Não Urgente!
O som que o aparelho médico fazia era um completo cronômetro da morte de minha mãe. Seus pulmões, seu sangue, seu coração, seu cérebro, enfim, seu corpo por completo entraria em falência caso simplesmente apertassem um único botão.
Já havia passado dois dias e meio e ela não havia acordado.
Eu estava perdendo cabelo, ajoelhava ao chão e pedia para Deus, Jesus, Nossa senhora e todos os outros santos que fizessem o milagre de acorda minha mãe e curá-la como se nada tivesse acontecido. Eu, meus três irmãos menores, um de quatro anos, não merecíamos perdê-la tão cedo, tão abruptamente e de forma tão grotesca. Não conseguiríamos, literalmente, viver sem a ajuda do seu trabalho. Eu ainda não sabia exatamente o que havia acontecido, mas provavelmente tinha a ver com seu trabalho árduo de frentista, o médico ainda tinha que me dizer o que ela tinha exatamente, assim daria o preço do seu tratamento, um preço, que o mínimo que fosse eu não conseguiria pagar.
Eu estava rezando, segurando sua mão ressecada e cheia de queimaduras, quando o médico finalmente havia chegado com uma prancheta em mãos.
– Boa tarde, senhor?
–Kaue. – respondi bruscamente.
– Bem, nossos exames tiveram algumas complicações por isso demoramos. E eu gostaria de dizer sinto muito! – seu rosto não demonstrava tristeza alguma, seu sinto muito foi tão rapidamente falado que mal percebi sair de sua boca.
Meu corpo gelou completamente.
– Bem, o os exames de cintilografia óssea, tomografia computadorizada e ressonância magnética detectaram que sua mãe tem um carciloma de células pequenas na fase IIIB, por isso o desmaio. O único tratamento possível é Quimioterapia e Radioterapia, é muito difícil, mas é possível, temos a melhor equipe da região e do país!
– Ah, graças a Deus. Mas ela pode acordar antes dos aparelhos serem desligados e depois fazemos isso?
O médico gargalhou.
– Claro que não, sua mãe não vai acordar, sem esses aparelhos ela não irá durar um dia se quer, mesmo apagada. Bem, o preço é uma junção da sua estadia aqui por três dias, os exames feitos e o tratamento. Tudo isso dá um total de 35 mil reais.
Nem que eu roubasse. Nem que eu vivesse uma vida toda acumulando dinheiro eu conseguiria 35 mil reais. As imagens passavam pela minha cabeça e me faziam lagrimar. Eu beijei minha mãe na testa e falei para acordar, mas nada aconteceu. O médico insistia em perguntar como seria a forma de pagamento, ele parecia sarcástico por ver a roupa rasgadas que eu usava e o preço necessário para o tratamento. Furioso eu gritei:
– Você acha que eu tenho cara de ter 35 mil reais nessa merda? Olha esse trapo que eu visto! – cheguei perto do médico e ele olhou de cima para mim.
Encaramo-nos de tão perto que era questão de tempo para que um de nós socasse um a cara do outro. Alguns seguranças chegaram à porta e ameaçaram me segurar, mas o médico com gentileza falou:
– Está tudo bem, é só uma emoçãozinha aflorada pela mãe. Bem, meu querido, aproveite seus últimos minutos e agradeça o governo por conceder esses três dias de hospital grátis – ele chegou próximo ao meu ouvido e disse lentamente – vocês deveriam estar jogados no lixo, pedaços de merda.
Os seguranças me seguraram antes que eu partisse para cima dele, não evitaram porém meus palavrões que ecoaram aquele andar do hospital. O médico deu de ombros e saiu calmamente pela porta. Até que eu ficasse calmo os seguranças me seguraram e meus pensamentos se voltaram para minha mãe, eu não sabia o que fazer, reza e reza, não parava de rezar. Fiquei horas e horas tentando que minhas preces fossem ouvidas e minha mãe milagrosamente acordasse.
Haviam passado muitas horas e quando faltavam dez minutos para o desligamento dos aparelhos, um grupo de pessoas entrou pela porta. Médicos, homens vestidos com roupas pretas, algumas outras pessoas com um uniforme que parecia ser de escoteiro escrito “MYTILOS - Prefeitura de Jurupari”. Assustei-me quando pensei que alguns enfermeiros que se aproximavam mais do que o necessário iriam desligar os aparelhos.
Eu implorava, estava de joelhos para o aglomerado e pedia que não fizessem isso. O isso que eu não queria ouvir em voz alta. Minhas lágrimas escorriam tão rapidamente que o chão ficou levemente molhado. Um silêncio se instaurou e o médico que antes havia falado comigo soltou algumas palavras avulsas.
– Se quiseres ouvir nossa proposta para a sua mãe, aja como gente!
Não me importei com qualquer tipo de comentário feito ou risadas ao vento, eles tinham uma proposta, onde eu assinaria? O que era preciso fazer? Qualquer coisa, só falem!
Uma mulher muito simpática que estava vestida como escoteira e devia ter no máximo uns 18 anos iniciou uma fala que parecia ter sido decorada e falada centenas de vezes até atingir a perfeição.
– Boa noite, senhor, somos a iniciativa Mytilos, um novo programa governamental que tem sua vertente vinda das raízes de shows de Jurus na cidade, somos um projeto em fase inicial e gostaríamos de falar que o senhor é o primeiro que pode passar por algo assim. Bem, após a queda do SUS, o governo federal produziu algumas iniciativas para ajudar as pessoas em vulnerabilidade econômica. Bem, sua mãe está muito debilitada e nós gostaríamos imensamente de ajudá-la no tratamento, pagaremos tudo, ou seja, tudo ficará em responsabilidade governamental, não tem nada que o senhor deva se preocupar, você só precisa assinar esses papéis – ela falou com um sorriso no rosto, mostrou os papéis e continuou com seu sorriso enquanto falava – são os termos do contrato, tem muitas páginas aí, mas irei falar o essencial. Bem, o senhor precisa entrar para alguns programas de expurgo do governo. Nossa população de Jurus está muito reduzida então estamos ampliando os programas para novas bases da nossa sociedade para que possamos continuar com essas nossas raízes culturais. No caso você participaria de alguma caçada, sobrevivendo ou não, sua mãe terá o tratamento. A responsabilidade é toda sua em assinar os papéis e em se tornar objeto do governo enquanto estiver em algum dos nossos ambientes de caça, caso consiga sobreviver, fugir ou pelo menos não sair morto você estará livre para ver sua mãe novamente! É isto! Ah, seus irmãos, como o senhor relatou, ficarão retidos em uma creche e todos serão muito bem cuidados até sua mãe sair do hospital.
Ela me entregou uma caneta.
– Falta um minuto senhor!
Meu mundo estava fora do eixo, boa parte de suas palavras não haviam nem sido compreendidas eu estava extasiado com o que teria de fazer. Sem perceber eu havia assinado os papéis e senti que a corda que estava no pescoço da minha mãe, agora, estava no meu. Eu nem lembro de ter visto ela por uma última vez. Alguns médicos e enfermeiros me seguraram e injetaram algo em mim que me fez apagar quase que imediatamente.