros. Seus gestos delicados, sua voz meiga e doce fazem parte da história deste teatro. Queria eu ter umas trinta “Saritas” se apresentando aqui neste teatro. Mas, infelizmente, Deus deve ter jogado fora a forma na qual fizera essa mulher.

As pessoas aplaudem o discurso, porém o diretor pede mais uma vez silêncio. Fico muito emocionada com o carinho dispensado por ele.

— Na noite de ontem, Sarita Veloso foi encontrada morta em seu apartamento. Afogada em seu próprio vômito e provável vítima de overdose por remédios. O Brasil perde uma atriz, os anjos ganham uma companheira.

Suas palavra me atingem como pedras. Como assim morri? Corro até o palco e grito que estou viva. Ninguém olha para mim. Esbravejo, pulo, xingo, enquanto as pessoas se dirigem para a bilheteria para pegar o seu dinheiro de volta. Os atores, chorando, vão para suas casas, cabisbaixos, trocando palavras de carinho. Hoje não haverá espetáculo. Todos parecem passar por mim e não me veem.

Fico sentada no centro do palco, uma pessoa fecha as cortinas e tranca o teatro ao sair. O meu espetáculo acabou.