O Coveiro
O Coveiro
por Pedro Moreno
Todo dia pela manhã é a mesma rotina para Jonas. Antes do sol nascer se agasalha e pega seus instrumentos de trabalho, calça suas luvas e saí para a sua rotina. A cova é bem cavada e há a profundidade e o comprimento certos. O buraco deve estar com as arestas bem quadradas para o caixão não ficar desnivelado.
O cimento bem feito e nas proporções certas e nada de quando colocar a terra em cima ficar uma “barriga” em cima como nos desenhos animados, assentado e sem elevações é a regra do sepulto perfeito. Nada de cruzes tortas ou lápides mal colocadas. A última morada daqueles que se foram deve estar em perfeita ordem ou aqueles que ficaram em terra entram em parafuso.
À tarde Jonas apara a grama bem rente e coloca água nos vasos. Aproveita para consertar o quê tiver de errado, isto inclui estátuas, encanamentos e toda a sorte de coisas que tem no cemitério. Como é o zelador, seu serviço pode o levar até tarde. No canto norte do cemitério fica a casa do coveiro, são apenas dois cômodos mais o banheiro. Do lado de fora há um quarto separado com suas ferramentas e uma velha bicicleta com o pneu furado que ganhara em uma rifa.
Quando terminava seu trabalho ele se enredava com a sua paixão: Os livros. Principalmente os de terror. Atrás de sua cama tem uma prateleira com uma porção de livros de variados autores, a maioria deles empoeirados e mal-tratados. Uma vez por semana Jonas saía até o centro da cidade para comprar livros no sebo. Jonas achava vários desses livros, muitos deixados por góticos que invadiam o cemitério à noite e na hora da fuga deixavam para trás seus objetos pessoais.
O coveiro costuma brincar dizendo que os livros de terror o fazem esquecer de seu trabalho. O quê não foge muito da realidade pois fatalmente um coveiro não trabalha com corpos e sim com terra e cimento. Poucas vezes Jonas pode ter dito que viu um morto. Só os vê quando por algum acidente o caixão quebra ou algum parente desesperado abre o caixão durante o velório gritando em desespero: “ Me leva junto!”.
Em um sábado de manhã Jonas enche o pneu da bicicleta e ruma para a cidade. Toma um café na padaria e segue até o sebo. O Sebo Messias é um dos mais antigos da cidade, mas com a era da pirataria digital e da pouca cultura, ele tem perdido muitos fregueses. Apesar disto segue como um dos maiores sebos da região.
Grossos volumes empoeirados, livros de bolso com páginas faltantes, coleções enciclopédicas amareladas pelo tempo e vinis de artistas que nunca fizeram sucesso. Para o coveiro este é o ponto alto da semana, perder umas boas horas revirando lixo até encontrar um tesouro, o seu tesouro.
Em uma das prateleiras depois de puxar um dos volumes, Jonas se depara com um livro escondido atrás de todos os outros, este já gasto adornado com uma capa de couro, o acabamento dourado das páginas já está desaparecendo e muitas páginas estão com orelhas. Na capa há um desenho de um crânio com presas longas. O livro não tem preço marcado na capa e como não está empoeirado deve estar a pouco tempo no sebo. Jonas dá um longo sorriso enquanto apreciava o livro e o leva até o balconista.
O balconista vira e revira o livro atrás do preço ou o título, para poder pesquisar o preço pela internet. Depois de uns minutos desiste e dá um preço qualquer. Jonas paga e segue contente até a sua casa. O quê o coveiro não vê é um homem baixo de terno mal-ajambrado que entra rápido na livraria e corre até o local onde momentos antes havia escondido o seu livro.
No final do dia Jonas já terminara o seu trabalho e agora segue até sua casa. Coloca a chaleira com água para ferver e separa o pó do café no coador. Em poucos minutos de café pronto, ele pega o livro que comprara e passa a mão sobre a capa negra e sente a textura do couro. Pensa em como este livro foi vendido barato, só pelo acabamento ele valeria muito mais. Com sua capa luxuosa e seu papel de pontas douradas, o livro se parece muito com uma Bíblia, se não fosse por seu papel de alta gramatura e a gravura funesta na capa ele poderia muito bem se passar por uma.
