O INSEPULTO

PAULINO, O INSEPULTO

O mau cheiro do cadáver já empestava tudo. Durante os primeiros dias, os cães vinham farejar a essa, armada no adro da igreja, mas agora, nem os cães se aproximavam. As mulheres deixaram de vir sorrateiramente rezar-lhe por alma, e vinham agora ostensivamente com braçados de hortelã, poejo e outras ervas aromáticas para lhe deitar por cima.

Laureano Longueira, cujas traseiras da casa davam para o adro da igreja, andava fulo de janela para janela. A mulher seguia-o a acolitar-lhe a ira.
—Com todos os diabos! Quando é que enterram aquele desgraçado? O padre não o quer no cemitério... O regedor que sim, o padre que não, e a gente a afogar-se neste fedor do diabo.
—Quem o lá pôs é que o há-de de lá tirar — resmungava a mulher de Laureano, que era do partido do padre — toma a saca!
—Ah, mas ele vai-me ouvir, vai, o patifório do padre — e aconchegava a saca molhada que ela lhe dava ao caixilho da janela — isto não serve de nada, mulher, não há nada que tape esta pestilência dos diabos.



A netinha é que o tinha encontrado morto. Quando lhe foi levar o pingo de leite e o naco de pão, que a filha lhe mandava todos as manhãs. Já ao descer da rampa à empena do palheiro onde ele vivia, a criança estranhou o silêncio. Nem a tosse habitual do velho, nem a gata a vir roçar-se-lhe nas pernas, miando pela sua gota de leite. Parou na soleira da porta a afazer os olhos à escuridão interior:
—Avô!
Silêncio...
—Avô! Onde é que está?
Silêncio.

Recuou a ver se o via na rua e quase tropeçou nas pernas do cadáver. Estava caído de borco, imóvel. Chamou-o, puxou-lhe a perna das calças, mas quando notou o poço de sangue já coalhado em que se afundara a face do avô, fugiu horrorizada. Dobrou o canto do palheiro e encostou-se à parede da empena hirta de medo. Depois, num esforço enorme para vencer o medo, desceu de novo a rampa e espreitou. Queria olhar outra vez para ter a certeza. Parecia-lhe que o tinha visto mexer a cabeça. Chegou-se um bocadinho. Não, não era ele. Era o vento que lhe sacudia uma madeixa de cabelos brancos. A menina então desatou a chorar baixinho e correu a casa do padre que morava perto:
—Meu avô está caído à porta do palheiro. Está morto, a cara numa poça de sangue. Venha ver.

Mas o padre negou-se a lá ir.
—Não vou. Teu avô nunca se confessou. É um assassino inconfesso. Não merece enterro cristão. Não tenho lá nada que fazer. Vai chamar a tua mãe.
—Minha Mãe foi às Lajes e só vem à noite.
—Vai dizer a ti Francisco Rodrigues. Ele é que é o regedor.

A menina foi repetindo baixinho sassino confesso, sassino confesso, mas quando chegou a casa do regedor já só foi capaz de dizer sassino:
—O Senhor Padre diz que ele é sassino, que não pode fazer nada. Que é para ti Francisco ir lá... meu avô não mexe... está morto... sassino...
—Isso nunca foi provado, rapariga, e o Senhor Padre bem sabe que não.

E ia repetir argumentos antigos, que aliás nunca tinham convencido nem o padre nem a maioria do povo freguesia, mas, ao ver os olhos chorosos da criança, aflitos, muito fitos nos dele, muito abertos, gritou para dentro de casa:
—Ó Maria, toma-me conta desta pequena. Ela encontrou o avô morto... Eu vou tratar disso —e partiu a caminho do Passal.

Nunca ninguém soube ao certo o que o padre e o regedor disseram um ao outro no passal. O que todos sabiam é que a discussão tinha sido sobre o enterro do Paulino... Se havia de ser no cemitério ou não. E ninguém esperava também que os dois homens chegassem a um acordo. Era o culminar duma velha briga entre eles. Quando o regedor saiu de casa do padre, tinha-se congregado cá fora um grupo de beatas embiocadas nos xailes e capotes negros que na época se usavam, e em atitude de desafio. Ao passar por entre elas e ao ouvir os seus sussurros hostis o regedor, um gigante dum homem ainda na plenitude do seu vigor, abriu os braços ameaçadoramente e enxotou-as com meia dúzia de imprecações tremendas.
—Andar, suas vespas malditas! Desavergonhadas! Almas do diabo! Para casa! Tratar das vossas casas! Suas porcas. Tratar da vossa vida!

Como um bando de galinhas assustadas, as beatas arrepanharam os saiotes e fugiram cada uma para seu lado, sem saber onde se haviam de meter, e o regedor em enormes e decididas passadas dirigiu-se ao casinhoto em cujo pátio o cadáver andrajoso do velho Paulino continuava à espera que lhe assistissem. De passagem parou à porta do seu cabo de polícia e gritou lá para dentro:
—Ó André, vai à minha loja buscar uns caixotes vazios e leva-os para a porta da igreja. É preciso fazer uma essa para o velho Paulino. Mexe-te!

