A Lenda da Pedreira

Sua rotina de trabalho era extenuante. Incluía dirigir mais de 100 km por dia, saindo de madrugada e voltando sempre tarde da noite. Mas jamais reclamara disso. Na verdade, o mais tranquilo no dia a dia de ser um professor era mesmo a estrada. Normalmente sozinho, com boa música na playlist... Curtia rock clássico, fã inconteste dos Beatles. Era o momento em que ele se dava ao luxo de relaxar. Paisagens noturnas, em noites de lua cheia, eram dignas de molduras. Mesmo com chuva, deliciava-se com o barulho dos pneus contra a água da pista. Ar quente nas frias noites de inverno. Mas uma estrada daquelas não se deveria jamais subestimar. Apesar do pouco tráfego, ela serpenteava perigosamente em meio a morros, e sequer acostamento possuía. Estrada estreita, curvas fechadas e traiçoeiras que acabaram ocasionando, com o tempo, muitos acidentes, alguns deles bastante trágicos. E, é claro, com tais eventos acabaram surgindo algumas lendas locais, histórias que os mais velhos contavam para, principalmente, assustar as crianças.

A lenda mais conhecida de região era um amontoado de clichês: uma jovem estaria com casamento marcado para os próximos dias. Pelo rádio, ficara sabendo que havia ocorrido um acidente grave na estrada, a poucos quilômetros dali. Logo houve a confirmação de que seu noivo havia morrido em tal acidente. Em desespero, ela teria se atirado do alto de uma antiga pedreira desativada que existe próximo à divisa entre os dois municípios. Assim surgiu a lenda da Noiva da Pedreira.

O jovem professor lecionava havia alguns anos em colégios do município vizinho ao seu domicílio e, para lá chegar passava, quase que diariamente, pela pedreira, e quase sempre sozinho. De manhã e, à noite, retornando. Ouviu de muita gente sobre a noiva. Sempre havia quem, principalmente seus alunos, questionasse se ele não sentia medo. Medo? “sim, de passar sozinho à noite, lá na pedreira”. Ele percebia que algumas das pessoas que tocavam no assunto realmente o faziam por acreditar na história. Outros levavam na brincadeira. “cuidado com a noiva, professor”. Ele costumava responder que, se existia tal noiva, ela não tinha ido com a cara dele, afinal eram anos passando na famosa pedreira, sozinho e tarde da noite, e nada dela por ele procurar. Havia quem jurasse ser verdade, que conhecia quem a tivesse visto. Um motorista de ônibus; um caçador que fazia espera para algum animal; um agricultor que perto dali morava. Todos juravam ser verdade, juravam terem visto uma mulher vestida de branco andando ao lado da estrada e, sempre que paravam para averiguar, ela não mais ali estava. Mas ele era um homem das ciências. Culto, erudito... Não cairia na conversa de caipiras supersticiosos do interior. Chegou a investigar, mas não encontrou nenhum registro de algo que confirmasse o tal suicídio.

Chovia muito naquela noite. Aliás, dizer que chovia muito seria até eufemismo. Era torrencial a chuva que caía, um toró, com bastante vento. Um temporal como jamais ele havia visto, pelo menos não guiando nas estradas. O limpador do para-brisas não dava conta. Os vidros embaçados. Pouca coisa podia se ver lá fora, tanto que se podia perder facilmente a noção de que ponto da estrada estaria. A única coisa a se fazer era confiar em alguns poucos metros de faixa central da pista que ainda se era possível enxergar. O risco de que uma árvore caísse na estrada era grande. Se isso acontecesse, não teria como ver, e só perceberia quando passasse sobre ela. E se fosse um animal, principalmente de grande porte? Não foram poucas as vezes que havia topado com animais assim, como cavalos ou vacas, no meio da estrada. A única coisa a se fazer era reduzir a velocidade e torcer para que ninguém, distraído ou imprudente, viesse atrás. Até pensou em parar, mas duas perguntas lhe vieram à mente: parar onde se não havia acostamento? E quanto tempo aquele aguaceiro duraria? Decidiu continuar, transitando em baixa velocidade. A situação era desesperadora, pois ainda tinha uns 25 km até chegar em casa. Passavam das 23h.

A visibilidade era quase zero. A possibilidade de bater em uma árvore na pista aumentava e lhe causava pavor. Parecia mais prudente mesmo parar e acionar o alerta. Enquanto pesava o melhor a se fazer o carro dá um solavanco típico de ter passado sobre algo, algo grande. Talvez uma pedra, ou mesmo galhos de alguma árvore, o que seria mais óbvio. O pé cai forte e acidentalmente sobre o pedal do freio, fazendo o carro brecar e o motor morrer. A cabeça bate brutalmente contra o para-brisas. Sorte não estar tão rápido assim. Sempre trazia consigo uma boa lanterna, exatamente para emergências como aquela. Desceu do carro e logo pôde visualizar, na pista, talvez a uma distância de 50 metros, que havia partes de uma árvore, galhos grossos, esparramados pelo meio do asfalto. Em um rápido exame visual constatou, na roda da frente, um enorme rasgo no pneu e a lateral da lataria um tanto avariada. Já estava com a roupa encharcada. A chuva era realmente torrencial e ventava bastante. Fazia frio. Tentou se orientar sobre onde estaria para tentar encostar o carro em um ponto mais seguro e assim fazer a troca do pneu. Em uma desenhada e perfeita cena de filmes de horror, um relâmpago rasga o céu, clareando o cenário e mostrando, logo a sua frente, a grande pedreira.

Não tinha espírito, em meio ao que parecia tornar-se um furacão, para lembrar da famosa lenda. O fato é que ele tinha, na pedreira, uma grande área para, em segurança, fazer a troca do pneu, ou mesmo esperar a tormenta passar. Bastou manobrar o carro por mais uns 100 metros e já se encontrava fora da estrada, em segurança. Os relâmpagos continuavam e havia momentos em que a claridade era tão intensa que parecia ser dia. Resolveu permanecer no carro. O professor não acreditava em fantasmas, porém morria de medo de raios.

Ensopado, começava a tremer alucinadamente. Batia os dentes, encolhido no banco do carro. O mês era julho, o mês em que mais esfria na região. Ligou novamente o carro para poder usar o ar quente. Em questão de minutos o frio foi perdendo forças e o ambiente ficou morno. Decidiu que ficaria ali até que fosse possível fazer a troca sem ser levado pelo vento. No celular, sem torre, nem telefone e muito menos internet. Ligou o som do carro, num volume mediano. Ironicamente tocava Here Comes the Sun, canção escrita por George Harrison. Ótimo, quem sabe uma seleção de músicas dos Beatles pudesse amenizar aquele desastre todo. A roupa continuava ensopada, porém a temperatura já podia ser chamada de agradável. Aninhou-se o mais confortavelmente que pode, em posição fetal e, com a ajuda do quarteto de Liverpool, adormeceu.

Foi encontrado, algumas horas depois, com o surgir dos primeiros raios de sol. Já parara de chover havia horas e o frio se tornara mais intenso durante a madrugada. Como morava sozinho, ninguém dera pela sua falta. O carro estava com a bateria completamente descarregada. Muito sangue havia banhado a fina blusa de lã. Ainda não se sabia se morrera pelo ferimento na cabeça, ou se fora a hipotermia. As canções que embalaram seu sono cessaram. Para ele, uma lenda tinha fim; Para o povo daquela região, outra começaria.