Crime em Santa Cecília

Quando o cliente sai, João enfia os dedos no fundo da gaveta. Puxa para fora o maço de cigarros escondido. Certifica-se de que o escritório está vazio e começa fumar.

O que um filho da puta daquele tinha na cabeça? Disparar contra duas meninas só porque passavam na rua, olhando pra casa dele?Queria acreditar que o cara era doido. Tinha de ser loucura. Fazer um troço desses. Cinco tiros em cada uma. E agora correndo atrás de advogado pra se defender, com medo de apodrecer na cadeia.

Percebe que uma dezena de bitucas se acumula no cinzeiro. Maldito vício. Desde a juventude tenta parar. Dieta,injeção, adesivo. Até promessa. Curtas temporadas livre. Depois…

O cliente:um cidadão de bem.Casado. Pai de três filhos.Casa boa,emprego. Nenhum pino frouxo pra justificar aquela atitude.

-O cara é da igreja!- Esmurra a mesa.-E vai lá,carrega uma arma e atira nos outros ?

Tempos difíceis, fala sozinho, enquanto devolve os cigarros que restaram ao fundo da gaveta. Aquela noite não conseguiria dormir. Sempre que tinha um grande caso era assim. A excitação roubava o sono, deixando ele pilhado. Dessa vez, um motivo a mais pra passar a madrugada igual um zumbi. Raiva. Raiva. Raiva.

Só não dava um jeito de meter o desgraçado na cadeia porque seria desleal. Mais desleal do que formular argumentos de defesa pro escroto. O palhaço que se achava no direito de eliminar duas adolescentes porque passavam na rua e ficavam olhando. Vai ver, olhavam nada. O maldito implicou com elas. Cruzando a rua dele? Quem autorizou?

Recolheu uns papéis na pasta. Conferiu as chaves no bolso, se programando para passar na tabacaria no dia seguinte. Não suportaria a pressão de montar aquele caso sem umas tragadas, às escondidas. Ele mesmo ia cuidar da peça. Não ia deixar pro assistente. A defesa seria construída em cima da travessura das garotas.A investigação da polícia dizia que estavam matando aula. Ia aproveitar a opinião pública.Cidade tacanha. Puritanismo chinfrim. Um monte de gente condenando as duas?Por que não estavam na escola? O que faziam na rua àquela hora? Como se fossem as culpadas por toparem com um desequilibrado arrogante daqueles.Isso é motivo pra morrer?

Apagou as luzes, trancou a porta, tremendo de indignação. Não fossem as manifestações anti racistas ia alegar que seu cliente se assustou com duas, avançando para ele na escuridão.Nove, dez da noite. Iluminação fraca nas ruas. Nem percebeu que eram adolescentes.

Ia ganhar o caso. Decidiu a caminho de casa. O carro top de linha ,cruzando as ruas em alta velocidade . Pressa de chegar, , tomar um banho. Alice que deixasse o jantar para outro dia. Não tava com cabeça pra restaurante.No máximo, pediria uma pizza.

Ganharia no tribunal. Reiterou, procurando balas de menta nos bolsos. Se a esposa percebe que fumou, mais problema. Venceria a disputa com a promotoria, provando que as meninas eram culpadas por um desequilibrando arrogante acabar com a vida delas.

Estacionou na garagem .A luz da sala acesa era sinal de que Alice esperava. Decerto vestida numa roupa chic. Maquiagem ressaltando o rosto perfeito. Indiferente ao mundo fora de seu reduto de prazeres e vaidades.

Tinha dias em que invejava a mulher. A vida parecia tão leve na visão dela . Desabotoou os botões da camisa.Recostado no banco de couro,ficou pensando. Tentando desvendar sua esposa,o cliente,as pessoas que revestidas de falso moralismo,invertiam valores. Culpavam as vítimas e protegiam o criminoso. Aquilo era falta de caráter ou só a vida num contexto modernizado?

Lamentou não ter trazido alguns cigarros. Estava precisando.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 03/07/2020
Código do texto: T6994635
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