AS AFOGADAS DA CALDEIRA RASA
Foi por causa duma cestinha de amoras que foi a arrematar pela festa de Nossa Senhora dos Milagres.
Foi aí que tudo começou.
As amoras tinham sido trazidas por romeiros de Santa Cruz que ao atravessar a ilha, a caminho do Lajedo, as tinham apanhado nos matos.
Tinham trazido duas cestinhas delas. Uma foi arrematada, cesta e tudo... e ela é nova!... As amoras da outra cestinha, dois ou três punhados delas, mas escolhidas, negras de maduras, foram distribuídas pelas crianças, no adro da igreja.
Vinte escudos, cesta e tudo... e nã precisam de açucre... vinte escudos, quem dá mais? gritava o leiloeiro de cestinha à cabeça, passeando-se entre a multidão, enquanto as crianças se deliciavam com as amoras da outra cestinha.  
E foi um ar que lhes deu. Num instante, a cesta ficou vazia e foi devolvida a seu dono,  e as crianças puseram-se a acompanhar o leiloeiro deitando a língua de fora umas às outras, língua preta, cachaneta, e dando vivas e batendo palmas aos que iam participando na arrematação das amoras.  Vinte escudos, é para Nossa Senhora dos Milagres, Quem dá mais? Vinte e um... assim é que é... vinte e dois... boca linda...
E foram subindo as ofertas. Dois calafonas que estavam de visita à ilha natal e tinham vindo à festa, entraram em despique, ora um ora o outro, mais cinco... O leiloeiro parou no meio do arraial e formou-se à sua volta, e à volta das crianças que o acompanhavam, um grande círculo de gente a apoiar os dois arrematantes. E entre palmas e gritos de entusiasmo a oferta foi subindo, mais cinco... Quando um dos emigrantes desistiu a cestinha de amoras já ia em duzentos e cinquenta escudos. 
Durante dias, no Lajedo, no Campanário e na Costa, não se falou noutra coisa. O despique das amoras de Nossa Senhora era assunto da conversa para velhos e novos. Especialmente para os  pequenos da Costa que tinham participado mais activamente na arrematação: 
—Aquilo é que eram amoras doces, lembras-te, Maria da Luz?
—Achê! Quem mas dera aqui outra vez.
—Olha, vamos às amoras... Quem quer ir às amoras?
—Eu vou!
—Eu também!
            E todas queriam ir. Ao outro dia de manhã, um grupinho de crianças da Costa puseram-se a caminho do mato. Iam para os lados do Cruzeiro que é onde elas são mais doces e amadurecem mais cedo.
            —Eu cá, as minhas são para fazer doce...
—Eu não. Quero é comê-las. Vai ser até chegar com o dedo.
E foram subindo. Passaram o Portal-da-Fajã, a Cancela do Mato e, ao chegarem ao Rochão das Feiticeiras, a Maria da Luz já se sentia cansada e foi ficando para trás.
—Olha, lá em cima, o Bugio está-se cobrindo de névoa. O melhor é ir aqui para os lados da Altamira que é mais perto. Minha mãe disse que lá também dava amoras... mesmo à borda do caminho...  
—Tu estás é com medo, Maria da Luz...
—Medo? Eu? Era o que faltava!... Medo de quê? É cá uma coisa que me está puxando para trás... mas não é medo, não.
—É cagunfa. É o que é. Se não quiseres ir, volta para trás. Mas olha, vais
sozinha.... Já sabes... Anda mexe-te, rapariga... vamos.  
  Maria da Luz era a mais pequena do grupo e quanto mais trepavam para o interior da ilha mais apreensiva ela ficava. 
—Ai se a  gente se  perde... e se aparece uma feiticeira... é melhor não ir mais  para cima...
—Tu não devias era ter vindo. Devias ter ficado debaixo das saias da tua mãe... Feiticeiras! Nem feiticeiras nem maria feiticeiras, não há nada disso...
