UM OUTRO CLICHÊ - BRUXAS

Os braços da mulher estavam em carne viva. O sangue dos novos ferimentos se misturava às manchas pegajosas daquele que já estava ressequido. Eles não tinham pena, a misericórdia não habitava seus corações.

Sob chutes, xingamentos e pedradas, ela era arrastada para o centro da praça. Os grilhões que prendiam seus braços e pernas não lhe davam oportunidades para fuga. As correntes, pelas quais era puxada, produziam uma sinfonia macabra no contato com o chão.

Não se trata de nenhum vilarejo europeu, que nos remeta à época da Inquisição, longe disso, o local nos é bem mais próximo, mas ao que parece, a tradição, esta sim, é bastante semelhante aos antigos hábitos, o diferente é maldito e, portanto, merecedor de punição.

A mulher fora amarrada a um tronco, e este estava cercado por toras, gravetos e palha. A multidão clamava por justiça, queria sangue, desejava que o fogo sagrado consumisse até os ossos daquele ser hediondo, daquela fugitiva do inferno.

- Morte à bruxa! Morte à bruxa – gritavam enlouquecidos.

O delegado da cidade, um dos mais inflamados, segurava um isqueiro e derramava o conteúdo líquido de um vasilhame nos pés da mulher amarrada. Esta não implorava por perdão, não se debatia, não se manifestava, seus olhos não produziam uma só lágrima.

- Queime! Queime! Queime! – Era a voz da turba.

- Parem! – Todos, incluindo o delegado, se viraram na direção do homem que bradava.

Era o prefeito da cidadezinha, acompanhado dele, estavam muitos soldados da força militar do povoado vizinho.

- A menos que vocês queiram iniciar uma guerra, onde muitos morrerão, soltem esta mulher. Agora!

- Senhor prefeito – dizia o delegado, enquanto apontava para a acusada – está mulher é uma vil criatura, capaz das coisas mais absurdas e maldosas, coisas que nem me atrevo a reproduzir aqui em palavras, ela não merece viver sob o mesmo céu que nós, tementes de Deus, vivemos.

- Deixe de falar asneiras, homem! Desde quando podemos julgar alguém por viver de forma diferente de nós? Cultivar algumas ervas e raízes é algo anormal? Seguir sua própria crença é crime? Tem gente que prefere a lua ao sol, que gosta da noite ao invés do dia. É questão de opção, meu caro delegado, opção. E agora, liberte a moça. Já!

Sem ter muita opção perante os inúmeros rifles que apontavam em sua direção, o delegado fez a vontade do prefeito. A mulher, uma vez liberta, caiu aos pés do homem que clamara pela sua liberdade. Finalmente deixara correr solto o pranto contido desde o dia anterior.

- Muito obrigada, senhor. Muito obrigada por seu gesto, eu prometo jamais esquecer o que o senhor fez por mim.

- Nada disso é necessário, se levante e vá para casa.

- Meu código de honra diz que devo pagar pelo ato em meu favor.

No dia seguinte, o prefeito corria e gritava enlouquecido pelas ruas da pequena cidade, carregava um pedaço de papel em uma das mãos. O choque ao ver o corpo do delegado, com a pele retorcida como um espiral, e atravessado por ferros afiados, não fora tão grande quanto o que teve ao ler aquelas palavras escritas com sangue.

“ Senhor prefeito, deixo-te em praça pública o adversário político que não voltará a te incomodar mais. Comigo levo o teu menino, para que ele cresça em sabedoria e se torne um valoroso servidor. Maior préstimo a ti, não posso conceder. Sarah”.

* Um clichê para Bruxas - Leia também os contos " Lugar comum" e "Estereótipo"

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 01/03/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1464643
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