A MULHER DA LUZ AZUL
Finalmente ele começava a se recuperar. Havia passado por momentos difíceis desde a morte de seu melhor amigo, quase irmão, na verdade. Eram tão unidos quanto se pode imaginar em uma amizade. Mas numa madrugada, ao retornarem a pé para casa, o rapaz fora vítima de um atropelamento fatal, o condutor do veículo fugira, sem prestar socorro. Pelo menos essa fora a opinião da polícia, e a versão oficial para o caso.
Mas para Leonardo, a história teria sido outra, mais violenta, improvável e difícil de aceitar. Para ele, a morte do amigo fora algo sobrenatural, fora obra de quem ele chamava a mulher da luz azul.
Segundo a sua versão, eles retornavam da casa de seus tios, era algo em torno das três da manhã, decidiram caminhar porque já era tarde o suficiente para conseguirem um ônibus, não possuíam dinheiro para um táxi, e além do mais, achavam que a caminhada serviria para queimar um pouco das calorias obtidas com todos os cachorros-quentes que comeram, acompanhados de muito refrigerante.
A estrada estava completamente deserta, desde que haviam vencido o entorno da praça, onde apressaram o passo a fim de não se misturarem às pessoas que consumiam drogas, ou que ofereciam seus préstimos aos carros que paravam, desde aquele ponto, não cruzaram com mais nenhum veículo ou pessoa.
A reta seguia por mais ou menos uns três quilômetros, mas não estavam com pressa, apesar da violência que costuma assolar as grandes cidades, o bairro até que estava tranqüilo ultimamente, e, além disso, nada tinham para ser roubado.
Conversavam animadamente, quando, do nada, passou ao lado deles uma moça que corria de forma apressada, ela era de aparência jovem, trajava um vestido esvoaçante em tons dourados, estava descalça, seus cabelos loiros balançavam como se o vento batesse neles com fúria, porém nenhuma brisa soprava naquela madrugada. Eles pararam devido à inusitada cena, entreolharam-se e tornaram a reparar na estranha figura que já estava desaparecendo à frente deles, correndo como uma atleta olímpica.
- Léo, você não acha que está um pouco tarde para se fazer cooper?
- O pior é que nunca vi ninguém correr vestido desse jeito. Cara reparou que ela estava descalça? Será que ela estava fugindo de alguém? Por que será que não pediu ajuda?
- Leandro, na boa, se você fosse uma garota e estivesse fugindo de alguém, pediria ajuda a um cara feio e esquisito igual a você às três e quinze da manhã? Fala sério.
- Muito engraçadinho, como se você fosse um modelo de beleza.
Os dois riram bastante da troca de gentilezas, buscando talvez extravasar a tensão que tomou conta de ambos. Porém, o pior estava por vir, mal se puseram a caminhar novamente e foram acometidos por outra surpresa.
- Mas o que é isso?!?
Gritou Leandro quando fora deslocado para o lado. A mesma mulher passava novamente, desta vez entre eles e sem fazer barulho enquanto corria, não ouviram nenhum som de passos.
- Hei moça, cuidado!
Falou Leonardo enquanto se levantava, havia caído devido ao empurrão dado pela mulher.
A mulher corria mais rápido agora e já fazia a curva em direção ao final do bairro..
- Leandro, como essa mulher chegou tão rápido aqui? Meu Deus do céu, não tem como ela dar a volta na praia e chegar aqui tão rápido, é impossível, nem o Ben Johnson anabolizado e correndo na velocidade da luz seria capaz de tal proeza.
- Cara, ela não voltou pelo mesmo caminho não, se ela chegou aqui foi dando a volta na praia, só que não passou nem um minuto desde a primeira vez. Isso é assombração Léo, vamos correr, vamos dar o fora daqui, estamos longe de casa ain...
Fora jogado para o ar por algo que viera ao seu encontro sem aviso, subiu coisa de dois metros e caiu no chão. Tentou se levantar e fora atingido novamente.
- Léo, me aju...
Estava sendo jogado para o alto e esborrachava-se no chão, para logo em seguida ser jogado novamente e voltar a cair.
Leonardo apavorado tentou correr para ajudar o amigo, mas na ânsia tropeçou em suas próprias pernas indo ao chão. Olhou para Leandro que já não era mais jogado para cima e arrastava-se pelo asfalto.
O rapaz estava muito machucado, várias escoriações eram visíveis nos braços, rosto, cotovelos e joelhos, mas o pior era a expressão de pavor no seu rosto, as lágrimas escorriam pelos cantos dos olhos, ele gritaria se tivesse voz para isso, ele correria se suas pernas sustentassem o corpo, ele queria sumir, mas não era possível. Tentou levantar, mas fora impedido por um pé descalço, que em suas costas, mantinha seu corpo grudado ao chão.
- Socorro Léo, socorro...
- Eu vou te ajudar, agüente firme.
Leonardo pôs-se de pé e apesar de todo o medo que preenchia o seu coração e gelava a sua alma, deu um passo decidido a ajudar o amigo, mas quando se preparava para dar o segundo, seu corpo enrijeceu como se todos os músculos tivessem abandonado sua vontade, o cérebro dava a ordem para as pernas moverem-se, mas como se elas tivessem vontade própria, mantinham-se paralisadas, pois essa vontade ordenava que ali elas permanecessem.
O rapaz fora tomado pelo desespero de ver seu amigo ser dominado por aquele ser hediondo em forma de mulher. Ele olhava tudo sem ter o que fazer, era um mero espectador, ele não tinha outra opção a não ser assistir, queria fechar os olhos, mas suas pálpebras não deixavam, queria chorar, mas as lágrimas não vinham, ele sabia que tudo estava perdido, não havia ninguém ali, não haveria ajuda, seria o fim de ambos.