—Há sim que o meu avô viu uma duma vez, num dia de nevoeiro... ao pé da Caldeira Rasa. Duas. Uma fugiu no ar às gargalhadas... A outra não. Ficou lá. Parada.
—Isso era uma queiró...
—As queirós não falam e  aquela falou.
—E disse o quê?
—Meu avô nã quer dizer o que é que ela disse... alcagoitas, alcagoitas, alcagoitas... é só o que ele diz.
—Isso é as cagarras é que fazem. Mas é na rocha do mar...
—Olha tu avia-te, ou ficas para trás. Sozinha!
E foram subindo, sempre subindo. Quando se sentaram para descansar um pouco, tinham a Caldeira Rasa atrás de si, mesmo à  beira do caminho, e a Funda lá em baixo na base da enorme ravina que as separa uma da outra. Mas foi curto o descanso que o Sol já tinha passado o pino do meio dia e começava a querer descambar para os lados da Fajã Grande.
Dividiram-se em dois grupos mais pequenos, uns vão começar lá a cima à volta do caminho e vêm apanhando para baixo, os outros vão apanhando daqui para cima, até se encontrarem...  E só nas bordas do caminho... ninguém sai do caminho...  ouviram?
            O grupinho que ficou junto da lagoa teve sorte. Havia naquele lugar muitas amoras e, em breve tinham enchido as duas cestinhas que levavam. Eram quatro, três meninas e um rapaz que tinha ido com elas. Sentaram-se, compararam os arranhões das silvas nas mãos, nos braços, este é maior do que o teu, deitou sangue... Depois conversaram, e as feiticeiras voltaram  à conversa.
            —Voam, mas não tem asas... E são todas brancas... Aparecem em muitos lugares... à noitinha. Andam às duas e às três... às vezes mais. No Rochão das Feiticeiras aparecem muitas.
            —Mas não fazem mal a ninguém... só se riem da gente.
            —E tu já viste alguma?
            —Eu não... Deus me livre... que eu deixava-me gastar de medo.  
            —Pois eu vi uma o outro dia e era preta... Assim como tu vais ficar agora... vês?
            E a Maria da Luz não conseguiu fugir a tempo. Uma mão cheia de amoras esmagadas tingiu-lhe as bochechas, a testa, o pescoço.
            —Atrevida. Espera que eu te ensino a sujar-me a cara! Toma lá que é para aprenderes... preta... E tu também que é para não te rires...
E, quando acabou a retoiça, as faces das quatro crianças estavam realmente negras, da cor das amoras.  Sentaram-se de novo a olhar umas para as outras e riam, riam...
            —E agora como é que a gente se limpa?
            —Água não falta... Venham daí.
            E foi então que a tragédia começou. As quatro crianças, de mãos dadas, uma atrás da outra meteram-se pela água da lagoa. A mais corajosa à frente puxando as outras, mais aqui, mais aqui que a água é mais funda e limpa... E entre gritos e respingos de água foram se metendo pela lagoa até que...
            A que ia à frente perdeu o pé e arrastou consigo as outras. Maria da Luz viu as duas companheiras à sua frente desaparecerem em borbotões de água, e num esforço desesperado conseguiu libertar-se daquela mão de ferro que a puxava para o abismo. Voltou-se e ainda  conseguiu agarrar com ambas as mãos os suspensórios do rapaz que em pânico se voltara para não ser engolido  pelo sorvedouro. Mas pouco durou aquela esperança de salvação. Quando o rapaz afastando-se, parecia  começar a arrastá-la, Maria da Luz sentiu que as duas companheiras se agarravam ao seu vestido e a puxavam  para aquele turbilhão da morte que as engolia. Foi uma luta de vida e morte que durou apenas um momento, mas pareceu uma eternidade. À sua frente o rapaz gritava num esforço desesperado e ia-a puxando para fora do sorvedouro, atrás dela  o peso imenso das outras crianças a arrastá-la pelas saias para a morte. Os suspensórios foram cedendo e por fim  rebentaram,  e Maria da Luz com eles nas mãos deixou-se afundar entre enormes bolhas de ar que subiam verticais e luminosas para a superfície.
