UMA CANÇÃO PARA MICHELLE

“Uma estrela brilhou no céu...

Só para te ver, minha pequenina,

E o cavalinho no carrossel...

Vem te chamar, vem cá menina!

É a Michelle, uma princesa!

Pode dormir não tenha medo!

Eu vou deixar a luz acesa!

Vamos brincar amanhã bem cedo...”

Emerson, sentado em uma cadeira de balanço, cantava para a filha Michelle, a menina deitada em seu colo deixava-se levar pela voz que entrava pelos seus ouvidos e ecoava em sua cabeça. Ela não era uma criança comum, longe disso, no auge de sua infância, aos doze anos, não corria, brincava, ou andava de bicicleta como as outras de sua idade.

Ela não ia a escola, navegava pela internet ou passava horas com um vídeo game de última geração. Não ia a festas, não tinha amigos, não se relacionava. Michelle não interagia com a realidade, não falava, não sorria, não demonstrava nenhuma emoção. Passava os dias de frente para a TV, embora, se ficasse de frente para uma parede, desse no mesmo.

Precisava de auxílio para comer, ir ao banheiro, para tudo enfim. Ela podia andar, mas não o fazia espontaneamente, na verdade, a única coisa que aparentemente deixava a menina bem, era quando o pai fazia exatamente como neste instante, cantava para ela. Como a mãe costumava fazer quando a carregava em seu ventre, como fazia na noite em que partiu para sempre.

Esta lembrança sempre fazia Emerson verter lágrimas, ele cantava para a filha, olhava para a noite lá fora, estrelada, com a lua bonita a enfeitá-la, olhava para a menina que dormia em seus braços e imaginava como seria se nada daquilo tivesse acontecido, como seria se pudesse ter uma vida normal, com a esposa ao seu lado, com a filha fazendo arte como todas as crianças, talvez tivesse um cachorro, sempre teve planos de ter um, seria bom.

Colocou a menina na cama com cabeceira de fadas, beijou a testa da garotinha e desceu, deixou a luz do corredor acesa e a porta aberta, como a mãe cantava na música, e torcia para que na manhã seguinte a filha pudesse correr pela casa e chamá-lo para brincar.

Estava perdido nesses pensamentos enquanto descia a escada, e acomodava-se no sofá da sala, Emerson tinha trinta e quatro anos de idade, mas aparentava muito mais, os últimos anos foram cruéis com ele. O homem passou a palma da mão direita pelo rosto, a barba por fazer arranhava a pele, olhos vermelhos denunciavam noites mal dormidas. Sua mente voava longe, vagava pelo tempo, até aquela noite fatídica, ele sempre se lembrava disso, todas as noites, durante todos os dias que se seguiram desde então.

Ele estava feliz naquela ocasião, tão feliz quanto nunca mais voltou a ser, a esposa, Rafaela, entrava no último mês de gestação, teriam uma menina em breve, o quarto da filha já estava todo decorado em rosa, com fadas e pôneis, contavam as horas, ele estava no andar superior e preparava-se para descer as escadas e encontrar a esposa logo abaixo, Rafaela estava sentada no sofá, o mesmo em que ele se encontrava agora, a jovem alisava a barriga e cantarolava para a filha que em breve viria ao mundo.

- Nãnãnãnã...nãnãnãnãnãnã.... – ela teve um pressentimento ruim – Emerson, está tudo bem aí?

O marido não respondeu, caminhava na ponta dos pés, também tinha tido um pressentimento, segurava um guarda sol fechado, pensava em usá-lo como arma caso necessário, passou pelo quarto da filha e depois pelo do casal, nada viu, se deu por satisfeito e retornou, caminhou de volta até a escada e respondeu:

- Está sim querida – foi só falar e ser tomado por aquela sensação de se ter alguém às costas, virou-se e se assustou, um homem trajando uma jaqueta negra de couro, com olhos amarelos faiscantes e dentes pontiagudos o encarava.

Tomado por puro reflexo, Emerson atacou o sujeito com a ponta de madeira do guarda sol que ainda estava em suas mãos. O invasor não esperava o ataque e teve o peito perfurado pela arma improvisada do humano. Emerson segurou o cabo com firmeza girando o corpo do homem até a beirada da escadaria, não suportou o peso e os dois caíram, lá embaixo a mulher se assustou com o barulho e gritou, porém mais assustada ficou ao ver o invasor estatelado no chão, imóvel, aparentemente morto, com o cabo do guarda sol cravado no coração.

O marido se refez do tombo, olharam um para o outro.