Foi a mulher do André que ouviu o recado e o foi dar ao marido que era cesteiro e estava atrás da casa fazendo uma sebe de carro.
—O quê?
—Uns caixotes vazios... da loja de ti Francisco. Para a porta da igreja. Ele é que mandou. É para a essa do Paulino. Ele morreu.

André, sem entender bem o que a mulher lhe dizia, parou o trabalho e veio-a seguindo até à rua. Só ao ver o regedor passar com o cadáver atravessado ao ombro, meio embrulhado nuns cobertores imundos e rotos, percebeu tudo:
—Mexe-te, homem —insistiu o regedor — vai-me buscar os caixotes. Estão do lado de dentro da porta, à direita de quem entra. E daí a meia hora estava armado no adro da igreja, sobre caixas vazias, um catafalco rudimentar e sobre ele o cadáver do infeliz
Paulino.

A notícia passou de boca em boca e numa questão de minutos não havia ninguém no Lajedo que a não tivesse ouvido:
—O Paulino esticou o pernil. E o corpo está no adro da Igreja.
—Quem é que o pôs lá?
—O regedor... O Senhor Padre não o deixa enterrar no cemitério.
—Isso não é novidade para ninguém... E agora?
—Agora é que vão ser elas... É o regedor a dizer que se enterra, o Senhor Padre a dizer que não se enterra, e o Paulino, a apodrecer à porta da igreja. Mas isto já se esperava há muito.



De facto, nem a morte do velho Paulino, nem a exposição do cadáver no adro surpreenderam ninguém. O desgraçado telheiro vivia abandonado, doente, tossia constantemente e escarrava sangue, e o padre, desde que a saúde do velho começara a deteriorar-se seriamente, vinha reiterando publicamente a sua velha decisão de lhe não dar enterro cristão.
—Nem na igreja nem no cemitério há-de ele entrar.
—Há-de ser enterrado no cemitério, sim senhor — contrapunha o regedor — que ele também é gente. E o cemitério é para todos, que é o que manda a Lei.
—O cemitério é terreno consagrado. Não é para hereges assassinos...
—Vocês nunca puderam provar nada disso... são tudo invenções.

Era uma discussão que já vinha de há muitos anos. Paulino fora acusado de matar o companheiro de trabalho, o Dançarino, por causa duma fornada de telha que tinha saído mal cozida e se perdera. Paulino e Dançarino eram do Faial e eram telheiros. Tinham vindo para as Flores e tinham-se estabelecido no Lajedo atraídos por um telhal abandonado que lá havia e que conseguiram restaurar sem grande dificuldade. Paulino encarregou-se da procura e transporte do barro e da areia para fazer a telha, e Dançarino tomava conta da lenha para a cozer. O barro era abundante e bom, a areia também, o pior era a lenha que era escassa e de inferior qualidade. Dançarino bem se esforçava em procurar lenha boa que aquecesse bem o forno do telhal, mas era difícil e um dia perdeu-se uma fornada de telha, por falta de lenha. Houve briga rija entre os dois sócios, Dançarino desapareceu e Paulino foi acusado de o ter assassinado.

As autoridades judiciais prenderam-no e levaram-no para Santa Cruz. Lá o detiveram durante três dias em interrogatórios, mas depois, convencidas da sua total inocência, mandaram-no de volta para o Lajedo em absoluta liberdade. Foi então que começou a pior das tribulações do pobre telheiro. O povo, velhos e novos, sãos e aleijados, o povo do Lajedo, do Campanário e da Costa, o povo todo, tomou a peito acusar, julgar e castigar o suposto assassino.
—Foste tu que o mataste. Toda a gente sabe isso. Onde escondeste o corpo, malvado?
—Eu mão matei ninguém, juro! Nunca as minhas mãos lhe tocaram. Que elas encaramujem se eu o matei!

Mas ninguém queria acreditar no Paulino e continuaram a procurar o corpo da sua suposta vítima por todo o sul da ilha. Procuraram-no no mato, no mar, nas ribeiras. Especialmente nas ribeiras. Não houve pulo de água, nem furna, nem recesso, por mais pequeno que fosse, que não se esquadrinhasse... e nada. O corpo do Dançarino nunca apareceu, nunca cheirou a podre, nunca atraiu bando de passaroucas que sobrevoando-o denunciasse a sua presença... Nada.

A certa altura soube-se que o Paulino passava horas para os lados dos Algares, por entre as lenhas, a procurar também.
—Anda é a esconder o corpo... é o que é.
—Ele anda mas é à procura, como toda a gente, olha agora...
O regedor confrontou-o, publicamente:
—O que é que tu andas a fazer nos Algares, por entre as lenhas?
—Ando à procura dele, como toda a gente.
—Sozinho? Porque é que não procuras com a gente?
—Foi a arranjar lenha que ele se perdeu. E ele ia à lenha para lugares certos. Para os Algares, para a Fajã da Madeira... Não era nas ribeiras que ele ia à lenha.