            O outro grupo que entretanto tinha regressado ao ponto de partida, presenciou tudo.  E, mudos, incapazes de reagir, olhavam em choque as grandes bolhas de ar que vinham rebentar à tona de água.
            Finalmente duas das crianças partiram à procura de quem lhes acudisse, vamos chamar gente, vocês fiquem aqui. Quando, horas depois, chegaram as primeiras pessoas. Um corpo boiava de bruços no meio da lagoa. Era o da Maria da luz. Dos outros dois nem sinal. Arranjou-se uma espécie de maca com uns casacos atados a dois bordões e o cadáver da criança foi transportado para a casa dos Pais na Costa do Lajedo. Das outras meninas nem sinal. Esperaram, andaram à volta da lagoa a ver se viam lá no fundo um vulto, um sinal... nada, nem uma sombra.  A família das duas crianças desaparecidas foi-se reunindo na margem, acompanhada de vizinhos, amigos e curiosos. Finalmente anoiteceu. Uma noite sem luar, escura, medonha... À volta, as sombras informes e negras dos montes, da Pedrinha, da Pedra Marcela... Ali ao lado, a escuridão imensa da enorme depressão da Caldeira Funda. Trevas, medo, o desespero da morte.
            As mulheres gemiam de dor, choravam, lamuriavam-se, desgraça, que desgraça esta... Os homens, acocorados na margem, espiavam sem esperança  o clarão imóvel das águas e, ou  calavam o seu desespero num mutismo de morte, ou trocavam frases sem nexo, para conter as lágrimas, diabo de vida... onde é que já se viu uma coisa destas... Dois pássaros nocturnos cortaram, em voo rasante o clarão líquido das águas para logo se sumir na escuridão, alcagoitas, alcagoitas... Diabos as levem, malditas...almas do diabo! Eram cagarras agoirentas...
Com a chegada do padre que apareceu, pela noite dentro, de lanterna acesa e acompanhado do sacristão, as mulheres redobraram os seus choros e lamúrias e os homens calaram-se de todo. Rezaram o terço. No fim, o padre lançou a absolvição a todos aqueles que tenham morrido ou venham a morrer afogados esta noite... e esperaram pelo amanhecer...
Os corpos das duas meninas só apareceram no dia seguinte.
Nunca, o povo da Costa, do Campanário e do Lajedo chorou tão sentidamente os seus mortos. Na igreja, ali na presença de Nossa Senhora que ainda não voltara ao seu nicho no retábulo sobre o altar-mor, choraram homens e mulheres, velhos e crianças... choraram todos, como se todos tivessem perdido uma filhinha, uma irmã, uma neta. Era a menina dos meus olhos, Jesus, que eu não aguento esta dor... Aguentas sim... que Nossa Senhora também não morreu de dor aos pés da cruz do seu divino filho... Chora, desabafa que só faz bem.
Tinham armado três essas revestidas de toalhas brancas em frente da linda imagem de Nossa Senhora dos Milagres que, ainda sobre o andor que a tinha levado na procissão, parecia abençoar as três meninas vestidas de branco. Eram os vestidos da sua primeira comunhão..., os caixões, também todos de branco, mais pareciam berços fofinhos de bebé...
Depois do enterro, as pessoas ficaram no cemitério durante horas e horas. Ninguém se queria ir embora. Eram três anjinhos. Foram direitas para o céu... e lá estão a pedir por nós...
Contaram-se histórias de visões, de vozes que se ouviram... Houve quem afirmasse que, quando os três caixões saíam da igreja para o cemitério, Nossa Senhora, naquele seu gesto lindo de assunção, uniu um pouco as mãos e delas saíram, ao mesmo tempo, três pombinhas brancas que voaram para o céu.