Com suas mãos ásperas pelo trabalho, o coveiro, começa a folhear o livro. O começo é uma história de alguém que deveria ser muito importante, já que realizara muitos feitos. Mas algo não se encaixava no contexto. Eram as datas. Se fosse levar em consideração as datas indicadas, esta pessoa teria mais de 600 anos de idade. Logo Jonas imaginara que se tratasse de uma dinastia não uma simples pessoa esse tal de Hamurá Jemal. Mas estranho que não havia mais nenhum outro nome a não ser este e seus feitos eram tratados quase como uma biografia de alguém que realmente existiu.
Hamurá se encontrara com Papas, Líderes e Guerrilheiros famosos e muitas vezes há descrições sobre tais pessoas e fatos que só uma pessoa que tivesse estado junto poderia fornecer. Mas ainda sim era uma história de terror. Jemal teria sido responsável por muitas mortes, o quê incluía crianças, mulheres e idosos.
Jonas procurou a indicação de quem era o autor do livro, mas não havia nada. Mas uma certeza tinha, se o narrado era uma ficção este autor seria um dos melhores escritores que Jonas já lera. Se tais histórias fossem inventadas, o autor era um gênio da literatura e da criação.
O tempo não dava descanso e o coveiro já chegara até a metade do livro quando já era meia-noite. Quando percebeu que horas eram foi rápido se deitar já que pela manhã tinha arrumar o velório e colocar água nas plantas que serviam de alento aos parentes dos falecido.
Jonas não sonhara esta noite ou não consiga recobrar aqui que havia sonhado quando acordou pela manhã. Mas deve ter tido uma noite difícil já que o abajur estava no chão e sua cama uma terrível bagunça. Com bastante sono vestiu suas calças e camisa e foi cuidar das plantas. Terminado o serviço de jardinagem pôs-se a lavar uma das salas do velório, terminado o serviço pôs-se a esperar que acabasse que estava em andamento.
O morto era um homem baixo de cabelos grisalhos, havia apenas três pessoas que compareceram ao último adeus. Quando fecharam a janela que fica no topo do caixão, Jonas percebeu que havia um livro com ele. Idêntico ao livro que ele comprara no dia anterior, seus cabelos da nuca se arrepiaram, mas o coveiro não disse nada e nem sequer demonstrara a surpresa. O defunto ficaria em uma cripta ao invés de ser enterrado, o nome do morto era Samuel Ferreira e as poucas pessoas que compareceram não trocaram uma só palavra a respeito do falecido.
O trabalho no cemitério foi feito mais rápido já que Jonas estava curioso para saber como acabara o livro e perto da meia-noite finalmente acabara o livro. Mas não a história. O quê Jonas percebeu era que aquele seria o primeiro volume de dois existentes. Na cabeça de Jonas veio a imagem do livro que poderia ser o segundo volume ser enterrado junto do corpo de Samuel. Era antiético roubar pertences de um falecido, mas Jonas já não pensava em ética e sua curiosidade lhe queimava o peito.
Munido de uma lanterna e a chave da cripta, o coveiro desceu o cemitério em busca do livro. Abaixou-se para abrir o cadeado e sentiu uma presença sinistra atrás dele. Com o susto caiu para dentro da cripta e acertou com a cabeça contra a parede de concreto, sem hesitar apontou a lanterna para fora a fim de iluminar quem é que fosse que tivesse invadido o cemitério. Nada. Apesar do medo sobrepujando a coragem, Jonas saiu e olhou em volta do cemitério por quem o tenha assustado e nada encontrou.
Voltando a cripta o caixão foi destravado e Jonas pegou o livro. Não esperou sequer chegar em casa e no caminho mesmo constatou que era sim o segundo volume que se encontrava com o homem morto. Ao abrir sua porta se deparou com uma figura masculina vestindo um terno preto, de cabelos bem penteados e barba feita, o intruso nem deixara Jonas falar e logo tapou sua boca enquanto sussurrava em seu ouvido: “Você não devia ler estas coisas”.
No dia seguinte Jonas fora enterrado. No seu velório só compareceram três pessoas que ficaram calados o tempo todo. Como era conhecido amante da leitura, Jonas fora enterrado com dois livros de capas negras e gravuras de caveiras.
E assim Hamurá Jemal matara mais uma de suas vítimas.