A mulher que possuía um rosto simétrico e totalmente frio, sem cor, com os cabelos loiros espalhados no ar abaixou-se sobre Leandro, virou bruscamente o rapaz para que este ficasse de frente para ela e indiferente ao desespero e às súplicas dele, segurou sua cabeça colocando cada mão sobre uma orelha. O rapaz sentia o toque amortecer a sua pele como se tivesse recebido uma anestesia diretamente em cada canal auditivo. A mulher forçou a mandíbula do rapaz com os dedos a fim de que este abrisse a boca, em seguida ela abriu a sua própria e soprou um ar gelado para dentro da boca de Leandro.
O ar percorreu toda a garganta e ele sentiu como se este ar tomasse conta de todo o seu corpo, de forma súbita, a sensação era de que não tinha mais emoções, não tinha mais medo, não queria chorar, gritar ou fugir, sentia só o vazio.
Ele soluçou e uma fumaça azulada parecida com o tom de néon escapou de sua boca, imediatamente a mulher puxou a fumaça para dentro de sua boca. Ela soltou a cabeça do rapaz que bateu violentamente no chão. Mas ele não sentia mais dor, não sentia mais nada, estava caído sem vida na avenida que tem o nome que um dia já foi o da terra onde estavam.
Seu corpo começou a ressecar como se nunca tivesse existido vida nele, tão rápido, tão brusco, sua pele parecia a casca de uma fruta ressequida largada ao sol de verão no nordeste brasileiro. A mulher mal tocava o chão, sua pele brilhava levemente, com o mesmo tom da fumaça que carregava a essência da vida de Leandro, ela ajoelhou-se e encostou a boca no solo e soprou, logo apareceu uma linha tênue que cobriu o chão negro seguindo na direção de onde os garotos vieram.
As linhas ramificaram-se e tinham a aparência do sistema circulatório humano, as veias da terra acendiam em tom fluorescente à medida que a mulher soprava, transferindo a energia roubada, ninguém apareceu durante todo o ritual. Tão logo a estranha figura terminou a transfusão, as linhas foram apagando-se gradativamente até desaparecerem por completo.
A mulher ficou de pé novamente, gritou enlouquecida, o grito era pavoroso e Leonardo teve a sensação de que seus ouvidos explodiriam. Ninguém apareceu, ninguém viu ou ouviu nada, somente ele, Léo, fora testemunha do terrível espetáculo, e agora pensava o que aconteceria a ele.
Da mesma forma como fora paralisado, seu corpo fora liberado e tirando o formigamento, parecia que tudo estava certo, embora apavorado pelo que vira e pelo que achava que aconteceria. Mas ele não correu, nem tentou, ele pensou que se tivesse de morrer, não seria sem luta, se aquela mulher tivesse matéria no corpo, ele tentaria atingí-la.
Levantou os punhos e encarou a mulher. Ela olhou para ele e pela primeira vez esboçou uma expressão. Sorriu de forma debochada e ao mesmo tempo apavorante, abriu os braços e correu na direção dele.
Leonardo trincou os dentes já imaginando o baque que o levaria para o ar, tal qual acontecera a seu amigo morto, ele fechou os olhos e preparou um soco, um suor gelado escorria por todo o seu corpo, ela aproximava-se e quando estava para atingí-lo, subitamente desviou do encontro. Leonardo sentiu o deslocamento de ar, abriu os olhos e procurou a mulher.
Não estava a sua frente, ele então girou o corpo olhando para trás, avistou ao longe a figura esvoaçante chegando novamente ao final da avenida, para em seguida sumir. O rapaz ficou mais preocupado, pior do que ter aquela mulher na sua frente, era quando ela aparecia do nada, como um fantasma dos infernos. Ele ficou atento, olhando ora para um lado, ora para outro, ninguém apareceu, nem a mulher, tampouco outra pessoa, apenas ele e o corpo ressequido de Leandro.
Tentou chegar perto do corpo do amigo, mas não conseguiu.Sem mais o que fazer, colocou-se a retomar o caminho de casa, desta vez chorava copiosamente, a cada passo dado, a certeza de que sua vida nunca mais seria a mesma, a cada passo dado sentia suas pernas pesando toneladas, ninguém ali, somente ele, passos na escuridão, caminho sem volta, vida que foi, para nunca mais voltar, assim ele pensou.
O corpo de Leandro não fora achado ressequido, apresentava apenas os ferimentos e as escoriações, o que levou à versão da polícia e conduziu o rapaz até o sanatório por um longo tempo.
Mas, as coisas voltaram ao normal, às custas de muito tratamento e várias sessões de terapia, finalmente ele se dera conta de que tudo não passara de um choque causado pelo acidente com o amigo, tudo não passava de alucinação. E agora ele poderia retomar os estudos e o trabalho.
E assim seguiu sua vida até o dia em que navegando pela internet, deparou-se com a notícia sobre a morte de um famoso médico, ele o conhecia, era o mesmo que o havia tratado, e o livrado das alucinações, e mesmo ali, através da tela do computador, ele conseguiu distinguir na fotografia uma leve e familiar luz azul no asfalto.
Fora o bastante para ele. Num último ato de desespero, atravessou o escritório e se jogou pela janela, sem que os colegas do trabalho tivessem tempo de impedir.
Todos correram para o vão aberto, e viram vinte andares abaixo, o corpo do rapaz imóvel. Vítima de sua própria loucura?