MARCAS NO CHÃO, GRITOS NO AR

A dor, que no início atingia apenas os seus pés, começava a se espalhar rapidamente para as pernas. O simples ato de dobrar os joelhos necessitava de imensa força de vontade. Não sabiam quanto tempo estavam perdidos. Horas? Dias? Haviam perdido completamente a noção, parecia sempre noite naquela floresta, uma noite escura, onde as estrelas e a lua não ousavam aparecer. O cansaço e a fome assolavam a todos, já não agüentavam dar mais um passo, as provisões que levaram para aquela que deveria ter sido uma simples trilha ecológica, estavam no fim. O que mais os perturbava era o estranho sumiço do guia, o fato ocorrera logo após os gritos e pedidos de socorro que ouviram, o rapaz decidira responder e seguir até a origem do som, mas, logo em seguida, desaparecera, e a voz que chamava, se calara também.

Agora estavam nessa situação; sem guia, perdidos e confusos. A bússola se tornara um instrumento inútil, o ponteiro girava sem parar, não indicava um caminho, uma saída, não sugeria um fio de esperança. Um princípio de arrependimento começava a invadi-los, será que fora realmente uma boa idéia aventurar-se nessa jornada? Será que a única experiência prévia do guia nessas terras fora suficiente?

Realmente não sabiam, mas uma coisa era certa, nunca fora tão forte a saudade das boas terras do Alto Jacuí , estas, naquela altura, lhe pareciam mais desejáveis do que nunca, o que estariam fazendo agora se lá estivessem? Tantas possibilidades. Mas, agora, as prioridades estavam ali: achar o guia e amigo conterrâneo e sumir daquele lugar o mais rápido possível.

Com muito esforço conseguiram se levantar e colocaram-se novamente a caminhar, o rapaz à frente, e as duas meninas logo a seguir, o feixe de luz de suas lanternas mal dava para iluminar o caminho, os gigantescos troncos das seculares árvores pareciam se espremer em todas as direções. O silêncio que até então imperava, desde o desaparecimento do guia, fora subitamente quebrado, um grito pavoroso, estridente, como se tivesse saído do fundo da garganta da terra se espalhou como fogo em lenha, levanto o trio a tapar os ouvidos com as mãos.

- O que foi isso? – Quis saber uma das garotas.

- Não sei, mas é melhor não ficarmos aqui para descobrir – respondeu o rapaz.

Mal completou a frase e um novo grito se seguiu, era uma voz conhecida, era a voz do amigo desaparecido!

- Aqui! Por aqui! – Dizia a voz.

- Vamos. Precisamos ajudá-lo – falou a outra menina.

- Não! Espere! – Disseram os outros dois, em uníssono.

A menina não esperou, correu na direção de onde supunha vir a voz do companheiro. Desapareceu do campo de visão, fora absorvida pela escuridão da mata.

Os gritos e as vozes cessaram, e foram substituídas por um som estranho, um estrondo que fazia tremer as folhas e as pedras sob seus pés, parecia um pilão de tamanho imenso que socava o solo com um ímpeto avassalador. Ficaram com medo, se abraçaram, não ousaram sair de onde estavam, sentiam todo o peso do mundo em suas pernas paralisadas. Temiam pela amiga que se embrenhara na mata, e esta, podem acreditar, não estava em situação melhor.

A garota caminhava pé ante pé, fazia força para puxar o ar para os pulmões, só agora se dera conta do tamanho da besteira que fizera, não resistira e fora praticamente impelida a seguir a voz que chamava, voz esta que não estava ali, seus amigos ficaram para trás, e agora, era somente ela, aquele ruído ritmado e infernal, a escuridão, o receio, e o que era aquilo que ela via no chão?

Pareciam marcas, sim, eram marcas profundas no solo, eram círculos perfeitos, seriam pegadas? Mas que tipo de coisa deixaria pegadas como aquela? Fazia várias perguntas para si mesma, mas obviamente as respostas não vinham com semelhante facilidade. O rastro das pegadas circulares se espalhava em todas as direções, parecia que alguém havia impresso no chão as marcas do fundo de uma garrafa, uma garrafa enorme a bem da verdade.

Ela não conseguiu conter o desespero, se acocorou no chão e começou a gritar, e qual não foi a sua surpresa ao notar que a sua voz se espalhava em diversas direções, e pior, emitia palavras que não saíram de sua boca. Como aquilo era possível? Ela já havia parado de falar, mas a sua voz ainda ecoava pela mata, pedia ajuda, indicava um caminho, chamava por seus amigos. O que estava acontecendo? Quem estaria imitando a sua voz?

Seja lá quem fosse, ela teve uma certeza: ele estava perto, bem próximo de onde estava, pois conseguia ouvir um grunhido medonho, uma respiração pesada, sentia um odor que lhe causava repulsa e náuseas. E aquele barulho? Que barulho era aquele? Um “bate estaca” incessante, vinha de trás, vinha da frente, de todos os lados, queria chorar, mas as lágrimas haviam secado. Deitou no chão e olhou para o alto, e este fora o seu último ato, uma coisa grande, redonda e pesada caíra sobre ela, vindo do alto das árvores, esmagando o seu crânio, estava morta, nunca mais veria os jardins de seu Rio Grande.

