JARDIM DOS AFLITOS
JARDIM DOS AFLITOS
A casa estava envolta em sombras e silêncio, havia claridade numa das janelas coberta por cortinas. Os dois homens ao lado do carro estacionado próximo dali, preparavam-se para a invasão. Era o momento da tensão, da adrenalina, do medo, pois algo poderia sair errado.
— Não acha melhor pedirmos reforço? – Perguntou um dos policiais.
— Tem só dois traficantes lá dentro. Você viu. Podemos dar conta deles. O mérito de prender o chefão será só nosso. – Respondeu o colega e retirou um envelope do bolso. Colocou o conteúdo sobre o capô e aspirou o pó.
O companheiro não se surpreendeu. Já desconfiava que ele era um viciado. Na apreensão de drogas separava um pouco para seu próprio consumo.
— Quer um pouco? Isso te dá mais coragem e força.
O outro sacudiu a cabeça, recusando. Em seguida sacaram as armas e avançaram. Arrombaram a porta com um pontapé. Os dois traficantes estavam na sala, contando dinheiro. Encostado na parede, uma pilha de pacotes com drogas. À voz de prisão não foi obedecida, os criminosos sacaram suas armas e aconteceu um tiroteio. Os bandidos acabaram mortos. Um dos policiais foi ferido de raspão no braço, o outro ria pelo sucesso da missão.
Ao perceber que o tiroteio tinha acabado, uma mulher saiu do banheiro. De olhos arregalados e rosto pálido, circundou o olhar pelo ambiente.
O policial parou de rir, colocou a arma do coldre e foi na direção dela, perguntou o nome, ela respondeu, evitando olhar os corpos no chão sobre as poças de sangue.
O policial deu um murro no rosto da jovem, que caiu semi-inconsciente. Ele atirou-se sobre ela e começou a arrancar suas vestes. O colega tentou evitar o estrupo, mas o policial jogou-o para o lado e puxou a arma.
Um tiro soou e a cena do crime foi alterada
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A sala era pequena, sem janelas. Tinha apenas uma mesa e duas cadeiras. Numa delas estava a mulher, sentada, olhando para uma parede cinzenta, com um dos olhos roxos.
Um homem de terno escuro entrou. Era o terceiro investigador a fazer perguntas. Como das outras vezes, ela repetiu a mesma história, eles lutaram. mesmo baleado, o bandido conseguiu pegar a arma de um dos policiais e matou o outro o outro policial.
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Miguel decidiu enfrentar o medo para estar ali, sentado no banco da capela mortuária, ao lado do féretro. Evitava olhar a expressão de dor e tristeza no rosto da viúva, no lado oposto da sala. As pessoas vinham e iam, olhavam o morto, mentalmente se despediam fazendo uma prece, davam os pêsames à esposa, e saiam porque não havia mais lugar ali dentro. Eram policiais, detetives, delegados, amigos, colegas e conhecidos. Até um comissário aposentado veio dar seu último adeus ao falecido, um policial exemplar que morreu no cumprimento do dever. Era o que todos julgavam.
Miguel sentia-se esmagado pela atmosfera sufocante. Queria sair dali, mas alguma coisa prendia-o ao assento. Um sentimento de culpa deixava-o duro, rijo. Levou uma eternidade para erguer a mão até a aba do nariz, que coçava. Arrependia-se por não ter chegado mais tarde. Faltava ainda, 1 hora e meia para o sepultamento.
Recordou àquela noite, dois dias atrás, quando receberam ordens para investigar o paradeiro de um traficante de drogas. As cenas permaneciam vivas em sua mente. Queria fugir daquilo tudo. Apesar de saber que era apenas ilusão dos sentidos, seus pés estavam presos ao chão por robustas correntes invisíveis. Era o velório de seu colega, não podia deixar de comparecer.
Para distrair-se, fixou o olhar na janela do outro lado do aposento, por onde podia ver um arbusto que ele julgou ser um pé de azaleia, mais além, alguns túmulos, um alto pinheiro, o céu azul, manchado de branco por uma solitária nuvem cumulus.
Súbito, percebeu o reflexo do caixão no vidro da janela, viu o morto que se erguia, apontava um dedo para ele e abriu a boca como se fosse acusá-lo.
Miguel estremeceu, um grito de espantou se formou em sua garganta, mas foi contido quando uma mão segurou a sua, uma mão quente e macia, num gesto de solidariedade. Olhando para o lado encontrou o rosto sereno da mulher que usava óculos escuros para esconder o machucado.
Ela ergueu-se, puxou-o gentilmente pela mão e conduziu-o para o jardim.