O infiltrado

Ele havia desfrutado dez anos de total irresponsabilidade. No início, a desculpa que dava aos seus superiores, é que precisava se integrar à comunidade que havia escolhido para viver; e isso significava dar festas e fazer gastos extravagantes, como trocar de carro todo ano - algo que ele tentara manter até o início de 1942, quando a produção de automóveis cessara nos Estados Unidos para priorizar a indústria bélica.

- Não vão mais vender carros novos? - Indagou preocupado, ao procurar a sua costumeira revendedora Chevrolet em Nova Iorque.

- Ainda há carros novos para vender - informou o representante. - Mas as vendas estão restritas ao pessoal essencial, que inclui militares, médicos, policiais e bombeiros.

Ele não se enquadrava em nenhuma das categorias, teve que reconhecer.

- Então, sugiro que conserve o seu Chevrolet Deluxe 1941 o melhor que puder - aconselhara o representante. - Vamos fechar o nosso estande de vendas e manter aberto somente a oficina, enquanto a guerra durar.

Isso poderia durar vários anos, como bem o sabia antes da entrada dos EUA no conflito; agora, a perspectiva é que se estendesse ainda mais. Se os malditos japoneses não houvessem atacado Pearl Harbor, talvez fosse possível manter a América fora da guerra por tempo suficiente para consolidar as conquistas na Europa e até mesmo derrotar a União Soviética. Mas, em dezembro de 1941, a neutralidade americana fora afrontada e o caminho trilhado agora não tinha mais volta. exceto, claro, se o Reich fosse vitorioso.

Ele estava talvez há tempo demais na América para ainda sentir-se profundamente comprometido com os destinos da guerra na Europa. Quando chegara ao país em 1933 e se naturalizara norte-americano, encarara seu trabalho como de infiltração para o novo governo alemão, que já antevia que em algum momento seu caminho cruzaria novamente com o dos EUA, como ocorrera em 1917. Nos anos seguintes, contudo, passara a se ver mais como um espião industrial mesmo. Trabalhava para um concorrente do país onde residia, e por isso recebia um salário; um gordo salário, aliás.

- Espere... eu havia falado em pessoal essencial, mas esqueci de citar uma categoria - lembrou subitamente o representante da Chevrolet. - Você é vendedor itinerante, não é?

- De fato - acedeu. - Posso me enquadrar nas exceções?

- Creio que sim. Preciso falar com meu gerente, mas é quase certo que consiga.

Acabou fechando negócio num Chevrolet "Blackout Special" 1942, onde todos os cromados haviam sido substituídos por detalhes pintados. Economia de guerra.

Foi esta, aliás, a última alegria que teve no ano, pois logo em seguida, a Abwehr - o serviço de informações do exército alemão ao qual estava subordinado - informou-lhe via rádio que decidira levar a cabo uma extensiva missão de sabotagem na América, partindo das informações que ele compilara nos meses anteriores a Pearl Harbor. Tentara dissuadir seus superiores da execução da tarefa, principalmente ao saber quem dela faria parte; nenhum dos oito homens recrutados possuía qualquer experiência prévia em ações de sabotagem, e o único critério parecia ter sido o fato de que haviam residido nos EUA em algum momento dos anos anteriores, ou eram cidadãos naturalizados - como ele.

Temendo justamente que por qualquer falha no desenvolvimento do plano acabasse sendo desmascarado, solicitou não ter qualquer espécie de contato com os sabotadores enquanto estivessem em solo americano. As informações que havia levantado deveriam ser suficientes, enfatizou.

Seus superiores pareceram interpretar sua reação como falta de amor à pátria; dez anos na América talvez o houvessem amolecido, reclamaram. Mesmo com o fracasso espetacular da missão de sabotagem batizada como Operação Pastorius, tendo os oito espiões sido rapidamente capturados pelo FBI, sem infligir qualquer dano ao parque industrial norte-americano, nenhum crédito lhe foi dado pelos alertas dados. Na última mensagem criptografada que recebera, haviam lhe informado que uma nova ação estava sendo planejada, e que para isso, uma agente estaria sendo enviada de Berlim para supervisionar o trabalho dele.

Não houve tempo para protestos. Quando recebeu a mensagem, a agente já estava a caminho num submarino, no meio do Oceano Atlântico.

- [29-06-2020]