A dupla, que ficara abraçada, ouvia os chamados e pedidos de ajuda da garota que havia corrido em auxílio ao guia, mas era estranho, eles não sabiam ao certo a origem da voz.

- Eu preciso ajudá-la.

- Acalma-te, guria, precisamos ficar juntos – dizia o rapaz – olhe, o que é aquilo?

Seus olhos se viraram na direção de onde, instantes antes, a outra menina havia seguido, mas o que estava lá não era ela, muito menos o amigo guia desaparecido, o que estava lá era outra coisa, na altura se assemelhava a um homem comum, mas definitivamente, de comum não havia nada. Vista sob aquela luminosidade tênue, sua pele exibia uma coloração semelhante a da terra barrenta, exceto pelo ponto claro e arredondado que ficava mais ou menos na altura de onde seria o umbigo. De sua cabeça, enfeitada por cabelos desgrenhados e fartos, surgia um único e pequeno chifre pontiagudo. Olhos cuja maldade transbordava e uma boca imensa preenchida por dentes afiados e longos davam uma expressão ameaçadora a ele.

No entanto, o que era mais perturbador não era isso, nem os braços longos e fortes, ou as mãos, nas quais garras curvas e negras eram expostas, não, não era isso, o que mais chamava a atenção era a perna única, cujo pé, bizarro e redondo, produzia marcas características no solo. Saltava alto e caía, causando um estrondo no chão, urrava e ameaçada os invasores de seu território.

A dupla tentou fugir, em vão, foram impedidos pelos braços da fera, que havia saltado, parando em frente de onde estavam. A garota foi ao chão, e o rapaz suspenso no ar e atirado em seguida. Com o rosto ferido voltado para a terra, sentiu suas pernas serem esmagadas pelo pé único do ser, gritou, e teve o seu grito imitado por ele. As garras enegrecidas agarraram-no pelos cabelos, enquanto a outra mão dançava com movimentos rápidos e precisos, estraçalhando roupa, pele e músculos, derramando o sangue e as vísceras do rapaz.

A garota encontrava-se em fuga desabalada, e ouvia às suas costas o som do perseguição, a terra tremia e ela sentia que o seu fim estava próximo. Súbito, a fera surgiu na sua frente, e por puro reflexo e senso de preservação, a garota golpeou-a com a única coisa que podia, a lanterna que estava em sua mão, e maior sorte não poderia ter lhe acometido, o golpe, mesmo sem intenção, atingiu o ponto branco no abdome da fera e esta começou a se contorcer em dor, dando-lhe tempo e condições para uma nova tentativa de fuga.

Correu como pôde, e às cegas naquela escuridão, se sentia como um rato num labirinto perverso, tendo em seu encalço um gato faminto, que apenas esperava a oportunidade para devorá-la. De repente, esbarrou em alguma coisa, e essa coisa gritou no momento do encontro. A garota, caída ao chão, tremia e choramingava, sabia que desta vez não escaparia, não teria como, mas...uma luz iluminou o seu rosto e então ela viu.

- Victor!?! É você? Graças a Deus é você! Achava que tivesses morrido.

O guia esticou a mão para ela e disse:

- Levante, guria! Ele ainda está por aqui e há de nos perseguir, vamos. Não podemos dar atenção as vozes que chamam, passei maus momentos atendendo a elas e quase enlouqueci. Corra! Venha comigo!

Correram mais uma vez por entre as árvores e arbustos da mata fechada, logo começaram a ouvir novamente o som que seria o presságio do mal, tinham plena certeza de que se escapassem dali, ainda ouviriam esse maldito som ecoar em suas cabeças por muito tempo. Os estrondos que tremiam o chão estavam cada vez mais próximos, e o pior, não sabiam de onde vinham, esse fato, somado ao breu total, transformava aquela jornada em uma viagem ao inferno. Mais perto, mais perto, cada vez mais perto, então...caíram.

Um leve raio de sol incidiu sobre o rosto de Victor, despertando-o. Estava ferido, com as roupas rasgadas, mas...estava fora da floresta, não sabia como havia saído, bem como não sabia onde estava a sua amiga. Encontrava-se na margem de um rio, atrás dele, a escura e fria floresta, um novo dia começava, e antes que pudesse acertar seus pensamentos, ele ouviu:

- Victor! Victor! Me ajude! Estou aqui, desse lado! Por favor, me tire daqui!

Era a voz de sua amiga, mas será que tratava-se de fato dela? Não, não era, pensou, com certeza era mais uma dos artifícios daquela fera, e desta vez ele não seria enganado. Então, levantou-se, tirou o excesso de poeira do que sobrara das roupas e esticou o corpo. Lamentava-se pela perda dos três amigos, mas agora, ele só pensava em voltar para sua terra, para os verdejantes jardins do Sul. Caminhou na direção do sol, sem olhar para trás, sem dar atenção a voz enganadora.

Victor sabia o que estava fazendo, mas no interior da floresta, presa por cipós que se atrelavam às suas pernas, estava sua amiga, que gritava e chorava, implorava por ajuda, via de longe seu amigo ir embora, e ouvia cada vez mais próximo o som, o som, que nem em outra vida, ela esqueceria.

Esse conto é inspirado na Lenda do Pé-de-Garrafa, por sugestão do meu amigo, Victor Meloni.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 19/02/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1447764
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