- O que é isso Emerson?!? Quem é ele? O que vamos fazer? Ele está morto...

- Não sei! Calma Rafaela! Ele invadiu a casa!

- Vê se ele está morto Emerson, temos de chamar a polícia, foi legítima defesa, ele queria roubar a casa, sei lá, nos atacar...

O homem fez como a esposa disse, checou o pulso do intruso e, nada, colocou a mão no peito, sentiu a respiração e, nada.

- É, Rafaela, acho que ele está morto mesmo.

- E agora? O que vamos fazer?

- Não sei!

- Vamos ligar para a polícia então, mas tire esse troço do peito do sujeito, está me dando nos nervos.

Novamente o marido fez como solicitado pela mulher, segurou firme o cabo e puxou. O que se seguiu foi algo próximo a um pesadelo, um filme de terror, o estranho abriu os olhos amarelos e a boca, exibindo os dentes horrendos, garras grotescas saltaram de seus dedos, levantou-se com o corpo ereto, sem por as mãos no chão, desafiando as leis da física.

A futura mãe gritou de forma desesperada e correu, Emerson reagiu melhor e cravou um belo chute no queixo do ressuscitado, que voltou a cair, rapidamente o rapaz tratou de correr dali, quem volta da morte não é alguém com quem se pode lutar, pensou. Escondeu-se junto da mulher.

- O que era aquilo Emerson? Isso não é gente!

- Não sei, não sei, veja, me alcance aquele frasco – disse apontando para um recipiente com uma válvula que estava na prateleira do armário de utensílios.

- Tome, pegue – aguardaram no corredor, o invasor surgiu diante deles.

- Fugir não vai adiantar! Encarem o destino, o medo que sentem é normal logo vai pas... – não teve tempo de completar a frase, fora surpreendido novamente, desta vez com um jato violento e preciso em seu rosto, o spray de pimenta não teve o mesmo efeito que tem em nós, foi um pouco pior, causou uma grande reação alérgica, bolhas surgiram instantaneamente em sua pele.

Por sorte, Rafaela havia deixado um dos utensílios do material de trabalho na casa, era da guarda municipal. O infecto caiu de joelhos, o que foi suficiente para que Emerson agarrasse tudo o que estava em sua frente e arremessasse contra ele, um jarro, quadro, porta-retrato, estava incontrolável, quando não tinha mais munição, começou a chutá-lo incessantemente, sua esposa chorava e gritava até que o invasor reagiu.

- Chega!! – girou a mão cheia de garras abrindo vários cortes no tronco do oponente – levantou-se, sua pele havia se recuperado, segurou Emerson pelo pescoço e o ergueu.

- Ouça, mortal, nunca um da sua espécie ousou me enfrentar desta forma, e tão pouco, paralisou-me com uma estaca. Você é valoroso, reconheço isso, pouparei sua vida, tomarei apenas a de sua mulher – dito isso, o infecto arremessou o homem para longe, fazendo-o cair sobre uma mesinha de centro, na sala.

- Nã, não – dizia o ferido entre tosses e engasgos – de-deixe Ra-Rafaela em pa-z-z... – sem dar ouvidos aos apelos de Emerson, o intruso caminhou decidido ao encontro de sua vítima, que chorava copiosamente. Ele afastou os longos cabelos cacheados da morena e mordeu seu pescoço úmido pelas lágrimas que escorriam, sorveu o sangue da mulher grávida até ser interrompido por uma forte pancada na cabeça.

Emerson segurava o que restou de um cabo de vassoura que acabara de quebrar na cabeça do infecto. O dono da casa estava cambaleante, sangrando bastante, mas não desistira de salvar a mulher. Por sua vez o intruso, com o sangue de Rafaela escorrendo pela boca, disse a ele:

- Muito bem, mortal, paciência tem limite, até mesmo para mim que tenho o tempo a minha disposição, mas está bem, oferecerei a você um trato, darei imortalidade para sua esposa, se assim for da vontade dela, e a vida do ser que está em seu ventre poderá ser salva, mas advirto-o, até mesmo eu, não posso assegurar a espécie que virá a este mundo. Se for da minha, ficará junto da mãe, na noite, se for da sua, eu a devolverei a você. Quer tentar?

O silêncio fora a resposta.

