Chuva
Chuva
por Pedro Moreno criptadesangue.blogspot.com
A chuva cai forte. Na memória de Marcelo ele nunca viu chover deste jeito. Tinha acabado de sair do trem e não conseguiu descer as escadas, pois a água já avançava por uns quatro degraus. Enquanto olhava a avenida que se tornou um rio ele imaginava como e quando conseguiria chegar em casa.
Observando o movimento da água, um nordestino de sotaque acentuado exclamou que não era feito de açúcar e desceu as escadas com sua mochila nas costas e a coragem no peito. As pessoas ficaram olhando para o homem coberto com água na cintura, andando como se tivesse desbravando o Amazonas.
Com o ato de bravura explícito, Marcelo pegou seus documentos e os embrulhou em uma sacola plástica. Olhou para o seu tênis de lona já encardido e pensou que pior não ficaria. Desceu o primeiro degrau e a água encharcou suas meias, tarde demais para voltar.
Molhado até a cintura, Marcelo atravessou a avenida e chegou em um calçadão. Os comércios foram invadidos pela água da chuva. Sacos de lixos boiavam. Tropeçou em algo, tateou e conclui que era um banco. Subiu no assento e ficou em pé como se andasse sobre as águas.
De cima do banco pode visualizar o volume da tempestade. O céu ficava cada vez mais escuro e podia se ver pouco além do local onde estava. Algumas pessoas saíram da estação de trem e agora estavam na avenida. Na frente pode ver o homem de sotaque nordestino que estava à frente.
Algo singrou pelas águas.
Marcelo forçou os olhos e tentou ver o que era. Achou que fosse alguém que teria caído, porém era muito grande para ser isso. Seja o que fosse, estava nadando muito rápido e em direção ao homem na frente. A coisa saltou para fora da água e puxou o homem para dentro formando uma nuvem de gotas.
O rapaz esperou alguns segundo e água ao redor tingiu de vermelho. Um corpo escamoso de cor escura se mostrou. Era um crocodilo enorme de mandíbulas ferozes e dentes pontiagudos. O que ele fazia ali não tinha sentido. O quê este réptil fazia na cidade?
Não era tempo de pensar. Marcelo pulou na água e começou a voltar para a estação de trem, passou por um grupo de pessoas que se aventuravam na travessia e esses o olharam assustados. Quando alcançou as escadas ele pode olhar para trás. Um senhora recebeu uma mordida no ventre a cortando no meio. Os órgãos das mulheres ficaram boiando na água enquanto o crocodilo perseguia os outros que agora fugiam desesperados.
Marcelo fechou os olhos e começou a rezar. Isso não poderia acontecer com ele. Isso não DEVERIA acontecer. Os gritos da multidão ficaram mais altos à medida que o animal se fazia mostrar. Alguém lhe agarrou o braço e Marcelo buscou conforto segurando a mão.
Com os olhos fechados, Marcelo não pode ver o crocodilo que se aproximava e com uma bocada destroçou o torso da mulher deixando o braço arrancado preso firme na mão do rapaz. Ele sentiu a vibração no chão quando a criatura caiu com o corpo. Abriu os olhos e viu que o réptil estava na sua frente mastigando a mulher que outrora buscara proteção com ele.
Paralisado, Marcelo ficou olhando para o imenso crocodilo. Os olhos amarelados do animal fitavam sua presa. O rapaz jogou o braço arrancado em direção ao réptil que em uma bocada comeu o membro amputado. A tática não funcionou e provavelmente só atiçou a vontade de carne do animal.
Marcelo deu um passo para trás bem devagar. E logo imaginou que seria difícil o réptil alcança-lo fora da água, e pior, em uma escada. O rapaz começou a correr rápido e viu que o crocodilo tinha dificuldades em conseguir subir. Logo o rapaz alcançou o guichê e avistou um grupo de seguranças do local. Disse o que havia acontecido, mas eles não acreditavam, mesmo porque era impossível ser verdade.
Um dos seguranças o acompanhou até o início da escada e só conseguiram ver o rabo da criatura voltando para a água. O guarda ficou pálido ao ver a carnificina causada pelo bicho. Haviam pedaços de corpos por todos os lados e o sangue tingia a escada. Todos foram avisados, mas não foi possível pedir ajuda à ninguém pois os telefones estavam mudos.
A tempestade intensificara. O barulho dos pingos da chuva faziam um barulho ensurdecedor. Marcelo olhou novamente para a escada e a água já avançou alguns centímetros. Ele contou trinta degraus. Para a água subir tudo isso precisaria inundar a cidade inteira. Enquanto estivesse aqui estaria a salvo.
Um vento atingiu o telhado e arrancou algumas telhas. A chuva invadiu o local e Marcelo ficou perto dos guichês que representavam o local mais afastado da tempestade. O rapaz ficou desolado. Só queria voltar para casa e agora estava preso aqui por causa de um crocodilo. Ele sentou no chão e repetiu para si mesmo. Um crocodilo.
A água que entrava pelo teto começou a empoçar. Marcelo observava quando viu que formara um redemoinho. Ele levantou assustado e chegou perto. Havia formado um buraco no chão do local. De súbito uma rachadura abriu atingindo as duas paredes do local. Um ranger de ferro tomou forma e começou a ficar cada vez mais alto.
Algumas vigas e colunas caíram fazendo a parte da plataforma ruir. A área do guichê caiu junto assim como as escadas. Apenas sobrou uma parte em pé. Um cubículo de mais de três metros quadrados. Em volta tudo desabara na água. Nesta pequena plataforma que se formou, Marcelo, agora sozinho, viu os seguranças que agora viravam comida da enorme besta. O rapaz sentou e chorou. Não havia mais o que fazer a não ser esperar.
A chuva apertou um pouco mais fazendo o crocodilo se esconder debaixo dos escombros. Ainda era possível ver os olhos amarelados fitando sua futura presa. Já o rapaz não tinha onde se esconder da tempestade e ficou sentado encolhido no meio do que sobrar do chão.
Então ele pegou no sono.
Marcelo só acordou com um estalo forte. A chuva persistia porém mais fraca. Ele levantou e olhou pelas bordas de sua “ilha”. A base da coluna que segurava sua posição, logo mais iria desabar. Neste instante o rapaz começou a pensar em sua morte. Era inevitável. Poderia pular agora de encontro ao seu destino fatal nos dentes do animal. Poderia esperar até que a fome viesse e a inanição desse o fim nele. Mas de qualquer forma ele iria morrer.
Um outro estalo ecoou. A torre começou a tombar lentamente. O rapaz viu que o crocodilo já saíra de seu esconderijo e agora o esperava ansioso. As vigas de aço rangiam ao serem entortadas. O concreto estourava nos pontos de pressão. Marcelo era a única coisa que permanecia calmo.
A queda era iminente. Marcelo fechou os olhos para não mais abri-los.