Dentro da Noite
Otávio entrou em casa e encontrou o televisor ligado com o som muito baixo, enquanto sua filha dormia tranqüilamente no sofá da sala. Em bicos de pés caminhou até o banheiro para lavar o rosto suado e as mãos sujas de terra, mas uma mancha vermelha que empapava um dos seus sapatos marcou todo o caminho percorrido por ele no assoalho de madeira. Passava das duas horas, quando ouviu o apito do guarda-noturno guinchar seco e cortante na friagem da madrugada, feito uma facada nas costas. Otávio estremeceu, suas pernas bambearam e ele teve de sentar-se no vaso para não cair, afiando os ouvidos o mais que podia para ver se escutava qualquer coisa. Nada. Lá fora, apenas o vento cantava uma triste cantilena para os mortos.
Passado alguns instantes, Otávio levantou-se, tirou a camisa encharcada de suor gelado e a torceu na pia. Seu coração ainda batia descompassadamente e se naquele momento a campainha da sua casa tocasse histérica, com ele tentando se acalmar ali diante do espelho, era bem provável que o infeliz tivesse um enfarte fulminante. Pensava em sua filha, naquela criança que já era uma moça e dentro de poucos anos não mais lhe pertenceria. Sabia que a vida era cruel e que os homens eram cruéis. Por isso a guardava de todos os homens feito um cão de caça, como propriedade sua, receoso de que algum canalha a seduzisse e a enganasse.
Ao sair do banheiro, Otávio quis levar sua filha nos braços para a cama, como costumava fazer quando ela era ainda menina, mas achou por bem deixá-la dormindo no sofá para não acordá-la. No fundo, sentia que não tinha mais a mesma intimidade de outros tempos. Também era homem e sabia-lhe mulher; por isso agora era como se existisse uma barreira invisível entre eles, a separar-lhes cada vez mais os destinos. Otávio desligou o televisor e ao voltar-se para trás, viu as tábuas do assoalho manchadas de vermelho a delatar-lhe os passos. Admirou a sua negligência, equívocos de principiante, e dirigiu-se para a área de serviço a fim de lavar os sapatos. Em seguida, voltou com um esfregão nas mãos e, silenciosamente, limpou todas as manchas da sala. Depois apagou a luz e subiu para o quarto. Sua esposa dormitava e lhe perguntou ainda ensonada onde é que ele tinha estado até esta hora:
- Bebendo com a turma. Boa noite, querida!
A vida de Otávio tinha caído na mais perversa rotina. Era de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Casado há quase vinte anos, pouco havia restado do jovem alegre e folião que fora. Bancário, pertencente a chamada classe média-alta e mergulhado na burocracia de papéis que mal suportava, chegara a conclusão que a sua existência definhava. Vivia infeliz e taciturno, arredio, resmungando sozinho pelos cantos palavras que ninguém entendia. A única diversão que se permitia era sair com a turma às sextas-feiras para beber conforme explicava à mulher.
Um dia, a esposa de Otávio encontrou nas calças do marido uma mancha de sangue. Era sábado e na véspera Otávio tinha saído para beber com a turma como tinha acostumado. Indagado a respeito, o marido afirmou que aquilo não se tratava de sangue, mas de ketchup, que desastradamente lhe caíra sobre as roupas. A mulher fez um gesto de quem acreditava e mudou de assunto. De outra feita, ela descobriu na blusa dele uns fios de cabelos compridos, muito loiros e passou a desconfiar que Otávio a estava traindo com outra mulher. Todavia, dessa vez nada disse ao marido e trancou a dúvida nos estratos vazios do seu peito.
Na sexta-feira seguinte, Otávio beijou sua esposa e saiu para encontrar a turma. Era uma noite escura, embebida nas trevas e tão fria que o vento congelava os ossos. Além disso, chovia escandalosamente, de maneira que a mulher achou não ser noite das mais propícias para se embriagar pelos bares com os amigos. Mas também não disse nada.
Otávio rodou pela cidade sem destino certo até estacionar próximo de um bar suspeito na periferia. Ali entrou e permaneceu sozinho bebendo por um bom tempo. Depois voltou para o carro e saiu com os faróis apagados e os vidros levantados, de forma que não se podia distinguir quem vinha dentro do automóvel. Entrou por uma rua de barro, mal-iluminada, com pouquíssimas casas pelos arredores. Parou o carro embaixo de uma árvore e desceu, embrulhando-se quase que totalmente sob um grosso capote de chuva e um chapéu. Andou alguns minutos a passo lento até encontrar o que procurava: a casa com lâmpada vermelha na porta.
Uma moça achava-se do lado de fora, debaixo de um toldo, esperando pela clientela. Otávio foi se aproximando vagarosamente, escondendo-se atrás dos postes e nos vãos escuros que ia encontrando pelo caminho. Trazia numa das mãos junto ao peito um punhal afiado e na mente a mesma idéia fixa que se apoderara da sua existência: beber com a turma! Que perturbações cerebrais levara tal homem a cometer tamanhas atrocidades com vítimas inocentes? Que desvios patológicos pré-existentes em sua alma o conduziram a assassinatos tão infames?
A moça abaixou o rosto e fez concha com a mão para riscar um fósforo e acender seu cigarro. A fumaça esvaiu-se no ar, perdendo-se nas trevas. Otávio chegou pelas costas da menina, segurou-a por trás tampando-lhe a boca e, violentamente, enfiou o punhal em suas costelas por doze vezes. A moça caiu morta a seus pés e só então Otávio viu horrorizado, os olhos lhe saltando das órbitas, aterrado, fulminado pelo destino cruel que lhe reduzia a nada: tinha esfaqueado a própria filha.