- Está bem, perguntarei a mulher, você – disse virando-se para Rafaela – você irá morrer logo, sua única chance é aceitar a escuridão. Você quer tornar-se um igual a mim e viver a beber o sangue dos da sua espécie? Decida-se logo! Para que sua conversão seja bem sucedida é necessário que você aceite e queira lutar para voltar a vida, caso contrário, a mudança não ocorrerá e você vai morrer. Eu não posso convertê-la por você, ninguém pode. Você quer viver, mortal? Vai lutar pela vida? Vai ressurgir? Você quer o primeiro sangue? Diga, humana, quer sorver o primeiro gole? Quer que eu seja sua primeira vítima?

O estranho rasgou o próprio pulso fazendo gotejar o líquido negro que corria em suas veias. Rafaela sentia sua vida escapar, qual os grão de areia de uma ampulheta, olhou para o marido, que jazia inconsciente atrás do invasor, pensou na filha e no que disse o homem de negro.

- Sim – disse finalmente – eu quero lutar pela vida, me converta, por favor.

O infecto sorriu e pousou o pulso aberto na pequena boca da esposa de Emerson, longos goles foram sorvidos por ela, o estranho carregava uma pedra rubra na mão esquerda, e esta começou a brilhar intensamente, ao passo que farelos da mesma cor espalharam-se por todo o ambiente, tal qual purpurina, parecia que vinham do céu. Por fim o invasor retirou o braço, cicatrizou o corte e dirigiu-lhe a palavra novamente.

- Agora você vai lutar para voltar, te levarei comigo onde ficará a salvo dos raios do dia, quando acordar, se acordar, será um novo ser.

Mas, antes da noite seguinte, quem acordou foi Emerson, não estava em casa e não viu a esposa, ele estava em uma cama de hospital, um vizinho o levara após chegar em sua casa, sendo alertado pelo barulho, e encontrá-lo desacordado. Ele, Emerson, nunca mais veria a esposa, estava desolado.

Levou alguns dias convalescendo, quando pôde retornar para casa, não tardou a receber uma visita.

Como acontece em desenhos animados e filmes na TV, uma cesta fora deixada em sua porta, dentro dela repousava um bebê, a filha de Emerson estava lá, então ela não se tornara uma deles. A chamou de Michelle, como queria a mãe, sabia que esta não voltaria mais, teria se tornado um ser da noite, não adiantaria procurá-la, sua esposa se fora para sempre.

Emerson, naquele instante, decidira empregar todos os seus esforços para ser o melhor pai, e mãe, que a menina pudesse ter. Aprenderia sobre a espécie do maldito que arruinara sua vida. Ele só não sabia que sua tarefa seria tão árdua.

Emerson adormeceu envolto nessas lembranças e muitos pesadelos o atormentaram no decorrer de toda a noite, quando acordou sentiu-se mais cansado do que antes. Subiu as escadas para ver a filha, e quando entrou no quarto rosado, seu coração fora tomado por tamanha dor, só sentida doze anos antes, vira a menina estática, caída no chão, braços estendidos, chamou-a, sacudiu-a, e ela não despertou, estava viva, mas não reagia.

Minutos depois estava em uma clínica, Michelle estava na UTI, em coma, para o profundo desespero de Emerson. Não é preciso relatar a dor e o sofrimento que a vida mais uma vez proporcionou ao debilitado homem.

Meses se passaram e o estado da garotinha não se alterou, poucas coisas foram objetos de desejo do pai de Michelle durante toda a sua vida, mas uma coisa ele queria. Ele queria saber o que se passava na cabecinha da filha, o que ela pensava? Ela teria consciência das coisas? Ela o reconheceria? Talvez ele nunca viesse a saber, mas se por algum toque de mágica, se por algum encanto pudesse por um instante ler a mente da garotinha, ele veria um turbilhão de nuvens multicor, e uma voz, uma voz conhecida que começou bem discreta, quase inaudível, mas que agora era nítida e era de fato familiar, a voz entoava um cântico, suave e constante:

“Vem a noite e a escuridão

Toma a vida e o coração

Inunda a alma e aflora a pele

Já não demora, acorda Michelle

Estreito é o laço, gelada é a morte

Fora entregue à própria sorte

Mesmo antes de nascer

Reaja agora e volte a viver

Solte a raiva que o ódio impele

Já não demora, acorda Michelle

Libera o mal que seu corpo expele

Já não demora, acorda Michelle

Não pode demorar, levanta Michelle

Acorda Michelle – Michelle- Michelle”

Os olhos da garotinha se abriram, castanhos e vivos, semelhantes aos da mãe que não chegou a conhecer, mexeu os dedos das mãos, abriu levemente os lábios e falou: PAI !

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 17/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1490425
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