A partir de então o Lajedo dividiu-se. Um pequeno grupo que finalmente acreditou na inocência do Paulino seguia a opinião do regedor, mas discretamente, em silêncio, e o grupo do padre que aproveitava todas as oportunidades para acusar o telheiro do assassínio do companheiro.

Faziam-lhe a vida negra. Era o padre que no seu zelo pastoral citava até nas homilias dominicais o crime do Paulino como ponto de referência para os caminhos da perdição e da condenação eternas e garantia que nem o seu corpo nem a sua alma, jamais achariam descanso. As beatas seguiam devotamente as pisadas do pároco e davam piadas ao pobre homem quando o encontravam na rua, e chamavam-lhe nomes. Os rapazes pregavam-lhe partidas grosseiras e violentas. As próprias crianças o assediavam e lhe atiravam com pedras.


Paulino
Malino
Matou dançarino...



À medida que as forças do desgraçado telheiro foram cedendo à tremenda pressão social que o sufocava, Paulino foi ficando mais frágil, mais vulnerável, mais doente. Evitava os contactos com os vizinhos, mesmo com aqueles poucos que lhe eram menos hostis. Fugia das pessoas e escondia-se como um bicho acossado. Por fim isolou-se completamente no seu palheiro. O seu único contacto com mundo era visita diária daquela netinha que o encontrou morto.



—Laureano, Laureano, acorda! Pegou lume na igreja! Jesus, está tudo a arder! Vai chamar o Senhor padre!
—Hum... hum... diabos te levem... alma do...
Laureano Longueira ia largar a língua à mulher que o acordara aos empurrões, mas o clarão imenso que lhe entrava pelas Janelas emudeceu-o. Saltou da cama em cuecas e tronco nu, e saiu porta fora seguido por ela. Deram a volta à casa, mas já não foram os primeiros a chegar ao adro da igreja. Já lá havia muita gente e chegava mais a cada momento, espantados, embrulhados em lençóis e cobertores... Afinal não era a igreja que ardia, era a essa do Paulino que se transformara numa enorme pira. Mal se ouvia uma voz... As caras, iluminadas pelas chamas da enorme fogueira, ou se mantinham mudas, boquiabertas de espanto, ou segredavam umas às outras em voz baixa.
—Olha, é o corpo a arder. Estás vendo como ele se enrola? E as mãos, parecem caramujos... Olha, Olha!
—Não é nada! Aquilo são as mantas que lhe tinham deitado em cima para tapar o fedor. Não digas tolices! O corpo não está dali... Deve estar no cemitério as estas horas, enterrado bem fundo.

De dentro dum palheiro vizinho, oculto pela escuridão interior, o regedor assistia a tudo. Junto dele uma mulher bastante mais nova observava também. Era a filha do Paulino e mãe da netinha que o tinha encontrado morto. O regedor mandara-a chamar por André e ela viera, e participara na remoção e enterro do corpo. Agora, emocionada, chorava baixinho. O regedor, condoído, lançara-lhe um braço em volta dos ombros e aconchegava-a a si.
—Deixa. Não chores. Ele agora já não sofre mais.
—Foram tão maus para ele. Fizeram-lhe tantas maldades.
—Eu sei. Mas pronto... Já tudo acabou. Deixa...

A fogueira, ajudada por dois feixes de queirós bem secas que o André lhe juntara e por um braçado de achas que o regedor trouxera, atingia agora o máximo do seu fulgor. A frente da igreja e as casas vizinhas estavam inteiramente iluminadas. Continuava a chegar gente. A mulher do regedor chegou também. Trazia pela mão a netinha do Paulino que estendendo a mãozinhas para a fogueira gritou:
—Avô, Avô!
Na escuridão do palheiro, a mulher num movimento brusco, instintivo, desprendeu-se do braço do regedor e ia sair para acudir à filha, mas ele prendeu-a com força:
—Não, não. Deixa... é melhor assim. A minha mulher é uma santa e trata-a como se fosse filha. Chama-lhe Julinha. Vês? Olha!

Com efeito a criança estava a ser consolada pela mulher do regedor que carinhosamente se inclinava sobre ela e a acalentava.
—Eu sei. Mas é a minha filha e desde a morte do meu pai eu nunca mais a vi...
—Hás-de deixá-la ficar lá em casa. É muito melhor para ela.
—Eu sei, mas custa muito.
—Bem sei. Mas olha há males que vem por bem. A tua filha tem agora uma família completa para crescer, ao abrigo das línguas do mundo e fazer-se uma mulher de respeito... E o teu pai fica enterrado, como ele dizia, no Quintal de Nossa Senhora, onde todos lhe hão-de tirar o chapéu...*

Ela, num gesto de gratidão, lançou os braços ao pescoço do regedor e soluçando baixinho escondeu o rosto no peito dele.

Passado algum tempo, com a fogueira a extinguir-se e a maioria das pessoas regressadas a suas casas, saíram os dois do palheiro e partiram, cada um para seu lado.

*........